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Lopes-Graça e a revisitação ao requiem que dedicou às vítimas da ditadura

Este artigo tem mais de 6 meses

A propósito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a célebre peça de Fernando Lopes-Graça volta a subir a um palco, no CCB. Recorda as vítimas do regime ditatorial português. 

Lopes-Graça acolheu prontamente a ideia de um requiem "pelos meus pais e pelos pais de todos aqueles que sofreram", disse à época. Porém, uma vez a obra concluída, o compositor resolveu “universalizar o subtítulo"
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Lopes-Graça acolheu prontamente a ideia de um requiem "pelos meus pais e pelos pais de todos aqueles que sofreram", disse à época. Porém, uma vez a obra concluída, o compositor resolveu “universalizar o subtítulo"

Lopes-Graça acolheu prontamente a ideia de um requiem "pelos meus pais e pelos pais de todos aqueles que sofreram", disse à época. Porém, uma vez a obra concluída, o compositor resolveu “universalizar o subtítulo"

Nunca quis ser um “compositor político” nem um “político compositor”. Afirmou-o contundentemente, já em plena década de 1980, volvida mais de uma década da Revolução do Cravos, mas nem por isso Fernando Lopes-Graça (1906-1994) deixou cair por terra o seu compromisso pessoal na defesa do papel da cultura como fundamento para a construção da sociedade civil. Entre o “ser” português e a construção de uma obra musical que supera fronteiras, o seu gesto artístico como compositor moveu-se pelos valores do humanismo e da esperança. É de resto esse o legado bem patente no Requiem pelas vítimas do Fascismo em Portugal, uma das sua mais célebres composições que volta a ser interpretada este sábado, dia 27 de abril, no palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, pela Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos.

Poucos dias depois da comemoração do 50.º aniversário do 25 de Abril de 1974, a criação que deixou no repertório coral sinfónico – uma parte fundamental da sua obra –, sublinha a temática antifascista presente em inúmeras obras suas (nomeadamente nas canções). Mas é igualmente testemunho pessoal que conta muito sobre a história desta figura ímpar da Cultura portuguesa do século XX e da resistência ao fascismo. “Num ano tão importante, percebe-se a intenção com que Lopes-Graça compôs esta obra, mas sobre a qual sempre disse que era importante serem os portugueses a valorizarem a história das vítimas do regime para que não caíssem no esquecimento”, realça ao Observador o maestro Cesário Costa.

Como epíteto dessa recuperação memorialista, regressamos à história deste Requiem, diretamente ligado às vítimas do regime fascista, algumas das quais amigas do músico. Apenas cinco anos depois do 25 de Abril de 1974, e o início da democracia em Portugal, quando as marcas do salazarismo ainda estavam bem presentes na memória coletiva, o compositor português criou aquela que se tornaria numa das suas composições mais reconhecidas. Composto entre 1976 e 1979, para assinalar os seus 70 anos de vida, o Requiem pelas vítimas do Fascismo em Portugal foi encomendado pela então Secretaria de Estado da Cultura, através de Romeu Pinto da Silva.

Lopes-Graça acolheu prontamente a ideia de um requiem “pelos meus pais e pelos pais de todos aqueles que sofreram”, disse à época. Porém, uma vez a obra concluída, o compositor resolveu “universalizar o subtítulo, transformando-o naquele que hoje conhecemos e que envolve todos quantos sofreram às mãos do regime de Salazar, desde logo o compositor e alguns dos seu pares”, explica Sérgio Azevedo, compositor e antigo aluno de Fernando Lopes-Graça. Estreada mundialmente em 27 de julho de 1981, na Aula Magna da Universidade Clássica de Lisboa, teve a sua primeira execução, com a direção do maestro Bystryk Rezucha. 43 Anos depois, volta a subir a um palco – agora do CCB – com direção do maestro Antonio Pirolli e participação da soprano Bárbara Barradas, da meia-soprano Cátia Moreso, do tenor Carlos Cardoso e do barítono Luis Cansino.

