O cenário é minimalista. Em palco estão três pessoas, integralmente vestidas de roxo, laranja e verde lima, cores complementares que se destacam no fundo negro. Enquanto duas mulheres conversam numa sala imaginária, um homem aguarda no exterior, unido a uma delas por uma corda como as que se usa na escalada, por segurança, para evitar quedas. O que vemos é a recriação de uma consulta, numa peça sobre a doença bipolar. Ele está a ser acompanhado, tem um plano terapêutico em marcha, mas a médica quer ouvir também a esposa, que é a sua pessoa de referência, a primeira a ser contactada, em caso de necessidade. Já se adivinha que a corda liga marido e mulher.
“Como é que a Joana descreveria a doença do seu marido?”, pergunta a médica. “É uma doença bipolar, tem duas fases diferentes. Numas alturas, ele está com depressão e, noutras alturas, está com energia a mais”, responde a mulher, explicando como, na fase eufórica, a da mania, o companheiro não pára quieto, anda sempre de um lado para o outro, a mudar as coisas de lugar, fala muito depressa, faz planos para viajar pelo Mundo, não dorme e espoleta queixas dos vizinhos porque, de madrugada, tanto põe música a tocar alto como decide aspirar, ou pintar a sala.
Joana queixa-se de não conseguir acompanhar o marido, de também não pregar olho, de temer que ele saia (“Prefiro que faça os disparates em casa”). Conta que ainda estão a pagar o empréstimo das máquinas industriais com que ele quis criar uma lavandaria, de como o próprio admite que, “nos seus momentos mais imprevisíveis, é melhor não ter dinheiro”. E aponta as dificuldades que ele tem em conseguir emprego (“Quando chega de uma entrevista falhada, é um inferno”).
Apresenta então a outra face da moeda, o negrume, a depressão. “Ele é capaz de ficar horas na cama, e não está a fazer nada, nem está a dormir, apenas está”, refere Joana, à beira do choro. “Todos temos os nossos altos e baixos, mas com ele os altos começam a ficar muito altos e os baixos muito baixos, a atingir limites extremos”, prossegue a mulher, dando conta das suas próprias lutas, da sua solidão (“Quando ele está no buraco, não consigo ajudar”). Mas ressalvando que, com a medicação, tudo fica mais equilibrado.
Daquela e de outras histórias vive o espetáculo Oxímoro, entre Solstícios e Equinócios, com estreia agendada para esta quarta-feira, na Black Box do Convento São Francisco, em Coimbra, e em cena até domingo. É a mais recente peça da Marionet, que se distingue pelo cruzamento entre artes performativas e ciência e pela criação colaborativa. Foi feita de raiz, a partir de entrevistas a doentes e profissionais de saúde, por aquela companhia de teatro conimbricense, fundada no ano 2000, que já tem desenvolvido outros trabalhos na área das ciências da saúde. Exemplos? Ouvir Vozes (também sobre saúde mental), Dormir ou não Dormir? (alusivo à apneia obstrutiva do sono), O Algoritmo da Epilepsia ou iMaculada (focado na pílula contracetiva).
Mostrar o que em tempos se escondia
Desta feita, o espetáculo gira em torno da bipolaridade, “uma doença neuropsiquiátrica que se caracteriza pela alternância entre episódios de euforia e de depressão”, informa a Marionet, que já vinha trabalhando esse tema. Em 2022, lançou o vídeo Doença Bipolar: Um Outro Lado. Agora, é a vez de subir ao palco. Em Oxímoro, entre Solstícios e Equinócios, partindo de testemunhos reais, são criadas cenas de ficção em torno de emoções muitas vezes opostas. Daí o nome da peça, escrita ao abrigo de uma parceria com médicos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e investigadoras do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra.
Mário Montenegro, diretor artístico da Marionet, é responsável pela encenação e pelo texto ficcional — a peça começa e acaba com excertos de entrevistas feitas a pessoas com doença bipolar (umas diagnosticadas há décadas, outras mais recentemente). Durante o processo criativo, foram ouvidos também profissionais de saúde, incluindo um enfermeiro que é coordenador da Casa das Artes, do Hospital de Sobral Cid, espaço por onde pode passar um plano terapêutico. “O objetivo é falar das coisas abertamente, torná-las parte das nossas vidas sem as esconder, como antes se fazia”, esclarece Montenegro. Ampliar o conhecimento sobre a doença bipolar e reduzir o estigma que lhe está associado são objetivos assumidos.
À medida que ia aprendendo mais sobre aquela doença, mesmo através de documentários, Mário Montenegro percebeu que, muitas vezes, o que segurava as pessoas à vida eram as relações estabelecidas com as demais. Daí a ideia das cordas que unem as personagens, com cores que se misturam, peças fulcrais dos figurinos criados por Joana Cardoso. A intenção é “tornar visíveis as ligações que existem entre as pessoas, que podem ser positivas e negativas, também”, conclui Montenegro. As cordas fazem parte de um dispositivo de segurança. “Mas depois vamos vendo outras possibilidades: [a corda] tanto pode segurar como prender.”
Vídeo, língua gestual e melodias de um pássaro
O espetáculo, com interpretação a cargo de Carolina Costa Andrade, Catarina Moita e Tiago Santos, tem uma forte componente de vídeo. Este está ao cuidado de Laetitia Morais, que faz manipulação de imagens, manualmente, em tempo real, com margem para improvisos. Parte de filmes físicos, em formato 16 mm, mas, em vez de os passar num projetor (os analógicos são ruidosos), usa um microscópio, por sua vez ligado a um computador, “como se fosse uma câmara”, explica ela, interessada em explorar a relação entre o analógico e o digital. Laetitia leu o guião e começou logo “a pensar em questões visuais, de dualidades, polaridades, o preto e o branco, duplo ecrã, jogos de espelhos, assimetrias, simetrias…”
Já a música e a sonoplastia têm a assinatura de Ricardo Jerónimo, da banda conimbricense Birds are Indie. Para este trabalho, Jerónimo foi à gaveta de compositor recuperar alguns rascunhos que, apesar de virem de trás, “parecem ter sido feitos de propósito” para esta peça. A certa altura, ouvimo-lo cantar: “Aqueles tempos que parecem tão antigos / E que eram feitos de plácidos domingos / Foram e agora já não são / Foram e agora já não são”. À saída, fica um eco permanente.
A peça, dirigida a maiores de 14 anos, dura 105 minutos e arranca às 21h30 desta quarta-feira, havendo, no dia seguinte, duas sessões que incluem interpretação em língua gestual portuguesa (uma delas à tarde, para escolas). Os bilhetes podem ser adquiridos online. Para já, não estão agendadas datas noutros pontos do país, mas existe essa vontade, assegura Mário Montenegro. Haja convites para ajudar a combater o estigma que ainda se cola à doença mental, um espectáculo de cada vez.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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