É mais um caso que realça as debilidades na resposta do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) em Portugal. Este sábado, um homem morreu numa estação de serviço, em Olhão, depois de duas chamadas terem ficado sem resposta — apenas à terceira tentativa foram acionados os meios, que chegaram ao local mais de uma hora depois (entretanto, o INEM já anunciou a abertura de um inquérito ao caso). São, de resto, crescentes as dificuldades do instituto para garantir o funcionamento regular dos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), que enfrentam uma escassez de técnicos, deixando dezenas de chamadas por atender.

Segundo o Correio da Manhã, um homem, de 60 anos, morreu numa estação de serviço da A22, entre Tavira e Olhão, depois de se ter sentido mal na zona do estacionamento. O alerta foi dado às 11h03 de sábado, mas a família não conseguiu contactar de imediato o 112. As primeiras duas chamadas ficaram sem resposta, disse ao Observador o presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, Rui Lázaro. Foi apenas à terceira tentativa, quase meia hora depois (às 11h27), que o CODU teve conhecimento da emergência e foram acionados os meios. Ao Observador, fonte oficial do INEM refere que se registou, nessa manhã, “um pico de chamadas”, o que dificultou o atendimento atempado.

Segundo o INEM, que entretanto já emitiu um comunicado sobre o incidente, o homem foi “vítima de uma paragem cardiorrespiratória”, pelo que foi acionada a Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) de Faro e uma ambulância dos Bombeiros de Olhão. O socorro só chegou uma hora depois do primeiro alerta — demasiado tempo, que, no caso de um enfarte agudo do miocárdio, por exemplo, pode reduzir significativamente as hipóteses de sobrevivência.

“Às 12:08, após assistência do utente, a equipa da VMER transmitiu dados clínicos ao CODU e informou que iria transportar a vítima em manobras de Suporte Avançado de Vida para o hospital de Faro, tendo o CODU informado o serviço de urgência do hospital da chegada do utente”, esclareceu o INEM. O homem acabou por morrer naquela unidade hospitalar. O instituto, presidido por Sérgio Dias Janeiro, admite que, “pela análise preliminar da ocorrência, foi possível apurar que se verificou um atraso no atendimento” e anunciou a instauração de um inquérito, para analisar detalhadamente o caso.

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INEM tem menos de metade dos profissionais que deveria ter

O problema está, no entanto, há muito identificado no terreno: a falta de técnicos de emergência pré-hospitalar, que faz com que se acumulem dezenas de chamadas nos CODU — impedindo a resposta atempada à população. “O que provocou esta morte, absolutamente trágica, no Algarve foi a escassez de técnicos. O quadro do INEM prevê que sejamos cerca de 1.700 e somos apenas 700”, lamenta o presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar. Faltam, por isso, 800 técnicos no INEM. O INEM fala num número mais baixo (400), mas admite a falta de técnicos.

“O INEM apresenta um défice de profissionais da categoria de Técnico de Emergência Pré-hospitalar, que realizam o atendimento das chamadas e o acionamento e acompanhamento de meios nos CODU. Este fator leva a que existam pontualmente chamadas em espera nos CODU”, realça o instituto, em resposta ao Observador, apelando aos cidadãos que não desliguem “enquanto a chamada não for atendida por um profissional, uma vez que as chamadas são sempre atendidas por ordem de entrada”.

Rui Lázaro sublinha que a escassez de profissionais se reflete em duas vertentes: no aumento da inoperacionalidade dos meios e, sobretudo, na demora no atendimento das chamadas.

INEM chegou a ter 50 chamadas em espera por falta de meios. Está em causa a “vida dos portugueses”, alertam técnicos de emergência

O responsável adianta que as quatro centrais de atendimento do país — isto é, os quatro CODU — funcionam com um quadro de técnicos abaixo dos mínimos, um problema que tem vindo a agravar-se nos últimos anos. Na génese do problema está a falta de atratividade da carreira, que afasta os técnicos de emergência pré-hospitalar, deixando os sucessivos concursos com dezenas de vagas por preencher. Em 2022, apenas 30% dos lugares foram ocupados e, sem uma revisão da carreira, Rui Lázaro admite que, no atual concurso, a situação se agrave ainda mais.

