Começou há pouco mais de um mês e, esta quinta-feira, o julgamento pela morte de Jéssica, a criança de três anos que morreu no ano passado, em Setúbal, entrou na fase final e foram ouvidas as alegações finais do Ministério Público, da defesa dos cinco arguidos e do único assistente neste processo, o pai de Jéssica. Para o Ministério Público, é claro que Jéssica foi dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que Inês Sanches fez por serviços de bruxaria e agredida várias vezes, mas decidiu retirar agora, nesta fase, alguns pontos que constam na acusação e que considerou não estarem provados. Ainda assim, a procuradora Cláudia Guerreiro não teve dúvidas: “A única vítima aqui é a Jéssica e Inês podia ter evitado a sua morte”.

O Ministério Público deixou cair as acusações a Eduardo Montes, o único arguido em liberdade, pelos crimes de tráfico de droga e de violação. Caiu, aliás, a acusação pelo crime de violação para todos os arguidos — Esmeralda, Ana Pinto, Justo e Eduardo Montes. Em relação a Ana Pinto, Esmeralda e Justo Montes, que estão neste momento detidos, o Ministério Público mantém as acusações por homicídio e ofensas à integridade física. E, em relação à mãe de Jéssica, quer que esta seja julgada pelos crimes de ofensas à integridade física qualificada e homicídio qualificado por omissão com dolo eventual. Para os quatro arguidos, que se encontram detidos, o MP pediu pena única de 25 anos de prisão — 23 anos pelo crime de homicídio e três anos e dois meses por dois crimes de ofensas à integridade física.

Esmeralda, a filha de Ana Pinto e de Justo Montes, nunca falou em tribunal. Esta quinta-feira, assim que ouviu a procuradora pedir uma pena única de 25 anos, ouviram-se também as suas primeiras palavras, ainda que sem direção e com desespero: “a minha filha, a minha filha”.

Verificou-se uma total ausência de arrependimento de todos os arguidos. E um alheamento. Para nós, foi chocante a frase de Justo Montes, ao ver as fotografias da autópsia de Jéssica: ‘não quero saber de nada disto’”.

Para o MP, Inês Sanches, mãe de Jéssica, “perdeu a última oportunidade” quando decidiu falar em tribunal, contradizendo as declarações que tinha prestado em dezembro do ano passado às autoridades. “Aguardávamos que, pelo menos quando decidiu prestar declarações, o fizesse com verdade, como se lavasse a alma, buscando uma redenção de atos praticados.”

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Os cinco arguidos e os crimes que constam na acusação

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.

“A nosso ver, os depoimentos prestados pelos arguidos não merecem credibilidade”, disse a procuradora do Ministério Público, Cláudia Guerreiro, que foi a primeira a fazer as alegações finais. À frente dos cinco arguidos, que entraram na sala poucos minutos antes de começarem as alegações finais, como é habitual, a procuradora explicou que nenhum deles foi capaz de contar o que aconteceu nos dias anteriores à morte de Jéssica de forma clara e detalhada. Por exemplo, em relação às palavras de Justo Montes, que negou sempre ter conhecimento de qualquer situação de violência, o Ministério Público referiu que o seu depoimento faz “lembrar a fábula do três macacos sábios: não viu nada, não ouviu nada, não sabe de nada”.

“Abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes”

Num dos dias em que foram dados mais pormenores sobre a forma como terá morrido a criança de três anos, João Ferreira dos Santos, perito do Instituto de Medicina Legal que fez a autópsia ao corpo da criança fez, na passada terça-feira, uma detalhada descrição, em que foi possível perceber mais alguns detalhes, além daquilo que se tinha sido descrito na acusação pelo Ministério Público.

“O que matou a Jéssica foi, sem margem para dúvidas, aquilo a que chamamos de síndrome do bebé abanado. Foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes. Isso foi o que matou a Jéssica. Alguém, de uma forma selvática, agarrou na criança, seja pela parte torácica, ou pelos membros, e a abanou com força. Dois a quatro abanões por segundo durante cinco segundos chega para que a criança tenha lesões gravíssimas”, explicou João Ferreira dos Santos.

Julgamento pela morte de Jéssica. Criança “foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes e isso foi o que a matou”

À medida que iam mostrando as fotografias da autópsia, que mostravam as marcas da violência que Jéssica sofreu, o perito foi analisando cada parte do corpo da criança, sublinhando que “era difícil encontrar mais lesões traumáticas”. Foram encontradas marcas de unhas de adulto e lesões provocadas por puxões de orelhas — nestas lesões, os arguidos poderão ter utilizado uma tesoura e um alicate. E o perito confirmou ainda que Jéssica “não bateu com a cabeça só uma vez, bateu várias”. “Parece que andaram a jogar à bola com a criança. Atiraram-na, de certeza, contra a parede ou contra o chão”, acrescentou.

A dívida e as agressões que resultaram na morte de Jéssica

O Ministério Público acredita que o fim da vida de Jéssica começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado, que fala esta quinta-feira em tribunal. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.

As agressões, a droga e a inação de mãe de Jéssica. Acusação descreve os momentos que levaram à morte da criança de três anos

Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.