Hoje soube-me a pouco
MAAT, Lisboa, até 26 de agosto
A ideia de mostrar de que forma o 25 de Abril ou a democracia e os sonhos que dela poderiam ter despontado influenciaram, marcaram ou se fizeram notar na arte portuguesa é o ponto de partida da exposição que a Central Tejo – MAAT tem patente até 26 de agosto. “Hoje soube-me a pouco” (a homenagear Sérgio Godinho) explica que a Revolução não definiu qualquer caminho artístico, mas exemplifica um ou vários itinerários individuais que cresceram com o novo paradigma, desde logo através de temáticas e materiais muito mais audazes na verdadeira aceção da palavra. No entanto, mais do que enunciar esses trilhos, a mostra tem o dom de juntar obras raras de grandes autores, alguns inéditos e muito poucas vezes apresentados a público e é, desse ponto de vista, uma pedrada no charco num panorama nacional bastante insípido. Com um arranque extremamente bem conseguido, a exposição põe lado a lado uma série de obras criadas precisamente à volta do 25 de Abril e mostra essa utopia coletiva que se exaltava inocentemente: Escada (“XXV de Abril”, 1974); Ana Hatherly (uma “Revolução” em Super 8, 1975); Joaquim Bravo; Júlio Pomar; António Sena; Álvaro Lapa (“Canção”, 1979-1982); Luísa Correia Pereira. Logo a seguir, consegue reunir com novo fôlego nova década e aí percebemos já o distanciamento em relação à revolução e a proximidade com outras realidades bem mais individuais, experimentais, introspetivas: ainda Álvaro Lapa; Ana Jotta; Julião Sarmento; Palolo; Xana.
A perspetiva artística do trabalho curatorial parece adensar-se à volta daquilo que se foi sedimentando no quadro português com Jorge Martins, Paulo Nozolino e até Carlos Bunga. Mas confunde-se quando se sobrepõem obras que comunicam incoerentemente entre si e falamos de um jovem Rui Chafes a esculpir pequenos Giacometti em mármore branco, de outro jovem Jorge Queiroz a desenhar ficções surrealistas no despontar do novo milénio, ou de uma Helena Almeida a romper obstáculos conceptuais, ao lado de um desapontante Pedro Cabrita Reis do momento atual, de uma Paula Rego mais ilustradora que criadora, de uma Rosa Carvalho absolutamente imoderada, ou de uma Luísa Correia Pereira pouco sedutora. De facto, a mostra vai perdendo sopro no seu percurso apesar da grandiosidade/dimensão das peças que expõe e até da sua incapacidade de falar ao indivíduo e isto talvez devido ao seu universo aqui já tão individualista, por irónico que pareça.
“UNI VERSO PLURAL”, de Irene Buarque
Fundação Carmona e Costa, Lisboa, até 14 de setembro
Quase uma desconhecida nos dias que correm, Irene Buarque (S. Paulo, 1943), é preciso lembrar, chegou a Portugal há 50 anos vinda de um Brasil extremamente violento, onde a repressão da ditadura militar contrastava em tudo com a euforia de um país que acabava de se libertar das amarras do regime ditatorial. E é dessas duas realidades que a artista tende a desvincular-se, criando um único universo pessoal, à margem de uma influência direta, de qualquer conotação, ou domínio. Com esta exposição revê-se uma obra mais do que abrangente em termos cronológicos, mas muito linear no que respeita à criação sempre a partir de linhas (geométricas) bem definidas.
Irene Buarque é uma apaixonada pela geometria, as suas pinturas giram em torno dela desde 1971, apoderando-se do que os cromatismos, umas vezes mais outras vezes menos psicadélicos conseguem fazer com essas figuras exatas. É a mesma geometria que define todo o seu imaginário, fotográfico também, da janela. E, aí, temos alcançado o expoente máximo da mostra com a exibição de “Leitura de Janela”, três enormes rolos de ozalide, datados de 1978, e que constituíram à época da sua criação o núcleo duro da primeira mostra individual a que teve direito em Portugal, na fulgurante Galeria Quadrum da visionária Dulce d’ Agro, onde Maria da Graça Carmona e Costa começava a trabalhar. Um momento histórico que assinala também o despontar da arte contemporânea num país adormecido à sombra da periferia geográfica nacional. A ideia de natureza, muito temporal também, assume outro lugar de destaque nesta exposição através da representação artificial e simbólica da pedra, ela mesma, mas ainda e sobretudo em papel, cerâmica, tela e fotografia. A unir tantas simetrias e assimetrias estabelece-se a noção de perspetiva e ilusão.
“Atelier”, de Pedro Cabrita Reis
Pavilhões da Mitra, Lisboa, até 28 de julho
Disse em várias entrevistas que “Atelier” era uma espécie de autorretrato e, de facto, a exposição é o rosto e o corpo do artista, a alma de Pedro Cabrita Reis para quem o conhece ou para quem o adivinha em oito enormes pavilhões carregados de obras que foi realizando ao longo de, grosso modo, cinco décadas de colossal azáfama artística. Utilizamos o adjetivo colossal propositadamente para significar a escala da empreitada: grande, exaustiva, volumosa. E é sobretudo esse o impacto da exposição no espectador – avassalador. Ao percorrer-se a mostra na antiga Mitra (o antigo asilo de mendicidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) é-se praticamente derrubado ou esmagado pelo excesso, tudo ali é mais, e não há espaço para menos. Pedro Cabrita Reis pretende deslumbrar e quer fazê-lo através da quantidade, da quantidade e do tamanho, da dimensão sempre ou preferencialmente copiosa, avultada, maiúscula.
A intenção é ganha desde o primeiro momento, mas não é linear que se ganhe num último tempo o desafio, pois é preciso bastante mais labor do que uma primeira impressão permite para encontrar a qualidade do trabalho do artista, espalhada, aqui e ali, por peças de grandeza mais subtil: a mestria do seu desenho; a sabedoria de pôr e dispor cor, material e forma; a capacidade de misturar lixo e adorno; a competência do efeito visual admirável. Artista total, Cabrita, como já quis apenas chamar-se, combina séries, estilos, materiais, tempos, géneros numa coreografia sem margem de manobra para a interpretação individual do espectador, que, acima de tudo, verá o que ele quer que veja. E nisso o artista é omnipresente, é esmagador, está em todos os seus múltiplos, é todas aquelas experiências e técnicas, todas as superfícies e formas, aquele jogo permanente com o tamanho, aquele recorrente arrumar do caos, entre néons, pneus, portas, ferro, vidros na eterna assemblage em que transformou a sua arte. O resultado, quando se somam as 1500 obras exibidas, é um monumento onde a mestria da montagem tem a nota máxima, as obras, essas, perdem a expressividade una e contam como um todo. Pena é que não estejamos a atravessar um tempo de excessos.