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De onde vem esta nêspera e até onde pode chegar?

Este artigo tem mais de 6 meses

Os protagonistas não são novos e os dilemas sem filtro continuam a desafiar a norma. "Uma Nêspera no Cu" voltou aos palcos. Fomos ver para tentar perceber porque continua o fenómeno a esgotar salas.

Filipe Melo, Bruno Nogueira e Nuno Markl entre o público durante a primeira noite neste regresso aos espectáculos ao vivo de "Uma Nêspera no Cu"
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Filipe Melo, Bruno Nogueira e Nuno Markl entre o público durante a primeira noite neste regresso aos espectáculos ao vivo de "Uma Nêspera no Cu"

Inês G. Lourenço

Filipe Melo, Bruno Nogueira e Nuno Markl entre o público durante a primeira noite neste regresso aos espectáculos ao vivo de "Uma Nêspera no Cu"

Inês G. Lourenço

Entre os corredores do centro comercial Vasco da Gama, no Parque das Nações, em Lisboa, ouve-se vindo da voz de uma rapariga no meio de uma enchente de gente cheia de fome, como quem atira uma frase para o ar a ver quem a apanha: “Umaaaa nêspera no cuuu”. Um grito aparentemente sem nexo mas que ali, naquele momento, funcionou quase como punchline para um momento de asfixia social. Diz a internet que a altura certa para a colheita do dito fruto está algures entre os meses de maio e outubro, o que pode indicar uma dificuldade acrescida para encontrar o produto laranja no meio de tamanha azáfama. Afinal, a rapariga, quase como um amolador de facas, acabava de anunciar o espetáculo prestes a decorrer no Altice Arena dali por uma hora. E mostrava a essência do fenómeno: a viralidade orgânica que transformou uma brincadeira de amigos num sucesso de bilheteira.

Uma Nêspera no Cu, espectáculo que junta em palco os humoristas Bruno Nogueira e Nuno Markl com o pianista Filipe Melo, serve de plataforma para debater dilemas desconfortáveis, situações que nos fazem tapar os olhos de tão confrangedores, ideias sem filtro algum. Com ajuda, outra vez, de convidados, esta tríade de comédia voltou a pôr de pé um projeto iniciado em 2015, no formato podcast (e no Youtube com a animação de João Pombeiro), que já tinha tido vários espectáculos esgotados entre Lisboa e Porto há quatro anos. O regresso, outra vez com os bilhetes todos vendidos, vai até 9 de dezembro na maior sala do país e depois, a 16, 17 e 20 deste mês, estará no Porto (Super Bock Arena), não fugiu ao formato — e assim agrada ao público rendido à partida — mas reservou algumas surpresas. Ou talvez possamos descrever os momentos não anunciados como “muito errados”, de tão certos que estão naquele formato. Mas não façamos spoilers, respeitemos a vontade dos autores.

Para os mais esquecidos e para os que não sabem de todo o que acontece nas noites Uma Nêspera no Cu, convém explicar genericamente o que acontece. Cada um dos participantes tem a missão de desenvolver um dilema, que é solucionado com duas opções: uma é terrivelmente má e a outra é sempre ainda pior. Pode envolver figuras públicas, pode ter a ver com o corpo humano. Pode envolver diferentes gerações, das mais novas, quase acabadas de nascer, aos mais idosos, a quem poderá sair a sorte grande no fim de vida às custas de tudo isto. Se tiver violência física, tatuagens, drogas ou situações que coloquem em risco a carreira de qualquer um, ainda pior. Aliás, melhor: para o público. Existe, por isso, um leque vasto de opções. E de ações. A criatividade para propor as situações mais desadequadas que desafiem um estado mental saudável é infinita. Tem é sempre de se argumentar. Nenhum dilema fica por responder por mais difícil que seja.

