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Paulo faz 600 horas extras por ano, Estevão ganha dois mil euros depois de dez anos no SNS. Histórias de médicos em greve

Este artigo tem mais de 1 ano

Médicos queixam-se da falta de condições de trabalho (e de materiais essenciais como luvas), da estagnação salarial e da burocracia. Três histórias de profissionais insatisfeitos, que estão em greve.

Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), Tomar, 17 de maio de 2023. Uma equipa em que prevaleça o companheirismo e o “bom ambiente”, uma liderança que ouve e promove a autonomia e a flexibilidade são fatores determinantes para a fixação de médicos no Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT). (ACOMPANHA TEXTO DE 20 DE MAIO DE 2023) CARLOS M. ALMEIDA/LUSA
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CARLOS M. ALMEIDA/LUSA

CARLOS M. ALMEIDA/LUSA

Seiscentas horas extras por ano são mais três meses de trabalho. Para Paulo Passos, cirurgião no Hospital de Viana do Castelo, o trabalho extraordinário tornou-se uma rotina. É como se, para este especialista, de 56 anos, o ano tivesse quinze meses — condensados em doze. Apesar do cansaço, acrescentar horas ao horário normal é a única forma que este e outros cirurgiões deste hospital do Norte do país têm de manter aberta 24/24 horas a urgência cirúrgica, diz. Esta é uma realidade comum a dezenas de unidades hospitalares espalhadas pelo país: os médicos têm de fazer centenas de horas extra para colmatar a falta de especialidades e preencher as escalas.

“Todas as semanas faço doze horas de serviço noturno na urgência. É um sacrifício pessoal, a que nem sequer estou obrigado, tenho 56 anos [os médicos estão dispensados de realizar serviço de urgência a partir dos 55 anos]”, diz, ao Observador, o especialista, que admite o cansaço, resignado ao facto de ter de continuar a trabalhar num serviço com uma equipa reduzida face às necessidades.

"Todas as semanas faço doze horas de serviço noturno na urgência. É um sacrifício pessoal", admite o cirurgião Paulo Passos.

“Todas as semanas faço doze horas de serviço noturno na urgência. É um sacrifício pessoal”, admite o cirurgião Paulo Passos.

As pessoas pensam que fazemos horas extraordinárias porque estamos sedentos de ganhar dinheiro. Não. O SNS é que pede que nós façamos as horas extra. E pede porque não há médicos suficientes para preencher escalas”, explica o médico, filiado na Federação Nacional dos Médicos (FNAM), sindicato que marcou mais uma greve nacional, para esta terça e quarta-feira (dias 1 e 2 de agosto), já ter depois de ter convocado uma paralisação, também de dois dias, no início de julho.

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Uma das exigências da FNAM é que o Governo abandone a intenção de aumentar o limite anual do trabalho suplementar para 300 horas (em vez das atuais 150 horas). Para o sindicato, o aumento é ilegal e coloca em causa a conciliação da vida profissional e da vida familiar. Já o Governo tem insistido no aumento do limite, ao mesmo tempo que propõe, por exemplo, um aumento de 1,6% nos salários dos médicos. Uma valorização salarial que Paulo classifica considera “uma ofensa” do Ministério da Saúde aos médicos. “Ou estão a brincar ou estão a tentar ofender-nos”, critica Paulo Passos.

Paulo Passos não vê melhorias salariais há 20 anos. “É insustentável”, diz

O médico diz estar há 20 anos com o mesmo vencimento. “Fiz o contrato em 2003 e ainda não tive melhoria remuneratória. Apesar de ter progredido na carreira, isso não se refletiu no vencimento. Isto é insustentável”, diz, acrescentando que os médicos do SNS “são mal pagos” e que esse é um dos fatores que levam à saída de profissionais em direção ao privado, mas também ao estrangeiro, onde os salários são incomparavelmente maiores. “O rácio de médicos em Portugal é dos mais elevados da União Europeia, não temos falta de médicos no geral. Mas nos hospitais do SNS há falta de médicos — isto significa que a carreira hospitalar não é atrativa“, pelo que é necessário, defende, uma revisão das grelhas salariais.

