Um “dia histórico” e um “novo amanhecer”. Foi assim que a nova primeira-ministra da Irlanda do Norte, Michelle O’Neill, classificou a sua própria tomada de posse. A sua chegada ao poder é, de facto, histórica — é a primeira nacionalista, ou seja, defensora da reunificação das duas Irlandas a chegar ao cargo — e traz consigo vários desafios, desde logo por se tratar de uma mulher republicana, que cresceu no seio de uma família fortemente ligada ao IRA e já defendeu o recurso do grupo à violência. O momento não é, no entanto, de rutura, e O’Neill foca-se agora num discurso pacificador e virado para os consensos.
Foi a própria O’Neill quem reconheceu, no primeiro discurso como líder do Governo, que o dia da sua chegada ao poder seria há uns tempos “inimaginável“. “Este é um dia histórico e representa um novo amanhecer. Pela primeira vez, uma nacionalista ocupa o cargo de primeira-ministra. Este dia seria inimaginável para as gerações dos meus pais e avós”, reconheceu.
Logo depois, frisou que é “republicana” — afinal, é líder do partido Sinn Féin, que se opõe à monarquia, defende a separação da Irlanda do Norte do Reino Unido e chegou a ser considerado o braço político do IRA — mas fez questão de frisar que não a sua liderança não será sectária. “Servirei toda a gente por igual e serei a primeira-ministra de todos. Para todos os que são britânicos e unionistas, respeitarei as vossas culturas e tradições. Mas vamos percorrer esta rua de dois sentidos juntos. Vamos encontrar-nos a meio caminho. Eu fá-lo-ei, com mãos abertas e um coração aberto”, prometeu, dizendo querer “unificar o povo e a sociedade”.
I am honoured to take office as First Minister.
I am committed to representing all our people and communities.
Let us work together to build a brighter, better future for everyone. pic.twitter.com/J6uM9msUd3
— Michelle O’Neill (@moneillsf) February 3, 2024
O discurso de arranque é particularmente relevante numa altura em que existe a expectativa de perceber como é que um partido nacionalista vai, pela primeira vez, governar a Irlanda do Norte (partilhando o poder com partidos que se opõem diretamente às suas ideias base, como os unionistas que terão a vice-presidência do Governo, representados por Emma Little-Pengelly). Mas o percurso político e pessoal de O’Neill encerra outras contradições — como lembra o The Guardian, a “ironia” da sua tomada de posse é que vai liderar um estado que em teoria quereria erradicar” — e curiosidades.
A família do IRA e a gravidez acidental
Começando, desde logo, pela família de “classe trabalhadora” de O’Neill, que tem profundas ligações ao IRA. Como o Guardian conta, o pai da líder do Sinn Féin, Brendan Dorris, chegou a ser preso por ser membro do grupo, tendo-se posteriormente tornado autarca pelo mesmo partido da filha. O jornal britânico refere que também um dos seus tios, Paul Doris, angariou fundos para o IRA, e que dois dos seus primos eram membros do grupo e foram alvejados pela polícia, tendo um deles acabado por morrer.
A nova primeira-ministra da Irlanda do Norte nasceu em 1977 e engravidou aos 15 anos, o que faz com que, com apenas 47 anos, já seja avó. Sobre a sua gravidez acidental, contou ao Irish Times ,em 2021, que nesses tempos foi tratada na escola católica onde estudava “como se fosse uma praga”.
“Tive experiências muito, muito negativas quando estava grávida. A escola onde eu andava não foi particularmente solidária muitas vezes (…) Faziam-te sentir que raparigas como tu não poderiam ir à escola, essas coisas”. Pelo contrário, a família foi “um grande apoio” e a sua mãe deixou inclusivamente de trabalhar para tomar conta da bebé, Saoirse, agora com 29 anos (a que se somaria o segundo filho, Ryan, agora com 27 anos), para que Michelle pudesse continuar a estudar quase de imediato.
A experiência foi marcante: “Nessa altura, em 1993, a sociedade era muito diferente do que é hoje. Eras quase posto numa caixa — mãe solteira, mãe que não está casada, praticamente posta de lado. Mas eu estava decidida a garantir que não seria posta de lado, que trabalharia muito para construir uma boa vida para ela”.
