Quando se estreou, em 2016, a série da Netflix The Crown foi recebida com aclamação geral. Porém, conforme as temporadas se aproximavam de momentos que nos são historicamente mais próximos e que fazem inequivocamente parte da memória coletiva (como o atribulado casamento e posterior divórcio de Carlos e Diana), a dúvida levantou-se: temos distanciamento que chegue para fazer disto ficção? E onde fica a fronteira entre a realidade dos factos e a liberdade criativa? This England, a série que agora se estreia finalmente em Portugal via TVCine Edition (no Reino Unido passou ainda no ano passado) cilindra totalmente estas inquietações. É toda ela sobre a pandemia da Covid 19 e em cima das decisões de um homem, Boris Johnson — que, apesar de neste momento ser o já antepenúltimo primeiro-ministro britânico em exercício de funções, apenas se demitiu do cargo em julho de 2022. Historicamente, há meio segundo, portanto.
This England — (não confundir com o filme This is England, de 2006) tem seis episódios de cerca de uma hora cada, num estilo que mistura o drama, o documentário (as imagens reais constituem uma boa porção do tempo total) e a sátira. É criada e escrita pela dupla Michael Winterbottom (realizador, entre muitos outros, de 24 Hour Party People) e Kieron Quirke (de sitcoms de pouca tração, como Defending The Guilty). A receção no país de origem foi muito dividida — na verdade, a reboque do facto da própria figura de Johnson suscitar ódios e paixões. Falamos do homem que, por um lado, venceu as eleições de 2019 de modo esmagador, com a maior percentagem de votos para um partido desde 1979; mas, por outro, saiu em desgraça depois de 50 membros do seu governo se terem demitido em protesto. O público português poderá, assim, desfrutar de This England com um distanciamento impossível ao cidadão britânico. Isto apesar de, e fica o aviso, a série necessitar de alguma cultura geral sobre os acontecimentos e figuras para poder ser totalmente compreendida.
[o trailer de “This England”:]
https://www.youtube.com/watch?v=JCjdU478pIc
E é talvez neste conhecimento que pode residir um dos anticorpos (trocadilho não propositado) desta série. Será que queremos mesmo mergulhar em quase seis horas intensas de recordação do que foi esbarrar contra uma pandemia que teve um impacto brutal nas nossas vidas, talvez com consequências a sentirem-se até hoje? E mais: estamos prontos para analisar o que aconteceu? É preciso algum estômago (ou alguma capacidade de dissociação) para relembrar o primeiro contacto com as máscaras ou as piadolas disto ser um problema lá dos chineses. O ritmo é constante, com muita informação em cada episódio e, curiosamente (e pelo menos nos dois primeiros episódios, os que foram disponibilizados à imprensa) pouca presença em ecrã do grande protagonista. This England não é tanto sobre o Boris, que aqui parece mais preocupado com a sua vida pessoal do que com o estado na nação, mas mais sobre os jogos de bastidores perante o vírus que aí vinha.
Johnson é desempenhado pelo ator/realizador/guionista/oscarizado Kenneth Branagh, aqui irreconhecível graças a uma série de próteses e a toda uma fábrica de silicone. Porém — e apesar de Branagh acertar em cheio nos tiques, na voz e na linguagem corporal — a cara cuidadosamente recauchutada não se assemelha ao ex-PM britânico, parecendo mais a máscara de Michael Myers no clássico filme de terror Halloween. Ophelia Lovibond (da série Minx) faz de Carrie Symonds (com quem Boris casou em 2021, tendo engravidado logo no início da pandemia) e Simon Paisley Day é o sempre detestável Dominic Cummings (Day que, ironicamente, aparece no filme Brexit, mas a fazer de Douglas Carswell — aí o papel principal de Cummings coube a Benedict Cumberbatch). Shri Patel é o então ministro das finanças (e atual PM) Rishi Sunak.
A escolha de Kenneth Branagh parece ainda mais certeira se repararmos que o nome da série é uma citação de Shakespeare (de uma passagem de Ricardo II), dramaturgo intrinsecamente ligado não só à carreira do ator em questão, mas também uma das grandes paixões de Boris Johnson. O político (e ex-jornalista) está encarregue há mais de uma década de lançar uma biografia definitiva do maior autor britânico de sempre, tendo recebido um adiantamento de 88 mil libras por um livro que (ainda) não lançou – e nem sabemos, na verdade, se vai lançar. O já batizado Shakespeare: The Riddle of Genius (mencionado várias vezes na série) terá sido ultrapassado por um entretanto encomendado livro de memórias políticas, para o qual recebeu um adiantamento mais rechonchudo: mais de 500 mil libras. Segundo uma das falas de Boris em This England, esse valor equivale a três anos de salário como primeiro-ministro.
Esta aura shakespeareana serve o lado eminentemente trágico da série, mas não esqueçamos que o dramaturgo também escrevia comédia. Não é por isso ingénuo que This England ande entre os dois tons, até porque Boris, o verdadeiro, é um entertainer por natureza, mesmo na vida real. Veja-se, por exemplo, o momento em que saiu de casa com um tabuleiro repleto de canecas desirmanadas de chá para servir aos jornalistas que aguardavam declarações do na altura ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros, então no meio de uma polémica por ter comparado as mulheres de burka a marcos do correio. Estávamos em 2018, cerca de um ano antes de ter vencido as eleições com notável vantagem.
This England é então uma série de contrastes. Tragédia com comédia, ficção com imagem real, entretenimento com a tensão de um momento que se calhar não queremos recordar quando estamos no sofá. O resultado final é eficaz, mas predestinado a envolver sobretudo quem já tenha algum fascínio, benéfico ou nefasto, pela sua figura principal.