No entanto, e para além do vencimento, os médicos ouvidos pelo Observador coincidem num ponto: a falta de condições de trabalho, que se traduz na falta de consumíveis, aparelhos ou meios de transporte e que deixam o SNS em clara desvantagem perante o setor privado. O cirurgião Paulo Passos dá três exemplos. “Há dois ou três meses, durante semanas não tivemos máquinas de agrafos cirúrgicas. É incompreensível”, explicando que o processo de sutura é muito mais moroso sem estes aparelhos. “Numa situação que demoro um minuto a fechar com agrafos, posso demorar 15 ou 20 minutos a suturar à mão. É um ganho de tempo importante em termos de eficácia e produtividade”, diz, garantindo que, no privado, onde também trabalha, este problema “nunca se colocaria”.

O cirurgião revela também que faltam frequentemente luvas “de determinados tamanhos”, um material imprescindível numa unidade hospitalar. “Na área cirúrgica, notamos que falta investimento em materiais, não há renovação dos materiais que existem. Isto tem sido recorrente ao longo dos anos e tem-se vindo a agravar”, diz o especialista, revelando que tem colegas médicos que não têm sequer cacifos para guardar os pertences.

“O SNS está num plano inclinado, a descer, todos os dias perde elementos e o Governo é incapaz de responder às necessidades”, alerta o cirurgião.

Na Saúde Pública, é preciso “mendigar carros” e vencer a “burocracia”

Estevão Soares dos Santos é de outra geração. Tem 38 anos, é médico de Saúde Pública e trabalha na Unidade de Saúde Familiar Zé Povinho, nas Caldas da Rainha. No entanto, as queixas são semelhantes. Falta de condições de trabalho e nenhuma progressão salarial nos últimos anos.

Na unidade onde este médico trabalha, não há viaturas de serviço, essenciais para os médicos de Saúde Pública poderem exercer o seu trabalho, que passa por manter a população saudável. “Temos de mendigar um carro, para podermos ir fazer as colheitas de água, por exemplo, uma vez que temos de garantir que a água é potável”, explica, revelando que muitas vezes os médicos e técnicos de saúde ambiental se vêm obrigados a usar os seus próprios carros. Para além disso, quando conseguem recolher as amostras, fazer com que estas sejam analisadas é tudo menos fácil. “O laboratório mais próximo fica a 60 quilómetros. Somos obrigados a fazer centenas de quilómetros. É desmotivador”. O jovem médico lamenta que não lhe sejam dadas condições para fazer aquilo para o qual foi formado: proteger a população.

"As progressões estão praticamente paradas. É uma vergonha", diz o médico Estevão Soares dos Santos

Entre os “obstáculos” que Estevão Soares dos Santos aponta e que lhe dificultam o trabalho estão também a burocracia, que se intensifica quando é necessário tratar população imigrante. “Ainda esta semana, vi duas crianças, que vieram do Brasil, uma com dezassete e outra com treze anos, e não consegui que elas fizessem exames básicos porque não têm número de utente. Nestes casos, temos de enfrentar uma enorme carga burocrática, que nem sempre conseguimos ultrapassar“, diz o médico. Para além disso, o médico tem de pedir aos utentes que se desloquem a Lisboa, a 90 quilómetros de distância, para fazerem o rastreio no INSA (Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge), pelos seus próprios meios — algo, muitas vezes, incomportável para pessoas com pouca disponibilidade financeira.

A falta de rastreio é particularmente grave uma vez que, alerta o médico, estão em crescendo os casos de “doenças transmissíveis, como tuberculose, hepatites A e outras”, infeções que tinham uma incidência baixa, mas que “nos últimos anos, têm vindo a aumentar”. No caso da tuberculose, por exemplo, a incidência na população imigrante é muito superior à da população portuguesa. “Quando peço exames para tentar detetar casos de tuberculose, por exemplo, é extremamente difícil o acesso a esses exames”, denuncia.

