Quanto tempo demora a um par de olhos humanos percorrer um cartaz de um festival de música (digamos: o de Paredes de Coura deste ano), desde baixo, onde as bandas estão grafadas em letrinhas minúsculas, até cima, onde pairam os cabeças de cartaz? Se for só a percorrer o olhar, não deve demorar mais que uns milésimos de segundo; se lermos o nome de todas as bandas do cartaz talvez meio ou um ou dois minutos. Mas quanto tempo é que a banda que começa por estar em letrinhas pequeninas no fundo do cartaz demora até chegar lá acima, e ver o seu nome em letras gordas?
Não há uma resposta única: os Stone Roses estavam a dar concertos monumentais ao primeiro disco, os blur só o conseguiram ao terceiro, os U2 já eram quase veteranos quando, na fase Achtung Baby, começaram a dar concertos em estádios – enquanto os Pavement demoraram mais de 30 anos (e uma digressão revivalista) a encabeçarem festivais, sem concertos em estádios em nome próprio.
Há bandas que nunca sequer estiveram no rol das letrinhas minúsculas, só legíveis a quem não recorre com frequência a oftalmologistas – bandas como os Fontaines D.C. já começaram a meio do cartaz e, apenas meia década e três álbuns depois, Romance, o mais recente disco da banda, é o momento em que eles dizem que querem estar lá em cima no cartaz, nas letras mais gordas.
Se os Fontaines D.C. nunca precisaram de lupa para serem encontrados nos cartazes é porque vieram a este mundo não como uma crisálida que necessita de tempo para se revelar, mas já uma banda inteira, conseguida, sem necessidade de retoques extra: Dogrel, o disco de estreia, de 2019, mostrava um conjunto de músicos que sabia o que queria fazer, mesmo que se notasse a dívida ao pós-punk e aos Fall em particular.
O riff era rei, as guitarras angulares, os ritmos por vezes quebrados – como nos Fall –, outras disparado, a voz aproximava-se do registo falado e berrado e as canções que permitiam berrar nos refrões acumulavam-se: uma muralha de guitarras abalroava-nos em “Too real”, o volume dos amplificadores ia ao 11 em “Hurrican Laughter” (muito Fall no refrão), “Chequeless Reckless” não tirava o pé do acelerador, nem para perguntar “What’s really going on?”, e a espantosa “Liberty Belle” teria sido, nos anos 80, um êxito cor de ouro, ligeiramente mais pop, ligeiramente mais cantarolável, propícia a mosh e encontrões primitivos e libertadores. Não é bom fazer barulho? É óptimo, é lindo.
Eram apenas 11 músicas em escassos 39 minutos e 55 segundos, mas para quê mais? Era a forma perfeita de dizer: olá, estamos aqui, temos guitarras como granadas, berramos, explodimos no refrão, fomos à fonte, bebemos dela, e agora sabemos exactamente o que queremos e o como o produzir.
Imaginem um mundo em que há cada vez menos rock de jeito e imaginem duas ou três gerações para quem o indie-rock foi a fruta da época desde que aprenderam a gatinhar – quando uma raridade como os Fontaines D.C. aparecem o resultado é só um: são adoptados como a next big thing, e mesmo que pudesse haver exagero em todos os encómios que lhes foram então dedicados, a verdade é que o mundo estava a precisar de alguém que soubesse usar a electricidade ao máximo.
Daí o salto imediato para o meio dos cartazes: à primeira, os Fontaines mostraram-se quase como o produto acabado, a prenda perfeita, aquela Coca-Cola que pode não a ser a última do deserto mas é a única que existe AGORA e existir agora é fundamental. A partir daí o trabalho da banda foi alargar o som sem nunca renunciar às raízes: A Hero’s Death, lançado um ano depois da estreia, encontrava-os numa aprendizagem: como dominar o fogo? A resposta surgia à primeira canção, “I Don’t Belong”, em que o ritmo era mais lento, e a agressão era trocada por um pouco mais de melancolia noturna (“I don’t belong to anyone / I don’t want to belong to anyone”, cantava-se).
Isto não significa que eles tivessem deixado de criar ruído gostoso: “Televised Mind” era uma carnificina, a fagulha que ateava e levava tudo à frente, sempre naquele registo meio falado, pronto a dar cabo das colunas internas do telemóvel (não sei como é que funciona a amplificação de um smartphone, lamento por este momento de ignorância). “A Lucid Dream” também era uma salva de balas consecutivas e havia a espantosa “A Hero’s Death”, com a sua guitarra picadinha e aquela frase debitada com o aborrecimento de quem não tem muto mais que esperar da vida que beber pints no pub: “Life isn’t always empty”, seguida de uma série de conselhos de vida, possivelmente irónicos (ou talvez não). O meu preferido: “Say to your mother that you love her”.
A vida não é sempre vazia mas o rock pode sê-lo, ou pelo menos atravessar fases em que pouco produz: entre 2019 e 2020, o que é que o diabo do rock andava a fazer? Pouco, nada, ninguém se lembra. O rock andava a levar tareia do r’n’b, do reggaeton, do flamenco-electrónico de Rosalía, de Taylor Swift. A vida não é sempre vazia mas o rock abandonou-nos e e a vida é sempre mais vazia quando o rock nos abandona. (Isto é um bocado injusto para com os Viagra Boys ou Amyl and The Sniffers, mas não esperem que um texto seja um tribunal e até os tribunais erram.)
Restava-nos os Fontaines D.C. Já não era uma questão de fazer bons discos, era uma questão de sobrevivência: os miúdos indie precisavam de uma tábua, uma bóia a que se agarrar e o quinteto de Dublin era, se não a única, a melhor bóia que nos restava. Nada de letras miúdas, ponham estes rapazes já no topo dos cartazes, ou pelo menos junto ao topo, que foi aliás – e muito justamente – onde eles foram parar, logo ao segundo disco.
Agora é altura de os Fontaines surgirem em negrito e bold nos cartazes e isso implica uma ligeira mudança sonora: talvez um pouco menos de vertigem na electricidade, uma pequena abertura a sons mais pop, mas também mais imaginação – como é que se continua a fazer boas canções quando se decide que não se vai repetir a fórmula ad nauseum, coisa que eles poderiam fazer com facilidade?
As respostas encontram-se sempre nas canções – como na espantosa “Starburster”, que devia servir de banda-sonora aos golos da jornada, ou ser tocada cada vez que nos pousassem um negroni na mesa, ou ser usada em todos os documentários do mundo: é um mundo, o raio da canção – começa com cordas sintetizadas, um arpejo de piano e depois aquela batida que põe logo os ossos a abanar, antes de a voz entrar, meio falada, cheia de pinta de rua, e um arranjo magnífico ecoar atrás. Depois, amaina, as cordas sobem e no fim volta-se àquele ritmo infernal e perfeito.
“Here’s the thing” tem um dos grandes riffs dos últimos anos, “In the Modern World” desce a velocidade e vê as cordas regressarem, antes de um grande refrão assomar e tudo subir (enquanto coros respondem à melodia inicial). Não é como se os Fontaines D.C. se tenham tornado nos Bad Seeds ou nos Pulp, antes foram buscar pequenas soluções aqui e ali para resolver o puzzle de como alargar o som sem trair o lugar de onde vêm. E como nas histórias felizes, tudo acaba bem, com a magnífica “Favourite”, com uma belíssima malha de guitarra que ecoa décadas de indie-rock inglês.
Ponham os rapazes no topo do cartaz, em letras gordas e digam-lhes: obrigado.