Foi há mais de 150 anos que, em plena Comuna de Paris (1871), a escritora e pensadora francesa Louise Michel (1830-1905) ergueu uma bandeira negra como símbolo dos ideais libertários e da não rendição. A sua vida, os seus escritos e a sua postura perante a opressão são tidos como símbolo de um pensamento crítico e independente. Seguindo o mote de empoderamento e resistência, Ana Borralho e João Galante criaram a performance-instalação Louise Michel que é, simultaneamente, evocação desta figura histórica e homenagem às mulheres que, ao longo da história, foram essenciais na formação de movimentos políticos e sociais. O espetáculo sobe ao palco da Culturgest, em Lisboa, de 8 a 10 de fevereiro.
Num cruzamento de elementos, junta-se a inspiração nesta importante figura e na sua relação com o que viria a ser o anarquismo (como corrente filosófica), o texto Deviam ter ficado em casa, seus idiotas, do dramaturgo Rodrigo García, e ainda Exit Music (For a Film), tema do álbum OK Computer, dos britânicos Radiohead. Conjugados, ajudam a formar um espetáculo de crescente tensão, que aborda a importância da resistência, da luta contra as formas totalitárias de sociedade e, por fim, como exploração do pensamento original, que não se coaduna com escolas ou tendências definidas.
Desde o princípio que a luta é tema determinante. Em palco, e envolvidas pelos elementos referidos, dez mulheres nuas içam a bandeira negra (que vai para lá do significado relativo ao anarquismo) com o intuito de lembrar — ou não deixar esquecer — o papel feminino na formação de movimentos sociais e novas correntes filosóficas, desafiando assim a sua representação tradicional na esfera pública. Escuta-se o movimento das bandeiras, a partir de uma coreografia que por si só remete para uma forma de empoderamento, enquanto a canção Exit Music (For a Film) é desconstruído em compassos até ser tocado e entoado na sua plenitude.
De igual forma e ao longo da peça, surgem excertos do texto de Rodrigo García. “Não quero pensar com a cabeça de outra pessoa”, lê-se em palco. A escolha do mesmo, explica Ana Borralho partiu de uma reflexão conjunta com um grupo de alunas finalistas da Escola Superior de Teatro e Cinema, mas também da relação que a dupla de criadores já mantém com os textos do dramaturgo argentino desde 2010. “Foi a partir desse convite, para trabalharmos com alunos finalistas, que surgiu a ideia de criarmos uma coreografia onde este texto estivesse presente. De forma inusitada, fala muito da relação com a escola e o pensamento formatado e sobre a necessidade de sermos audazes e de pensarmos com as nossas cabeças”, realça. Não é também por acaso que antes mesmo do espetáculo começar se vislumbra uma animação, concebida pelo filho desta dupla de criadores, onde diversos bonecos parecem arrancar a cabeça uns aos outros.
Um manifesto à rebeldia
À medida que a coreografia se desenrola e que escutamos da voz das intérpretes alguns excertos do texto, Louise Michel ganha tom de uma marcha comum que chega também ao espectador. Quem assiste, explicam os criadores, é encorajado a questionar as estruturas e sistemas que moldam a nossa sociedade e a considerar o potencial do seu pensamento crítico como motor de mudança e resistência. Adquire uma dimensão brechtiana que é, em última instância, o motor desta criação, perante qual, completam Ana Borralho e João Galante, não devemos manter a nossa passividade.
“Trabalhamos frequentemente com a ideia de coro e de grupo e quando pensámos nas bandeiras negras, esse lado coletivo ganhou ainda mais relevância. No fundo, aquilo a que assistimos é um exercício de resistência, de uma ideia continua de cair e levantar”, explica ao Observador João Galante. Estabelece-se de igual forma uma conexão com outras figuras da história – podemos pensar em Emma Goldman ou Simone Weil –, mas o espetáculo ultrapassa a época histórica da Comuna de Paris ou a relação direta com outras figuras da história.
“A Louise Michel funciona como símbolo de todas as mulheres e mesmo na peça a bandeira não significa apenas o anarquismo, mas todas as formas de luta e resistência”, sintetiza Ana Borralho. Do som calmo do esvoaçar das bandeiras, a fazer lembrar o movimento das ondas, até aos ecos de uma marcha em contínuo, regressamos sempre à ideia de se manter um pensamento crítico a partir da nossa individualidade e marcado por uma certa independência. Para isso, realça Ana Borralho, é preciso “uma espécie de rebeldia que mantenha essa capacidade, daí a crítica à escola e às instituições que muitas vezes acabam por nos formatar”.
O espetáculo que agora trazem ao palco surge então como forma de espicaçar, sendo diagnóstico sobre a sociedade em que vivemos atualmente. “Ainda é preciso trabalhar por uma sociedade mais justa e igualitária. Por vezes, caímos no erro de acharmos que a liberdade e os nossos direitos são dados adquiridos, mas o que vemos hoje são movimentos que podem colocar isso em causa”, completa João Galante.
A ascensão dos movimentos de extrema-direita e de outras formas de populismo ganha reverberação em Louise Michel. O espetáculo, ao mesmo tempo que pode ser encarado como exercício meditativo, também tem contornos de emergência e aborda a violência que tantas vezes se exerce sobre determinados grupos da sociedade civil. “Atualmente, parece não haver meio termo. É sempre preto e branco, vemos isso até nos debates entre figuras políticas. É preciso encontrar outras matizes para o diálogo e mantermos o nosso papel reflexivo e ponderado”, explica Ana Borralho.
Voltamos às palavras de Louise Michel (não traduzida em Portugal): “O nosso lugar na humanidade não é para ser mendigado, mas para ser tomado”, escreveu em Mémoires, publicado em 1886. Chegados a 2024, o seu exemplo evocativo acaba por ser uma forma de olharmos para o espetáculo de Ana Borralho e João Galante: o nosso lugar como indivíduos sustenta a importância de ideais que vão para lá das formas tradicionais de pensamento e a arte.