“Só a democratização da cultura proporciona realmente igualdade de oportunidades. Quando é apenas um reduto de quem tem mais meios económicos ou de quem vive em grandes centros urbanos, estamos perante um constrangimento ao pleno desenvolvimento dos cidadãos.” Foi com estas palavras que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, encerrou a Conferência Cultura e Democracia, que decorreu esta quarta-feira em Aveiro, no âmbito das comemorações do décimo aniversário do Observador — razão pela qual a Rádio Observador esteva também em direto numa emissão especial a partir do Centro de Congressos de Aveiro — e da programação da primeira Capital Portuguesa da Cultura.
O primeiro-ministro reafirmou, no entanto, a “intenção de redobrar o investimento público no setor, conforme anunciado no programa de governo”. Elogiando a escolha de tema da conferência, sublinhou a importância da democratização do acesso à cultura, nas suas várias formas, mas insistiu também nas questões da cultura democrática, “neste momento, muito perturbada por sinais adversos”.
Luís Montenegro abordou também a importância da Comunicação Social para a saúde dessa cultura democrática: “Mais do que nunca, nestes tempos muito confusos, a sociedade precisa de um jornalismo independente e livre, que não siga as agendas das redes sociais.”
Antes disso, José Pina, diretor do Teatro Aveirense e coordenador da Aveiro2024, já tinha apresentado as linhas de força da programação desta primeira Capital Portuguesa da Cultura (a próxima, em 2025, será Braga): “Temos quatro grandes pilares, um para cada trimestre do ano: Identidade; Democracia; Sustentabilidade e Tecnologia, mas não podemos deixar de nos associar a várias celebrações de importância nacional como os cinquenta anos do regime democrático e os quinhentos anos de nascimento de Luís de Camões.”
Ao longo da tarde, num evento apresentado por João Miguel Santos, animador da Rádio Observador, ambas as efemérides foram abordadas. A primeira com Rui Ramos e João Miguel Tavares, num episódio ao vivo do podcast do Observador, E o Resto é História. À pergunta do jornalista sobre se a democracia substituirá Camões por Fernando Pessoa no “papel” de poeta nacional, o historiador disse que sim: ” Foi algo que aconteceu na década de 1980. Camões fora consagrado desde o século XIX como uma espécie de santo laico, numa cultura secular e republicana que substituíra, de algum modo, a religiosa. Mas com a publicação, em 1982, de um inédito tão notável como O Livro do Desassossego, tudo mudou. Não só aumentaram muito os índices de leitura de Fernando Pessoa, como a obra dele tornou-se um grande produto de exportação de Portugal em países como o Brasil ou a França.” Rui Ramos salientou, no entanto, que esta substituição contém uma injustiça: “Há outras leituras, para além da patriótica de Camões, como Jorge de Sena já demonstrara.”
Neste episódio especial de E o Resto é História, também estiveram em foco algumas das transformações mais profundas que o 25 de Abril de 1974 trouxe à sociedade portuguesa. Uma delas, apontou Rui Ramos, foi o fim da censura prévia da imprensa: “Acabou a meio da tarde do próprio dia 25 de Abril e, com ela, acabou também um hábito enraizado de autocensura que os profissionais tinham naturalmente adquirido, e também uma linguagem feita de códigos e entrelinhas como que estabelecida entre emissor e recetor. Tudo era lido como uma mensagem política, mesmo quando não o era.” O mesmo acontecia com as artes: “Qualquer discussão estética ou literária, era política. Mesmo que um artista ou um escritor não tomassem qualquer posição política, isso também era lido do ponto de vista político. Era alguém que tinha preferido não intervir. E, como tal, estava a tomar uma posição.”
Mas, como o historiador acrescentou, o 25 de Abril encerrou a Comissão de Censura, dominada por coronéis reformados, mas não livrou a imprensa do controlo político: “Com as nacionalizações, a partir de 1975, uma grande parte da imprensa tornou-se propriedade do Estado, a tal ponto que muitas direções dos jornais eram escolhidas em conselho de ministros. E isto durou até aos anos 1990.”
