A comédia pode ser muita coisa. Um comediante mais ortodoxo vai sempre garantir-vos que é “só” um mecanismo para provocar o riso, mas outros defendem que pode também servir para passar uma mensagem. For Your Approval, o especial de stand up que Ellen DeGeneres garante ser o ponto final na sua atribulada carreira, chegou esta semana à Netflix e serve, claramente, para pelo menos duas coisas: para colocar os (seus) pontos nos is; e para satisfazer alguma cusquice aguda sobre o que é feito da apresentadora e humorista que, segundo a própria, foi “corrida do showbusiness”.

Passaram dois anos depois do fim de The Ellen DeGeneres Show, o sucesso de daytime que fez verdadeiramente de Ellen uma das maiores estrelas dos Estados Unidos e, por consequência, do mundo. O final foi ditado por uma polémica muito paradigmática do mundo de hoje: apesar de no programa advogar a bondade (a frase de despedida era “sejam gentis”), pelos vistos nos bastidores a apresentadora era ácida e muitas vezes maldosa. Usando a palavra do momento: era tóxica. Um artigo da Buzzfeed expôs a situação, com depoimentos de ex-funcionários. Pouco tempo depois, o outrora invencível formato foi cancelado.

Ellen andou desaparecida desde aí, para agora lhe acontecer o que sucede a muitos dos artistas que se sentem cancelados: reaparecer, com um contrato chorudo, no maior serviço de streaming do mundo. For Your Approval foi gravado em agosto deste ano em Minneapolis, no Orpheum Theatre, de propósito para a Netflix. Já em 2018 tinha feito um especial para esta plataforma, com Relatable, o regresso ao stand up depois de 15 anos apenas focada em entrevistar celebridades e pregar-lhes o ocasional susto infantil.

[o trailer de “Ellen DeGeneres: For Your Approval”:]

For Your Approval, garante a própria, é o seu último especial de sempre, a despedida final dos holofotes, aos 66 anos. Porém, se o inferno está cheio de boas intenções, o mundo do entretenimento está cheio de despedidas adiadas. De bandas que andam a dizer adeus ao mundo há meia dúzia de digressões até a comediantes que garantem que nunca mais os vamos ver, mas é só até ao próximo cheque ou à próxima necessidade de massagens no ego. Só o tempo dirá se Ellen DeGeneres se contentará a passar tempo com as galinhas das quais tanto fala durante este especial.

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For Your Approval arranca com DeGeneres a caminhar nos bastidores enquanto são passados em revista a sua carreira e o seu espólio de polémicas, com excertos de vídeos, áudios, manchetes. Como a própria lembrará durante o espectáculo, esta não foi a primeira vez que foi afastada. Tornou-se famosa com um papel numa popular sitcom em nome próprio (exibida na ABC entre 1994 e 1998), sendo pioneira em assumir-se como lésbica (quer como personagem, quer na vida real). A polémica foi de tal forma que a série foi cancelada e DeGeneres andou aos caídos até 2003, quando regressou como apresentadora do The Ellen DeGeneres Show, um dos talk shows de maior sucesso da História.

Chegada ao palco, a comediante não demora muito até falar do tema que todos querem ouvir. Começa com uma reflexão, que se repetirá ao longo do espectáculo, sobre se está ralada ou não com o que os outros pensam dela (spoiler: está). Também fala sobre como se sente observada em restaurantes, em que as pessoas estão sempre na dúvida se vai começar a dançar (uma das imagens de marca do seu antigo programa) ou se vai ser má com alguém. Goste-se ou não do género cara de pau ou do apelo mainstream, de uma coisa não restam dúvidas: poucos são tão bons neste estilo. Escorreita, certeira, com muito boa entrega, a voz de Dori é aqui um peixe dentro de água, nadando com alegria no seu habitat natural.

Com o público totalmente do lado dela, Ellen tanto fala de como estacionar um carro como fala da demência da mãe. Mas não esquece o tema que todos querem ouvir e não o escamoteia. Durante a grande maioria do espectáculo tem o discernimento de não se explicar, mas de fazer piadas sobre a polémica, a partir do seu ponto de vista. Tem trechos bem conseguidos sobre como um jogo da apanhada com funcionários pode ser percecionado como violento ou sobre como não se considerava chefe só por o programa ter o seu nome, tal como o palhaço-mascote Ronald McDonald não é o CEO da McDonald’s.

Onde o espectáculo borra a pintura é no fim, quando Ellen cede à moda de fazer um final sério e com uma boa dose de autocomiseração. De repente, está só ali a justificar-se, explicando ser carinhosa, mas também exigente e impaciente. Descreve-se como “uma mulher forte”, o que causa uma apoteose de público de pé. Faz o discurso da praxe sobre saúde mental. Chama a mulher ao palco. E diz adeus à comédia com um ajuste de contas e não com graça – isto depois de uma hora a mostrar que tem carisma e talento para dar outra volta ao texto.

Se esta foi mesmo a sua última vez em cima de um palco, Ellen DeGeneres tem, claro, o legítimo direito de a usar como quiser. Mas acabou por se tornar numa despedida amarga, auto-justificativa, que a deixa definida para a História exatamente pela polémica que abominou. E Ellen, se calhar, foi (é?) mais que isso.