“Please allow me to introduce myself“. A frase, que em português significa qualquer coisa como “permitam-me que me apresente” abre o icónico “Sympathy for the Devil” dos Rolling Stones, tema que era frequentemente ouvido nos concertos dos Everest, uma banda argentina de tributo ao quarteto britânico. Naqueles dias, o “Mick Jagger de serviço” dava pelo nome de Javier Milei, e foi precisamente apresentar-se ao mundo o que o economista de 52 anos fez no domingo, ao vencer, contra todas as expectativas, as primárias Presidenciais na Argentina.

O terramoto político provocado pelas primárias teve duas caras: de um lado, o ar de derrota e desapontamento nas sedes das duas maiores coligações eleitorais, o Juntos Pela Mudança e a União Pela Pátria (a coligação atualmente no poder), que ficaram em segundo e terceiro lugar, respetivamente; do outro, a alegria de centenas de pessoas no Hotel Libertador, em Buenos Aires, onde a campanha do candidato de extrema-direita acompanhou os resultados e onde, ladeado pela sua vice-Presidente (apologista da ditadura militar que vigorou no país entre 1976 e 1983), declarou representar a “verdadeira oposição” ao sistema, enquanto se entoavam cânticos efusivos de “Milei Presidente”.

Não é certo que chegue à Quinta de Olivos (residência oficial do Presidente da Argentina) — apesar de tudo, as duas coligações do arco do poder argentino juntas ainda o superam por uma margem significativa de mais de 25 pontos — mas o certo é que a noite de domingo representou um passo em frente nesse caminho. As sondagens davam-lhe uma votação na ordem dos 20%; acabou por chegar aos 30,06% que, de acordo com a lei eleitoral argentina, o colocam mais perto de uma vitória — precisa de obter uma percentagem 45% dos votos, ou 40% com uma vantagem de 10 pontos para o segundo classificado na primeira volta das eleições gerais, a 22 de outubro, para ser declarado Presidente.

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As posições radicais do auto-denominado “economista anarco-capitalista”, são conhecidas e assumidas pelo próprio. Entre outras coisas, Milei defende o fim do Banco Central e a dolarização da moeda argentina que, diz, iria “acabar com a inflação” galopante no país, bem como um reordenamento do Estado para reduzir os gastos públicos em 15%.

As áreas em que planeia cortar são conhecidas: a educação, a saúde e a segurança social. O vencedor das primárias opõe-se à escolaridade obrigatória — “não podem obrigar as pessoas a fazer algo”, afirmou durante a campanha — e propõe-se a combinar os Ministérios da Educação, da Saúde e da Segurança Social numa só tutela, que denomina “Ministério do Capital Humano”.

Essa ideia de capital humano, e de um Estado que se assemelha ao máximo ao funcionamento do mercado, deve, no seu entender, estender-se ao próprio corpo humano. “A minha primeira propriedade é o meu corpo. (…) Se, por algum motivo, quiser desfazer-me de uma parte do meu corpo, qual é o problema?” afirmou numa entrevista em que defendeu a legalidade da compra e venda de órgãos. “É mais um mercado”, sustentou.

Os ideais liberais e de autonomia corporal não se estendem, no entanto, a temas como o aborto. Javier Milei é contra a interrupção voluntária da gravidez, que classifica como “homicídio”. E, ao contrário de alguns dos seus outros colegas ideológicos, não contempla exceções. “É contra [o aborto] mesmo em casos extremos, como uma menina de 10 anos que seja violada?” foi questionado numa polémica entrevista em 2021. A resposta não deixou margem para dúvidas. “Um delito compensa outro delito? O assassinato nunca pode ser justificado”.

Acima de tudo, o principal elemento da ideologia do candidato é a oposição aos que descreve como os ideais da esquerda radical e ao “marxismo cultural”. As “mentiras do socialismo”, diz, estendem-se até ao aquecimento global e às alterações climáticas (que diz não ser real) e a práticas como a educação sexual nas escolas, que acusa de ser uma tentativa de “destruir a família” e “eliminar os seres humanos”.

Há, ainda assim, quem defenda que as posições radicais não são representativas da maioria do eleitorado que votou no economista. “Para a grande maioria, Milei representa saturação e frustração” com o sistema, escreveu o jornalista Luis Bruchstein, na sua análise às eleições no jornal Pagina 12. “Um candidato com estas características resulta de uma má situação económica, de situações extremas de meses de confinamento devido à pandemia, a que se soma o golpe desesperante e permanente da inflação”.

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É este último ponto que mais tem fustigado os argentinos. O atual governo liderado por Alberto Fernández (que tem como vice-Presidente Cristina Kirchner, ela própria Chefe de Estado entre 2007 e 2015, e primeira-dama do Presidente Néstor Kirchner de 2003 a 2007), não conseguiu contrariar a crise económica. Pelo contrário, desde 2019 a inflação na Argentina mais do que duplicou, situando-se agora nos 115,6%, a moeda desvalorizou e a pobreza aumentou — fatores que, aliados ao mau resultado eleitoral, fragilizam ainda mais a posição de Sergio Massa, ministro da Economia de Fernández e candidato do União Pela Pátria às eleições.

É este o terreno político no qual Milei, atualmente deputado da câmara baixa do Congresso, pretende capitalizar. “Uma Argentina diferente é impossível com os mesmos de sempre”, declarou no domingo perante os seus apoiantes no Hotel Libertador, ao mesmo tempo que, no rescaldo desta primeira vitória, prometeu “acabar não só com o kirchnerismo, como também com toda a casta política e parasitária que arruinou este país”.

Foi o tiro de partida para uma campanha eleitoral que pode ver a extrema-direita chegar à Presidência, com um candidato que chama a si o mote de “anti-sistema” e que promete baralhar as contas políticas do país. Uma coisa é já certa, no entanto: ao contrário de em “Sympathy for the Devil”, já ninguém precisa de adivinhar o nome de Javier Milei, porque a partir de ontem, todos ficaram a conhecê-lo. Resta tentar perceber qual a “nature of the game [natureza do jogo]” que se propõe jogar.

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