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Um testamento musical

Em conversa com o Observador, Sérgio Azevedo recorda as fotografias de Augusto Cabrita, nas quais Fernando Lopes-Graça segura na mão cópias do Requiem, acabado de compor. “Essas fotografias são históricas porque mostram a fase final nesse processo de composição que foi moroso”. Do contacto com o compositor recorda ainda um episódio que envolve o requiem. “Lembro-me uma vez em que escutámos o requiem na sua sala de estar, ele recostado no cadeirão, em silêncio total. Foi das únicas que vezes que vi o Lopes-Graça emocionado, as lágrimas corriam-lhe pela cara. Acredito que ele tinha a consciência de que era a sua obra-prima e o seu testamento musical e político, não pela ideologia, mas pelo seu significado pessoal”, conta.

O seu envolvimento no Movimento de Unidade Democrática, assim como no PCP, do qual se tornou militante na década de 40, valeu-lhe a marca de oposicionista. Foi censurado e proibido, mas manteve o seu cunho interventivo

“Embora reconhecidamente ateu, e comunista, Lopes-Graça nunca renegou a religiosidade na sua forma menos institucional, a do povo, como demonstram as inúmeras harmonizações e obras escritas sobre melodias e textos populares de cariz sacro, bem como dois Salmos. Ao contrário de Britten, cujo Requiem da Guerra o influenciou, e que recorre a poemas de escritores caídos durante a 1ª Guerra Mundial, criando dessa forma um paralelo profano ao texto sacro, o Requiem de Lopes-Graça usa exclusivamente o texto litúrgico”, explica Sérgio Azevedo no texto que acompanhará a apresentação da obra no CCB.

Natural de Tomar, Fernando Lopes-Graça, que provinha de uma família em que não existia nenhum antecedente de músicos profissionais, tornou-se num dos mais reconhecidos compositores portugueses do século XX, tendo-se destacado pelo desenvolvimento de uma intensa atividade cultural, artística, pedagógica e cívica. Chegou à música quase por acaso, em 1923, quando deixou a sua cidade natal, e chegou a Lisboa para estudar no Conservatório Nacional. Foi nesses anos que se tornou discípulo de piano dos professores Adriano Merea e José Viana da Mota, que estudou composição com Tomás Borba, e ciências musicais com Luís de Freitas Branco. Frequentou ainda o curso de Letras das Universidades de Lisboa (1928-31) e de Coimbra (1932-4), embora não chegasse a conclui-lo.

Não poderia ainda saber que, alguns anos depois se converteria no “músico da oposição”, sobretudo quando a ditadura de 1926 lhe provocou uma aguda consciência política e a íntima necessidade de combater a nova situação com todos os meios ao seu alcance. Influenciado pelas vanguardas, munido de uma provocadora atitude modernista, chegou a ser chamado por José Régio de “revolucionário” do meio musical português. Tornou-se pedagogo, crítico musical e finalmente compositor, marcado por autores como Arnold Schönberg e Paul Hindemith. Já na década de 30, instala-se em Paris, onde frequenta o curso de Musicologia da Sorbonne, e onde compôs várias obras para piano, a música para o bailado realista La Fièvre du Temps e onde realiza as suas primeiras harmonizações para voz e piano de canções tradicionais portuguesas.

De regresso a Lisboa, o seu envolvimento no Movimento de Unidade Democrática, assim como no PCP, do qual se tornou militante na década de 40, valeu-lhe a marca de oposicionista. Foi censurado e proibido, mas manteve o seu cunho interventivo. Fundou e dirigiu durante mais de 40 anos o Coro da Academia de Amadores de Música, para o qual escreveu centenas de arranjos de canções tradicionais, grande parte das quais recuperada à tradição oral, em viagens pelo “Portugal profundo”, numa colaboração com o etnólogo Michel Giacometti (1929-1990). E nessa extensa biografia cabe ainda salientar que foi preso, exilado, destituído das suas funções de docente e que só no princípio da década de 1970 é que a sua música voltou a ser ouvida em diversas instituições nacionais.