E a escola, no meio do país em mudança? “Um sucesso”, segundo Rui Ramos, que, no entanto, considera que as decisões tomadas em democracia aprofundam movimentos anteriores como a reforma realizada pelo ministro Veiga Simão, no final da ditadura. “Hoje, pela primeira vez na nossa História, podemos dizer que a população portuguesa é homogénea a nível da formação e que deixámos de ter um perfil nacional analfabeto e predominantemente rural.”
Tudo vai bem? Nem por isso. As transformações de consumos culturais (e informativos) ditados pela Internet, no último quarto de século XX, criaram novos problemas: “Com a internet, as pessoas deixaram de estar todas a ver ou a ouvir as mesmas coisas na rádio ou na televisão, como acontecia até meados dos anos 90”, disse Rui Ramos. “Isto criou uma angústia a quem produz cultura, porque, de repente, estamos todos a trabalhar todos para nichos diferentes.”
A perplexidade (e a preocupação) ante os novos rumos e hábitos dominou também a conversa da jornalista Maria João Avillez com Teresa Patrício Gouveia, ex-ministra dos Negócios Estrangeiros. Num episódio ao vivo do podcast Eu estive lá houve tempo para a antiga governante e gestora cultural realçar a importância da cultura como espaço de mediação e diálogo: “A democracia proporcionou aos portugueses o acesso à cultura e abriu-lhes horizontes. É a cultura que nos prepara para enfrentar o mundo. Em sistemas democráticos, exige-se a participação ativa dos cidadãos, sobretudo se os partidos esgotaram a capacidade de os representar. Mas há muitos problemas novos.”
Considerando as duas interlocutoras que as democracias e o debate político estão a ser, se não capturados, empobrecidos por discursos de ódios e posições extremadas, nem por isso se entregam a um discurso pessimista. Maria João Avillez enuncia vários dos marcos deixados por Teresa Patrício Gouveia na Secretaria de Estado da Cultura, como a construção do Centro Cultural de Belém e do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, a aposta na rede nacional de bibliotecas públicas ou a lei do mecenato cultural. A ex-governante acrescentou: “O desenvolvimento cultural do país é imenso. Não há sequer comparação com o que existia antes. Basta ver o número de orquestras hoje existente em todo o país ou o trabalho que é desenvolvido pelas autarquias.”
Outro antigo membro do governo passou também pelo palco do Centro de Congressos de Aveiro. Francisco José Viegas foi o convidado de João Paulo Sacadura numa emissão especial do programa Convidado Extra. Entre outras questões, o ex-Secretário de Estado da Cultura respondeu a uma particularmente importante do jornalista: que papel pode o Estado desempenhar? “Compete ao Ministério da Educação desenhar uma política de promoção da leitura pública, como também para áreas como o cinema ou a música. E, neste caso, da leitura, a aposta nas bibliotecas públicas é determinante.” Quanto ao cenário que temos hoje, Viegas denuncia os vícios gerados por uma sociedade pouco dada à leitura: “Lê-se pouco, escreve-se pouco. Quando se lê mal, escreve-se mal e, no entanto, chegam ao meu contacto muitos candidatos a autores que confessam terem lido muito pouco.”
Apesar destas perplexidades, Viegas considera-se um editor (e autor) feliz, sobretudo no dia em que saiu para a rua Camões – Uma Antologia, de Frederico Lourenço, por si editada: “Como é possível que o país se tenha esquecido de Camões, a quem devemos a expressão do amor, da melancolia ou mesmo do riso.” Também se considera um cidadão razoavelmente feliz quando pensa no quanto mudámos em apenas meio século: “Esta ideia de que falta cumprir Abril faz-me impressão. Nós mudámos tudo.”
Quase a terminar, coube ao Presidente da Câmara de Aveiro, José Ribau Esteves, lembrar a importância que esta primeira capital portuguesa da cultura tem para a cidade e para o distrito, num ano em que também se comemora a Democracia, Camões, o cinquentenário da Universidade de Aveiro e o bicentenário de um marco local e nacional como é a Vista Alegre: “Fomos candidatos a Capital Europeia de Cultura e perdemos para Évora, mas transformámos algo que não nos correu bem no ano fantástico que estamos a viver. E essa é uma mensagem importante que queremos transmitir a uma sociedade que não sabe lidar com os desaires pessoais ou coletivos.”