Recentemente aprendi que uma cleanfluencer é alguém que ganha a vida filmando-se enquanto limpa e a divulgar esse conteúdo através das redes sociais. Nada contra desde que não seja obrigada a ver esses vídeos, sempre aprendi uma palavra nova.

Sabemos que estamos na nossa idade média quando não compreendemos o mundo nem queremos compreender. Eu, por exemplo, não entendo a obsessão com publicar e partager tudo o que se passa connosco nas redes sociais. Muito menos na ménage. Já li livros suficientes para saber a importância de garantir que temos a atenção dos outros, mas não consigo de maneira nenhuma entender quem publica vídeos a fazer coisas domésticas, como cozinhar, lavar a roupa ou limpar. Desespero? É uma boa aposta.

Ter as coisas limpas e em ordem é obviamente importante, mas já não é tudo. Como se limpa interessa muito e, se for divertido, melhor. A privacidade? Parece ser um pequeno preço a pagar.

Recentemente chegou a um grande supermercado português o Pink Stuff, o produto de limpeza deste tempo e desta atitude geral perante a vida que assegura que tudo o que fazemos tem de ser divertido e partilhável. Como dizem os vídeos nas redes sociais, trata-se de uma das coisas mais incroyables que tem acontecido à humanidade bon chic bon genre. Fazer pão em casa é passado, agora o plat du jour de quem quer sempre estar a fazer a coisa certa é limpar com Pink Stuff, o produit milagroso que até agora se comprava apenas online.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Pink Stuff, que podia ser o detergente que a empregada da Barbie usaria para lhe lavar o carro, existe desde 1938, se bem que com um nome diferente. Aparentemente, na terceira década do século XXI, tornou sem querer a limpeza chata e aborrecida num jogo, numa competição, num divertimento. Bastou desenvolver uma embalagem que parece um brinquedo e ter acontecido uma pandemia que manteve em casa pessoas que tinha tudo sujo à sua volta.

Quem fez os vídeos no tik tok terá achado que mais valia render-se e fingir que limpar é uma coisa amusant. Se calhar ainda bem que não tinha só lixívia ou vinagre em casa. Hoje, em que tudo é uma love brand e o próprio l’amour é uma love brand, assumamos o Pink Stuff é a love brand da limpeza, suave nas superfícies e agressiva com as nódoas, pode ser usado dentro e fora de casa.

Na sua versão clássica e na que incendiou as redes sociais (como se costuma dizer), o Pink Stuff começou por ser uma pasta que se usa para esfregar em nódoas, manchas e sujidades entranhadas. Dormia calmamente nas prateleiras dos armazéns quando ficou popular no tempo da Covid, porque muita gente sem nada que fazer e a precisar de atenção se decidiu filmar fazendo limpezas. Para o fabricante, o que podia ter sido apenas um sonho cor de rosa, tornou-se uma realidade maravilhosa.

Atualmente a gama de produtos diferentes é tão vasta que desisti de os contar. Já agora, vi tantos vídeos que também desistir de perceber exatamente o que torna o Pink Stuff diferente. Percebi que a fórmula é secreta, que o produto não tem cheiro intenso a químico, é não tóxico e vegan, mas não posso adiantar muito mais do que isto, nem o que significam ao certo aquelas características. Suponho que sejam pontos fortes, mas não posso garantir.

Telefonei a uma amiga que costuma estar a par de tudo e tive sorte. Ela conhecia o Pink Stuff e era utilizadora há tanto tempo que se riu quando fiz a pergunta. Depressa percebi que o produto é tão apreciado pelos seus proprietários como o secador de cabelo Dyson. Os seus elogios à pasta cor de rosa (um rosa desmaiado, devo dizer) foram tão convincentes que no fim da conversa fiquei com vontade ter a casa cheia de manchas de ferrugem só para poder ter direito à minha própria sessão com o Pink Stuff.

Enquanto ela falava, não evitei pensar que falávamos não de um produto comercial, mas de uma invenção qualquer de um sketch dos Monty Phyton. Deve ser porque tudo o que se passa na Internet tem ares de fantasia, o que pode explicar a razão porque esta patê nettoyante tenha o seu próprio Ken, neste caso uma esponja especial sorridente americana, chamada scrub daddy que mais parece aquilo que é: uma coisa saída do programa Shark Tank.

Dias depois, quando nos encontrámos num jantar, voltei ao tema e percebi que a minha amiga tinha comprado o Pink Stuff por impulso numa noite de insónias e o experimentara apenas uma vez, durante pouco tempo e sem grande insistência num cantinho da cabine de duche. Os louvores feitos uns dias antes foram motivados pelo remorso próprios das compras online de choses que não são necessárias. Não me admirei. Como quase todas as minhas amigas portuguesas, ela tem gouvernante, não deve limpar o pó desde o tempo em que os Coldplay ainda eram uma banda de que toda a gente gostava, porque haveria de precisar das qualidades mágicas do Pink Stuff? ‘Não usei porque não tinha luvas à mão’, disse-me ela, defendendo-se das minhas possíveis critiques por não ter porfiado. Ri-me da expressão ‘não ter luvas à mão’, mas não a censurei, tenho a casa com demasiada tralha comprada por impulso para ter a moral necessária. O plano, confessou-me após muita insistência, era levar o produto à empregada, mas por alguma razão não foi capaz de o fazer. Era como se o Pink Stuff e a esponja (que ela comprou na mesma noite) fossem coisas e não produtos funcionais de limpeza.

Engraçado, pensei. É sabido que muitas mulheres modernas, ativas e dinâmicas, livre, intensas têm um penchant por determinados produtos de limpeza, interrogo-me se não estará ligado à nostalgia dos cheiros de sempre, pinheiro, bosque, a sabão de Marselha, o aroma a limpeza dos antigos. Mas talvez se explique pelo facto de apesar de elas próprias não limparem coisa nenhuma (nem nunca terem limpado), salvo se forem cleanfluencers por metier (ou tiverem algum daqueles transtornos obsessivos compulsivos que vemos em programas de televisão), querem manter a intacta a fachada da dimensão feminina de competência no lar. O Pink Stuff serve perfeitamente para cobrir essa necessidade. Nada como um produto criar a sua própria necessidade.

Factos não são mensagem e o facto de o Pink Stuff ser altamente eficiente (segundo as recensões encontradas online) não será a história que mais interessa. Limpar não é divertido, é sério, duro, difícil e repetitivo. Não sei se o produto é semelhante a outros produtos de limpeza, devo confessar que não tenho manchas de ferrugem pela casa para poder testar e não tenho por hábito deixar chegar a casa a um ponto em que é preciso limpar com esta seriedade de brigada de intervenção. Pertenço ao grupo que compra uma bisnaga de Supergel de dez em dez anos.

Há qualquer coisa de retemperador quando percebemos que os produtos do digital e do online se rendem à realidade e descem ao nosso mundo de todos os dias. Para as cleanfluencers pode ser uma má notícia o facto de o Pink Stuff estar disponível a mais pessoas. Confiemos que assim também se faz uma limpeza às redes sociais.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de amêijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.