Outra das funções dos médicos de Saúde Pública é planear e promover projetos e políticas públicas de promoção da saúde (em áreas como a diabetes, saúde mental, controlo do tabagismo, alimentação saudável, entre outros). Uma tarefa dificultada, mais uma vez, pela falta de meios a nível local. “No caso da saúde escolar, não temos dinheiro para coisas tão simples como imprimir materiais, flyers, folhetos. Não existe orçamento e pedem-nos que façamos omeletes sem ovos, isto é, que tratemos da saúde das populações sem meios”, sublinha, revelando que muitas vezes as unidades de saúde têm de recolher donativos para conseguir concretizar os programas.

Estevão Soares dos Santos admite dificuldades no dia-a-dia com o ordenado que tem: dois mil euros líquidos

Quando ao vencimento, Estevão Soares dos Santos diz que os médicos já “estão preparados psicologicamente” para a estagnação salarial. “As progressões estão praticamente paradas“, lamentando as quotas impostas pelo Ministério da Saúde para as progressões, e que não levam em conta, realça, o bom desempenho dos médicos. “É um vergonha”, indigna-se, antecipando que os médicos que fiquem no SNS nunca consigam atingir o grau de Assistente Graduado Sénior, o topo da carreira hospitalar.

No seu caso, e apesar de trabalhar há já dez anos no SNS, recebe pouco mais de dois mil euros líquidos por mês. E, conta, uma parte importante do vencimento (800 euros) provém de um suplemento, de disponibilidade permanente — obrigatório para os médicos de Saúde Pública — que o obriga a estar de prevenção durante todos os dias do ano e que, diz, lhe limita as deslocações nos dias em que não está a trabalhar.

O médico admite que, com o salário estagnado e o custo de vida a aumentar, as dificuldades têm aumentado. “Tenho filhos e uma casa para pagar. Vejo-me aflito, com este ordenado, para conseguir pagar as despesas todas. Se vivesse em Lisboa, era incomportável”, diz o especialista, que já ponderou sair do SNS. Ao Observador, revela que já recebeu propostas do setor privado que mais que triplicavam o seu ordenado atual. “Só por carolice ficamos”, admite.

Cátia Martins trabalha numa USF sem ar condicionado e com mais de 1700 doentes a cargo

A médica Cátia Martins também fez greve nos dois primeiros dias de agosto. “As negociações com o Ministério arrastam-se e as propostas não são dignas para a nossa profissão”, diz. Cátia Martins é médica de família, na USF Azevedo Campanhã, no Porto. Esta unidade está instalada num edifício antigo, onde as más condições de trabalho são evidentes, diz. “No verão, trabalho com uma ventoinha no gabinete. Não tenho sequer ar condicionado nem janela por onde entre alguma luz“, denuncia a especialista, de 38 anos.

A médica sublinha as dificuldades em dar resposta a toda a lista de utentes que tem a seu cargo, mais de 1700 pessoas. “A lista é muito extensa e isso compromete o acesso das pessoas à consulta”, lamenta, garantindo que “queria estar mais disponível para os utentes”, o que, muitas vezes, só consegue com recurso a horas extra. Cátia Martins vê por dia entre 20 a 30 utentes, a que somam os contactos telefónicos, pedidos de medicação e consultas extra. “O volume de trabalho vai muito para além das consultas presenciais”, garante, realçando que essa”situação compromete a vida pessoal de muitos médicos”.

Tal como o seu colega da região Oeste, a médica confirma que a progressão remuneratória “não existe”. “Tem de haver vontade política para aumentar o nível remuneratório, de modo a fixar os médicos no SNS”,  diz.

Enquanto as greves dos médicos se sucedem (o Sindicato Independente dos Médicos convocou greve às horas extraordinárias nos centros de saúde até 22 de agosto), as negociações entre o Ministério da Saúde e os sindicatos, que se arrastam há 15 meses, continuam a decorrer, sem acordo à vista.

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