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Shane MacGowan (1957-2023): o bom irlandês

Este artigo tem mais de 6 meses

O inquieto que queria fazer a revolução com o brinde, do abraço e do acorde certo. Líder dos The Pogues, construtor de um legado punk celta singular, viveu a celebração que cantou. Morreu aos 65 anos.

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McGowan foi sempre fiel ao seu contexto, ao seu berço. Irlandês, teve a proeza de integrar o folclore gaélico no punk. As adversidades enfrentam-se com festa, disseram-lhe sempre todas as lições de vida

Getty Images

McGowan foi sempre fiel ao seu contexto, ao seu berço. Irlandês, teve a proeza de integrar o folclore gaélico no punk. As adversidades enfrentam-se com festa, disseram-lhe sempre todas as lições de vida

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Os dias são sempre de chuva, está frio, o fim do mês está aí. Não morreu Thatcher, mas morreu Kissinger. Nos noticiários não se fala de outra coisa. Lá em casa, pai e mãe chegam derreados de mais um dia a trabalhar horas a mais e a receber dinheiro a menos. Os tempos eram como os de agora, crises sociais, económicas e políticas, o desencanto com o mundo. Não há dinheiro para aquecimento, os jovens sentem não ter futuro, o caminho pela frente avizinha-se de várias gradações de cinzento. No Reino Unido de ontem como num outro mapa qualquer de hoje, as lutas são em essência as mesmas. No final dos anos 70 e inícios de 80, nasciam várias bandas de punk rock, uma forma de indignação juvenil que advogava lutas a vários níveis, como fizeram os The Clash, por exemplo. Reivindicavam por outras políticas, contra a alienação do estado social, contra um individualismo crescente.

O texto delonga-se em questões políticas, mas não é por acaso. O punk é não apenas um estilo musical. Aliás, o estilo musical é um derivado de uma atitude, uma atitude de contracultura a diversos níveis, a começar pelo DIY, do it yourself. Não conseguir começar uma banda com apoio de uma editora ou de um manager mainstream fez com que as bandas punk começassem por organizar os seus próprios concertos, fizessem as suas próprias roupas, colocassem alfinetes de dama tanto na t-shirt rasgada como no furo da orelha. Se os The Clash de Joe Strummer gritavam de pulmões cheios “White riot/ I wanna riot/ White riot/ A riot of my ow”n (“Motim branco/ Quero fazer um motim/ Motim branco/ Um motim só meu”), os The Pogues optaram por outra forma de amor. O punk podia ser gritado, apelar à consciência política e social, instigar à cidadania ativa, encontrar nos riffs demasiado altos e demasiado simples – mas plenamente eficazes – uma forma de alienação do mundo.

Mas não com os The Pogues. Os The Pogues optaram por levar o ativismo político e social para dentro de casa. Ou melhor, para dentro do pub. Não empunhavam guitarras e acordes ensurdecedores, que levavam os fãs a um estado de frenesim físico e mental de embate, de relação até às últimas consequências com a matéria, de se atirarem uns contra os outros, de se mandarem para o chão, de rastejarem numa demanda metafísica que conhecia apenas o caminho e não o fim. Não, os The Pogues encontraram outra forma de amor. Com a matéria do punk, a essência estava lá – não tenham dúvida alguma –, mas optaram por dar as mãos. Entoar cânticos. Há lá forma mais bela para encontrar esperança do que à mesa, suja de tanta bebida entornada, sempre a pedir um copo mais, até que o dono do bar nos mande embora. É de manhã, o dia começa a raiar, a luz começa a fazer-se notar por entre o nevoeiro. Só mais uma – uma canção, uma rodada.

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Os Pogues em 1983

Gamma-Rapho via Getty Images

Os The Pogues foram isto, continuarão a ser, tal como Shane MacGowan, o co-fundador e vocalista da banda que se juntou numa noite, presumimos que fria, em King’s Cross, Londres, e decidiu enveredar por uma linha de interpretação muito própria do punk. Não sem consequências. Shane McGowan morreu esta sexta-feira, 30 de novembro, aos 65 anos. Há um ano, MacGowan tinha sido hospitalizado com uma encefalite viral e passou, desde então, vários meses nos cuidados intensivos.