A revolução musical, por fim

Foi a partir de 1974 que a força do trabalho de Lopes-Graça se viu mais livre, tornando esse período, até a sua morte, tempo de muita fertilidade. São prova disso as duas sonatas para piano e um quarteto ou as Sete predicações de Os Lusíadas (1980), o bailado Dançares, uma sinfonia para orquestra de formação clássica, numerosas canções, composições instrumentais mais breves e peças de circunstância.

“O facto de escrever esta obra em pleno ocaso da vida (tinha então 73 anos, viveria apenas mais 15), terminando-a apenas cinco anos após a implementação da democracia em Portugal, quando os horrores do Salazarismo ainda estavam bem presentes na memória viva, e tendo-a dedicado aos companheiros, amigos e povo anónimo martirizado pelos 48 longos anos de ditadura, ele próprio e os pais incluídos, não será de admirar que o Requiem revele uma profundidade de emoções bem real, para além de constituir uma súmula de tudo quanto Lopes-Graça aprendeu ao longo de toda uma longa vida dedicada à música e à composição, mormente de obras vocais e corais”, sustenta Sérgio Azevedo.

Mas há mais aspetos importantes a revelar sobre o Requiem. Para o maestro Cesário Costa, a composição é prova de que para Lopes-Graça não se fazia distinção entre música sagrada e profana. “Mesmo tratando uma temática tão evidente, escolhe fazê-lo recorrendo ao texto litúrgico”, sintetiza. Não negava a matriz cristã da cultura europeia, mas antes escolhia fazê-lo como prolongamento da sua obra e do que nela se sustentava de ligação aos costumes e crenças portuguesas. Chegados a este Requiem revela-se, no entanto, a vertente mais dramática do seu catálogo e uma espécie de neoclassicismo que ganhou espaço no seu repertório.

“Não deixa de ser uma obra imponente do ponto de vista técnico”, diz Cesário Costa. “É uma obra monumental, pelos efetivos e duração, e também pelos meios que exige. Os seus 45 minutos de duração pedem 5 solistas vocais, dois coros mistos, e uma grande orquestra”. Com uma influência evidente da música tradicional portuguesa no uso de paralelismos melódicos, que remetem tanto para a canção popular como para a evocação da música sacra da Igreja Católica Romana primitiva, denota igualmente a influência de obras modernistas de Igor Stravinsky (1882–1971). Ainda assim, explica o maestro, a parte coral, em especial no solo final da soprano, podemos “vislumbrar uma ideia de esperança, mas obviamente caberá às diferentes interpretações de quem for ouvir esta obra que ainda por cima não é apresentada com grande regularidade”.

Como leitura sobre a vida de Lopes-Graça importa destacar ainda como a obra que deixou para a posteridade evidenciam sempre a sua independência, que defendia com orgulho: “A minha música, porém, é que se não sindicaliza. Continuará livre e inconformista, para desespero de nacionalistas, sindicalistas, salazaristas e até de muitos… reviralhistas.” Nesse contexto, a importância deste requiem também é prova de que estamos na sua órbita, por mais décadas que passem. “É, muito provavelmente, o ponto mais alto e significativo, quer em termos estéticos quer em termos políticos, da obra de Fernando Lopes-Graça”, e espelha ao mesmo tempo “o que foi esse século XX português, se incluirmos toda a ação política, escritos musicológicos, e a pesquisa etnomusical que ligamos imediatamente ao seu nome”.

43 anos depois, este Requiem também é uma homenagem à sua vida e obra que agora se recorda entre nós. Serve, como escreve Sérgio Azevedo, “para que os que ficaram saibam que os que morreram, não morreram em vão”.

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