Numa Altice Arena esgotada, o palco foi instalado no centro e assim será por mais duas noites de espectáculo

Inês G. Lourenço

À volta de uma mesa redonda, como se fosse uma ceia entre amigos de mentes retorcidas, em cima de um palco plantado no meio da Altice Arena, Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl passaram a primeira parte do espectáculo a debater os seus dilemas, sendo o mais complicado o do som. De diferentes zonas do público surgiam gritos daqueles que não conseguiam ouvir nada do que se passava em palco e o grupo tentou acudir. Em especial, Filipe Melo, acusado por Bruno Nogueira, bully para toda a obra, de falar baixo e de nem sequer saber pegar num microfone, coisa estranha para um músico. Os problemas de som pareciam karma, como se o politicamente correto também tivesse comprado bilhete. Deixam no ar a dúvida se a maior sala do país é a indicada para um formato de três pessoas a conversar. Por um lado, deixa esperança para futuros espetáculos, por outro, poderá só ter acontecido porque se trata de algumas das figuras da comédia com maior notoriedade no país. O som ficou, entretanto,  praticamente resolvido. “Pronto, podíamos ter mudado de sala”, confessou o também autor de programas como Tabu. Quem nunca parou de levar por tabela foi o pianista, deixando Nuno Markl em paz, o habitual saco de pancada de Bruno Nogueira. Na última parte do espectáculo, Filipe Melo, teria, porém, a sua derradeira vingança.

Será esta lógica de recreio, de amigos a dizerem coisas erradas que mais ninguém pode ouvir — mas que estavam ali no meio de quase 20 mil pessoas — o motivo que leva a esgotar tantas datas? Talvez sim, talvez não. O reconhecimento nacional de dois dos principais humoristas do país ligado à reputação de Filipe Melo na sua área musical — mas também na da banda de desenhada — leva a crer que o público continua a dar carta branca para qualquer palavra que saia da boca dos três. Um lugar seguro face a polícias da norma ou ativistas, que ora incomoda pelo atrevimento, ora soa a gasto, mas que também é capaz de divertir por isso mesmo, ainda que por vezes sem aparente explicação. E se o dilema não funcionar, não for forte ou não fizer rir, o que foi raro, houve sempre um alinhamento para seguir, que envolveu “pequenos” momentos musicais com artistas portugueses, uns com mais impacto do que outros dependendo do lugar onde se estivesse. E se isso também não resultasse, era chamar um convidado que foi, no caso desta primeira noite, outro humorista: Salvador Martinha, um dos elementos do programa Princípio, Meio e Fim, da SIC, que juntou estes quatro autores.

Foram também chamadas ao palco outras figuras, umas mais conhecidas, outras nem tanto. Nenhuma arredou pé ou desatou ao estalo. Pelo contrário, agradeceram a ofensa. Neste ringue, todos são amigos, não há limites. Não estamos em terra de cancelamento e essa absoluta liberdade pode ser outro dos motivos do sucesso de toda esta brincadeira de gente adulta: durante o espectáculo, é como se as regras deixassem de existir, a não ser a norma que rege o showbiz: todos precisamos, num momento ou noutro, de figuras da cultura popular, como se fossem o elo de ligação de uma harmonia efémera mas compensadora. Ou então chamem-lhe terapia coletiva, também funciona.

“Nêspera no Cu” pode não ter o mesmo efeito para quem já conhece, é certo, por ser mais fácil de adivinhar o que aí vem — e já agora, é tempo do Altice Arena resolver, de vez, os problemas de som que se arrastam há vários anos. Mas para quem não sabia ao que ia — e presenciámos facilmente essa curiosidade nas bancadas do recinto — o riso de desconforto bateu mais alto.

No fim, a rubrica um “Azar do Car****” (em que cada um tem de telefonar a uma pessoa aleatória com uma determinada frase) transformou-se num dos momentos mais altos da noite. Como as frases e as pessoas mudam de espetáculo para espectáculo, e como Filipe Melo mereceria alguma justiça social, podemos e devemos aqui revelar que foi do pianista a melhor proposta: Bruno Nogueira teve de pedir cocaína a alguém a quem, em tempos, tentou comprar uns terrenos. Nada feito. Nem cocaína, nem nada. Só rir, porque é no absurdo sem guião que está outra possível explicação para o sucesso de Uma Nêspera no Cu. Ver alguém a poder ser tudo à vontade, de maneira quase aleatória e compensar com aplausos essa alegria de simplesmente existir. Pelo meio, dizer aquilo que não se diz às mães, mas de forma a que todas elas possam ouvir. Os três ficaram-se por mais um final, no mínimo, épico e pouco feliz. A escolha depende da perspetiva, mas está sempre certa.

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