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Não há The Pogues sem MacGowan. E MacGowan viveu à sua maneira, a pedir sempre mais uma rodada, a entoar sempre mais uma canção, a acabar a noite com os amigos numa roda de braços entrelaçados a cantar num rodopio, da circunferência ao centro e de volta. E não falhava aos amigos – e a nós – nas noites mais obscuras, mais difíceis de aguentar: como é o caso da noite de véspera de natal. Reunamos todos os indigentes, todos os solitários, todos os sem-abrigo, todas as pessoas sem exceção, e façamos uma festa, diria MacGowan.

Quantos de nós – pelo menos aqueles que têm mais de 40 anos – entoaram em noites de copos um dos hinos dos The Pogues. MacGowan foi sempre fiel ao seu contexto, ao seu berço. Irlandês, teve a proeza de integrar o folclore gaélico no punk. As adversidades enfrentam-se com festa, disseram-lhe sempre todas as lições de vida. Na essência do seu ser celta está, naturalmente, a diáspora irlandesa. Não é por acaso que as letras das canções dos The Pogues falam muitas vezes da vontade de ir para os Estados Unidos, essa terra de quem sonha por uma vida melhor, como é o caso da canção The Sunnyside of the Street, do álbum Hell’s Ditch, lançado em outubro de 1990 e o último com Shane MacGowan como vocalista da banda: “Tried to make it to the USA/ Ended up in Nepal/ Up on the roof with nothing/ at all/ And I knew that day/ I was gonna stay right where/ I am” (“Tentei ir para os EUA/ Acabei no Nepal/ No telhado sem nada/ E soube nesse dia/ Que ia ficar onde/ Estou”).

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Nick Cave e Shane McGowan em 1992

Redferns

Os The Pogues viriam a editar dois discos mais: Waiting for Herb, em 1993, e Pogue Mahone, em 1996. Com MacGowan aos comandos, editaram apenas quatro álbuns, Red Roses for Me, em 1984, Rum Sodomy & the Lash, no ano seguinte, If I Should Fall from Grace with God, em 1988, e Peace and Love, um ano depois. Foi uma década marcada por cinco discos marcantes.

Os clássicos são muitos. A Rainy Night in Soho, do EP Poguetry In Motion, de 1986, canta assim, acompanhado por um lullaby enternecedor e um saxofone a dar uns pequenos ares da sua graça: “I’m not singing for the future/ I’m not singing of the past/ I’m not talking of the first times/ I never think about the last” (“Não estou a cantar para o futuro/ Não estou a sonhar com o passado/ Não estou a falar das primeiras vezes/ Nunca penso nas últimas”).

Às primeiras notícias da sua morte, a sua mulher, Victoria Mary Clarke, escreveu, nas redes sociais: “Shane será sempre a luz que tenho diante de mim, a medida dos meus sonhos e o amor da minha vida… Sou muito abençoada por tê-lo conhecido, por tê-lo amado e por ter sido tão infinita e incondicionalmente amada por ele”.

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Shane McGowan em palco em 2014

AFP via Getty Images

Um ser que defendeu o amor na sua raiz mais pura: as origens (os pais eram irlandeses imigrantes em Kent), a cultura, a companheira, a família, mas também a sapiência – sim, não se iludam, neste mar de aparente caos de vida e obra, álcool, estupefacientes, havia um fio de inteligência a ler o Zeitgeist – de ser contra: contra a estética alinhada dos bonitinhos, dos privilegiados, os dos indiferentes pelo outro. Era contra a norma arrumada, ponto. A sua imagem, cabelo desalinhado e dentes podres e tortos, assim o confirmava: não era importante. Pelo menos, não lhe interessava. Procurava outra coisa nas pessoas, o facto de existirem era o mais importante: o direito a estarmos todos, sem exceção, neste mundo.

A costela irlandesa deu-lhe isso. Como lhe deu a ironia, como podemos ouvir em Tuesday Morning, por exemplo (do disco Waiting Herb): “Too many sad days/ Too many Tuesday mornings/ I thought of you today/ I wished it was yesterday/ Morning/ I thought of you today/ And I dreamt you were/ dressed in mourning” (“Demasiados dias tristes/ Demasiadas manhãs de terça-feira/ Pensei em ti hoje/ Desejei que fosse ontem/ De manhã/ Pensei em ti hoje/ E sonhei que estavas/ Vestida de luto”). Mas punk é também esperança, sempre. Não há contraditórios, só camadas e camadas de vida complexa. MacGowan sabia isso e cantava isso como poucos.

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