Carmen é uma mulher cigana, conhecida pela sua beleza e pelo seu jeito sedutor. De personalidade forte e libertária, acaba assassinada por Don José, apunhalada no ventre por este, depois de recusar o seu amor. Ao compor esta ópera, o compositor francês Georges Bizet (1838-1875) não estava apenas a criar umas das peças mais celebradas de sempre, estava também a dar vida a uma personagem feminina que será para sempre recordada pelo seu lado transgressor – até mesmo face à tradição clássica das óperas escritas até então. A Carmen, como criada por Bizet, é dona do seu próprio destino, mas também ela sucumbe na sua condição de mulher face ao patriarcado. O seu nome surge ao lado de muitas outras protagonistas femininas de óperas clássicas que, de forma quase normativa, morrem no fim das mesmas – por amor, doença ou simplesmente pela violência desmesurada. É este o ponto de partida de It’s Not Over Until The Soprano Dies, a nova criação da companhia de teatro Mala Voadora que, a partir de 30 óperas clássicas, recorda o papel das mulheres neste género artístico. Sobe ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, de 12 a 14 de janeiro.
Antes mesmo de entrarmos no dispositivo que se revela uma verdadeira medley de árias – algumas delas tão estilizadas pelo tempo como pela cultura pop – chega-se à frente da cortina o Prólogo que, tal como nas tragédias gregas, anuncia a temática da narrativa a que vamos assistir. “Quando esta cortina se abrir, vereis amar como se amam os seres humanos; do ódio vereis os tristes frutos. Ouvireis os gritos de dor, os uivos de raiva e risos cínicos”, explica, colocando-nos em pé de igualdade como espetadores. Tal como na ópera, também a vida é pontuada de tragédias e importa relembrar como na história muitas vezes se esquecem os subjugados e o sofrimento que estes enfrentam. É sabido: muitas óperas acabam mal e quase sempre com a morte de mulheres. O título desta criação da Mala Voadora remete para um artigo de Paul Robinson publicado no New York Times, em 1989, a propósito de um livro de Catherine Clement que recorda como a ópera nos seduz pelo poder da música e pelas vozes das grandes sopranos a que deu estrelato, mas como também mata as suas personagens, sem que ninguém se dê realmente conta do impacto dessa perda.
Foi justamente esse o fator de “um certo menosprezo” que levou o encenador Jorge Andrade a debruçar-se sobre a história das óperas, em particular do século XIX. “Quando as vemos em sequência percebemos a mortandade com que a maioria destas obras termina. E o público aplaude efusivamente a interpretação das cantoras, aplaudindo ao mesmo tempo a morte das mulheres que elas interpretam, só que passa ao lado o que estas sofreram. Se as colocarmos todas juntas parece um circo romano, marcado por uma banalidade de violência”, sintetiza. A partir dessas mortes – algumas delas bastante épicas – recorda-se o legado destas personagens que derrubaram preconceitos. No meio disso, há mortes por ciúmes, como se vê em Otelo, o suicídio da Tosca ou a morte por envenenamento, como se assiste em Lakmé ou em Suor Angelica. Conjugam-se elementos que tanto andam de mãos de dadas, como são mote de cisão: amor e ódio, fidelidade e traição, comédia e drama.
Uma casa de bonecas caídas
Para recriar todo este espírito, entretanto levantada a cortina, o espaço em que tudo se passa parece, à partida, paradoxal. No cenário de It’s Not Over Until The Soprano Dies encontra-se uma casa (poderia ser um apartamento fotografado por Jeff Walls), toda ela mobilada, com cozinha, casa de banho, sala de jantar, sala de estar e quartos para dormir. Por um momento, esquecemos os cenários de grande pompa e circunstância das óperas que aqui reverberam e as árias ganham um eco singular face à atualidade. Além disso, entre as sopranos e os tenores, há diversos intervenientes em palco, num momento de convívio aparentemente saudável, entre jogos, conversas e comida partilhada por todos. “É uma casa onde as pessoas continuam a viver o seu quotidiano de forma normal, apesar das mortes que vão ocorrendo ao longo da peça. Não queríamos colocar estas árias no ambiente em que foram apresentadas, mas num cenário que é absolutamente comum a todos no presente”, sublinha Jorge Andrade.
Nessa mesma opção estética, não deixa de existir uma ironia e humor latente face ao que vai sucedendo de trágico. Ao recriar finais de óperas, as sopranos vão caindo em palco, uma a uma, substituídas por bonecas em tamanho real, que ali permanecem até ao fim da encenação. O cenário torna-se, à medida que se entoam as diferentes árias, mais dantesco e bizarro. Ao passo que no resto da ação reina um certo hedonismo, por outro somos confrontados com as mortes absurdas em quantidade e na forma como foram escritas, que continuam a suceder rapidamente.
“Com esta peça queríamos alcançar um outro ângulo de visão sobre o papel das mulheres na ópera e termos a experiência de escutarmos estas árias, mas que neste dispositivo passam a ser mais difíceis de ver à medida que tudo se desenrola”, acrescenta o encenador. É uma ópera feminista, sugere, mas não se pretende que a mesma seja panfletária ou vista como uma crítica à ópera como género. “Não é uma desgarrada ou um festival de mortes. Acredito que hoje em dia, com um certo distanciamento, abre-se um espaço mais ambíguo que nos faz refletir sobre estas questões. E não deixamos de nos emocionar, porque muitas destas narrativas são um cânone que se mantêm influente no presente.”
Com direção musical e arranjos do compositor e maestro Nuno Côrte-Real, It’s Not Over Until The Soprano Dies conta com um acompanhamento sinfónico da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Sequenciadas numa lógica musical, as árias são cantadas em diferentes línguas, sendo que a peça inclui a legendagem traduzida dos libretos. A certa altura, já perto do final, dá-se lugar a uma marcha fúnebre, ao som de Siegfried Funeral, de Richard Wagner. Há corpos espalhados pelo chão e um tom de lamento que reina. A ópera que permitiu a tantas mulheres serem convictas e radicais nos seus ideais, também lhes reservou um destino terrível. Mas no fim de contas, foram os seus nomes que ficaram na história e que aqui se recordam por fim. Neste caso, é a tragédia que lhes volta a erguer um monumento, porque em boa verdade nada principia ou termina sem as suas vozes.