Aqueles que visitarem a exposição Arte em São Bento serão confrontados, num primeiro momento, com uma caixa de correio. A instalação, da autoria do artista plástico Rodrigo Oliveira, encontra-se num local conspícuo: diretamente por baixo dos retratos oficiais dos vários primeiros-ministros que passaram pela residência oficial dos vários chefes de Governo nos últimos 50 anos, no período pós-25 de Abril. Crucial para o entendimento da peça é também a sua falta de função utilitária e natural; apesar de se tratar de uma caixa de correio, encontra-se vazia e interditada à correspondência. Uma caixa de correio que não recebe cartas, diretamente abaixo dos primeiros-ministros do período democrático.

A ideia é simbólica e intencional. Ao Observador, o curador da exposição, Sérgio Fazenda Rodrigues, assume que o objetivo é “provocatório” – não com “uma leitura ofensiva das coisas, mas apenas uma tentativa de indagar e questionar”, procurando sublinhar aquele que é um dos pilares que sustentam a democracia: a comunicação. “Acredito que o exercício da democracia é feito, precisamente, na troca entre as pessoas, de opiniões, perspetivas e visões”, acrescentou o curador.

Este ângulo assumidamente político dá o mote para a exibição deste e de outras obras multidisciplinares (da pintura à escultura e às artes plásticas) que, durante os próximos meses, poderão ser visitadas na residência oficial do primeiro-ministro, no Palacete de São Bento. A Arte em São Bento, que vai para a sua sétima edição, reúne este ano 40 trabalhos de 33 artistas, este ano provenientes da Coleção Manuel de Brito, um dos maiores acervos privados portugueses de arte contemporânea do século XX.

A inauguração acontece no dia 4 de outubro, pelas 17h00, e a abertura ao público está prevista para o dia 5, Dia da Implantação da República. A exposição tem entrada livre e vai poder ser visitada entre as 15h00 e as 19h00, no primeiro domingo de cada mês até setembro de 2024.

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As 40 peças expostas foram escolhidas de entre um leque de mais de 2 mil, um processo que o curador responsável admite não ter sido fácil. “A abordagem começa por definir um fio condutor para que a exposição faça um sentido e tenha uma lógica, e não seja simplesmente o decorar de um conjunto de salas”, explica.

Fazenda Rodrigues elencou as três linhas orientadoras do processo de escolha. Primeiro, há a questão dos artistas a serem representados. Nomes incontornáveis da Coleção Manuel de Brito, como Júlio Pomar, Paula Rego ou Eduardo Batarda populam os halls e salas de reuniões de São Bento, numa celebração da geração de artistas da década de 1970 que, segundo o curador, “abriram caminho à diversidade, à liberdade e à multiplicidade que hoje a arte contemporânea tem”. Por outro lado, a justaposição destas obras com outras de nomes mais recentes da arte contemporânea portuguesa tenta estabelecer um diálogo direto entre as gerações, permitindo “perceber como é que os discursos de ambos se conectam”.

Há também uma lógica de relação entre as obras expostas e o espaço circundante, que procura sublinhar a relação intrínseca entre os vários elementos da natureza – tema que, no entender de Fazenda Rodrigues, é central à coleção. Com efeito, à medida que se avança no espaço, torna-se claro que o fio condutor é informado pela própria geografia de São Bento, quase como se o palacete fosse, também ele, parte integrante da exposição.

A ideia de cruzar tudo isto tem que ver com o celebrar ou o festejar da vida que pulsa em tudo o que nos circunda e que nos constitui. E que vai evoluindo, de um sítio mais distante para um sítio mais interior, e de um lugar mais pesado para um lugar mais leve”, diz o curador.

Pelo meio, a exposição vai reforçando a sua dimensão política. É esta a terceira linha orientadora do projeto deste ano – o de “encontrar pequenos apontamentos de natureza política que vão inquietar o olhar e questionar a nossa maneira de pensar”.

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É o caso, por exemplo, de “Cheiras a Guerra”, escultura de Rui Chafes, uma abstração negra que procura explorar a relação entre a guerra e o corpo humano e que, colocada a meio da escadaria de São Bento, tem resposta uns degraus acima num pequeno quadro colorido de António Palolo, que retrata mutilados de guerra africanos. “São dimensões e linguagens completamente opostas: uma é muito pequenina, festiva, colorida e exuberante, e a outra é muito grande, densa, pesada e fechada… funciona pela linguagem, pelo tamanho e pela posição”, diz Fazenda Rodrigues.

No mesmo sentido, outra obra que tem como foco inquietar o espectador é uma instalação de Ana Pérez-Quiroga, que se traduz num saco de trincheira de guerra com o lema da Revolução Francesa (e do Partido Socialista) – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” – inscrito a vermelho e que, intencionalmente, é colocada num sofá, como se de uma decoração se tratasse.

“É um instrumento de resistência e que está, contraditoriamente, colocado em cima de um sofá como se fosse uma almofada, com um uso que não é o inicial”, explica o curador ao abordar a inquietação que o objeto pretende provocar. Esta inquietação é exacerbada pela natureza móvel do objeto que, ao longo do período de exposição, será sempre colocado num local diferente. “Tem de haver um saber lidar com, e um saber estar atento a (…) [para] não nos sentarmos confortavelmente com a almofada atrás das costas sem ler o que lá está e perceber o que aquilo é”.

A mensagem assume uma importância redobrada, quando se assinala meio século anos sobre a Revolução de Abril de 1974. O peso da data não foi esquecido, e potencia ainda mais as muitas “provocações” que irão habitar o espaço de São Bento ao longo dos próximos meses. De regresso à caixa sem correio colocada à entrada, Fazenda Rodrigues assume que esta dinâmica, daquilo que foi feito e do que está ainda por fazer, é uma das chaves para compreender a exposição. “Da mesma maneira que esta coleção e todas as outras são entidades que estão em crescimento e evolução, a própria democracia é algo pelo qual nós lutamos e trabalhamos diariamente, com todas as nossas ações. É um agir e um pensamento constante”, defende.