Ainda assim, continua a acreditar que o machismo está “presente e de boa saúde” na política, e o que não tem faltado são comentários à sua aparência física. Em 2017, o Daily Mail descrevia-a como “a beleza de uma família afogada em sangue”, numa referência às ligações dos seus familiares ao IRA misturada com descrições que destacavam o seu “cabelo loiro e sedoso” e o “batom brilhante” e as “unhas pintadas” — “Michelle O’Neill não é o que esperávamos”. O Guardian lembra que a ex-primeira-ministra Arlene Foster chegou a descrevê-la, numa entrevista, apenas como “loira”.
Um percurso político sempre a subir
De qualquer forma, O’Neill foi fazendo o seu percurso sempre na política. O facto de ter sido mãe adolescente não a impediu de começar a trilhar o seu percurso como “ativista”, levando os filhos pequenos para comícios, contava ao Irish Times. Em 1998, o ano em que foi assinado o Acordo de Belfast (ou da Sexta-feira Santa, como também é conhecido) para pôr fim aos 30 anos de confrontos violentos na Irlanda do Norte, começou a trabalhar no Sinn Féin.
Como a BBC conta, foi assim que conheceu o vice-presidente do partido Martin McGuinness, que era candidato pelo círculo de Mid Ulster. Foi nesse período que começou a trabalhar para McGuinness e a formar-se como conselheira para assuntos relacionados com assistência social. Acabaria por vencer, em 2005, a eleição para o lugar que o pai ocupava, e de que se retirou nessa altura, no conselho municipal (equivalente a uma autarquia) de Dungannon and South Tyrone, que viria depois a liderar.
O’Neill foi subindo na hierarquia do Sinn Féin, tornando-se a porta-voz do partido para a Saúde e ganhando um assento no Parlamento da Irlanda do Norte, onde integrou a comissão de Educação. Em 2011 voltou a ser promovida, desta vez a ministra da Agricultura. E, em 2016, assumiu a pasta da Saúde.
O homem cujo percurso político moldou também o seu, McGuinness, acabaria por se demitir do lugar de vice primeiro-ministro em 2017, morrendo pouco depois. Seria O’Neill a sua substituta no partido, assumindo nessa altura o lugar de vice-presidente do Sinn Féin. E em 2020 acabaria por ser escolhida para ocupar o cargo de vice primeira-ministra.
Em 2022, o então primeiro-ministro, Paul Givan, demitiu-se, provocando eleições, cujo resultado trouxe a maior votação de sempre do Sinn Féin, que se tornou pela primeira vez o partido mais votado na Irlanda do Norte. Mas até agora O’Neill não tinha podido exercer as suas funções como primeira-ministra, uma vez que o partido unionista DUP decidiu boicotar as negociações comerciais entre Reino Unido e a UE a propósito do Brexit, deixando o governo paralisado. Só agora voltou a funcionar, desta vez com O’Neill no comando.
A violência sem “alternativa” e as tentativas de pacificação
O percurso político de O’Neill sempre em crescendo também foi recheado por uma dose considerável de polémicas. Desde logo, quando em 2017 esteve num encontro que assinalava o aniversário da morte de oito membros do IRA mortos pelas forças de segurança irlandesas. A nova primeira-ministra já esteve por mais do que uma vez em eventos deste género, tendo sempre defendido a sua presença em momentos que “honram os patriotas mortos”.
Como a BBC recorda, em agosto de 2022 O’Neill deu uma entrevista a um podcast desta televisão dizendo que “não havia” alternativa à violência do IRA, o que espoletou reações negativas de familiares de vítimas do IRA.
É a mesma líder que chega agora ao poder com um discurso pacificador e orientado para os consensos. Em maio de 2023, O’Neill dava sinais disso mesmo, quando decidiu marcar presença na coroação do rei Carlos III para mostrar “respeito” pela Coroa, apesar de ser republicana. Por vezes, refere-se publicamente à “Irlanda do Norte” e não ao “norte da Irlanda”, sendo que preferirá a segunda formulação, uma vez que entre os objetivos do seu partido está o regresso a uma Irlanda única.
Como o Guardian escreve, isso faz com que as expectativas não sejam de que comece agora uma “tempestade republicana” no governo da Irlanda do Norte só porque O’Neill vai liderá-lo — o que não significa que dialogar com forças políticas com objetivos tão diferentes dos seus seja tarefa fácil.