“Temos receio de que nem 25% das 200 vagas agora colocadas a concurso venham a ser preenchidas”, sublinhou o responsável, referindo que apenas foram admitidos cerca de 400 candidatos, que terão ainda de passar por várias etapas no processo de recrutamento: a prova de conhecimentos, a avaliação curricular, a prova de condução base, a avaliação psicológica, provas físicas, curso de condução defensiva e a formação. Todas elas poderão excluir candidatos. “Deixe-me traçar-lhe o paralelismo: em 2012, para 100 vagas, tivemos 10 mil candidatos“, lembra o presidente Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, que solicitou já esta segunda-feira uma audiência com caráter de urgência à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, para sensibilizar a tutela para a importância da valorização da carreira.

O sindicato considera que a única forma de reverter esta situação será o Ministério da Saúde “aceitar de uma vez por todas” a revisão da carreira, nomeadamente atualizando a remuneração base dos técnicos de emergência pré-hospitalar, que, hoje, é pouco superior ao valor do salário mínimo nacional. “É um valor  completamente desajustado às funções que desempenhamos”, critica Rui Lázaro, acrescentando que a progressão na carreira é lenta.

Enquanto o INEM não é reforçado com o número de técnicos necessários, o presidente da Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar defende que as “chamadas devem ser descentralizadas”, com o apoio de outras entidades. “Caso haja uma sobrecarga de procura, tem de haver uma redundância da Proteção Civil ou das próprias corporações de bombeiros”, sublinha Luís Canaria, defendendo que todos “devem encontrar soluções para que se melhore o socorro”.

Taxa de inoperacionalidade das viaturas aumentou. No Algarve, chega aos 80%

A falta de técnicos reflete-se também no aumento da taxa de inoperacionalidade das 44 viaturas Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação espalhadas pelo território continental. Nos primeiros sete meses do ano, as viaturas — cujas equipas são compostas por um médico e enfermeiro — estiveram paradas mais de 3.500 horas, o equivalente a 1,77% do tempo. Esta taxa representa um aumento em relação ao valor global do ano de 2023 (1,4% de inoperacionalidade) e é o segundo valor mais alto dos últimos dez anos, segundo os dados disponíveis na secção referente aos indicadores de desempenho, consultáveis no site do INEM. Neste período de tempo, apenas em 2022 se registou um valor superior ao deste ano, com 1,92%.

Inspeção Geral das Atividades em Saúde vai conduzir auditoria aos indicadores do INEM

Podendo parecer baixa, a percentagem esconde grandes variações regionais, com as VMER localizadas em hospitais do interior, do Algarve e de Lisboa a registarem os maiores períodos de inoperacionalidade. No Algarve, as viaturas estacionadas em Quarteira e em Faro estiveram, em junho, mais de 80% do tempo paradas por falta de profissionais. “Isto coloca em causa os cuidados à população”, avisa Rui Lázaro, reconhecendo que “os doentes ficam à espera de que uma ambulância fique disponível de modo a ser enviada para a ocorrência”.

No caso do homem de 60 anos que morreu no sábado no Algarve, o problema não esteve na disponibilidade dos meios mas, sim, no tempo que estes demoraram a ser acionados. “Muitas vezes os meios até estão disponíveis, mas o tempo que demora o acionamento é muito”, diz Luís Canaria.

Rui Lázaro critica a decisão da anterior direção do INEM, liderada por Luís Meira, que decidiu prescindir do sistema de call back (que permite devolver a chamada) no caso das tentativas de contacto com tempo superior a 15 minutos. Foi precisamente o que aconteceu no caso das chamadas feitas pela família do homem que morreu já no Hospital de Faro. “Nesse dia, muitas mais chamadas não foram recuperadas. Fica registado na fita do tempo”, sublinha o presidente do sindicato, que adianta que chegaram a estar em espera 30 a 40 chamadas. “Muitas pessoas desistem de ligar ou a chamada vai abaixo”, admite.

Insatisfeita com os indicadores de desempenho do INEM, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, anunciou, em julho, que o governo pedira à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) uma auditoria de natureza técnica sobre os indicadores de resultado do INEM.

A auditoria da IGAS vai avaliar os indicadores de inoperabilidade, os tempos de resposta do Centro de Orientação de Doentes Urgentes e de resposta tardia de transporte até ao hospital, com ajuda de peritos de várias áreas, nomeadamente da emergência pré-hospitalar. “No fundo, os indicadores de qualidade de emergência hospitalar”, resumiu Ana Paula Martins.

“Hoje já sabemos que o INEM que temos não é o INEM de que precisamos”, criticou a ministra da Saúde, assumindo o desejo de “refundar o INEM”. A ministra da Saúde anunciou também a criação de uma comissão independente (composta por técnicos especialistas em emergência médica) para estudar “o que tem de ser a resposta em emergência do século XXI”.