A Overton window, a janela de Overton, (ou ainda fenêtre de discours, como se diz em Paris), é uma expressão chique para designar os assuntos que podem ser discutidos no espaço público pela generalidade das pessoas. No fundo, são os temas que as pessoas toleram que sejam abordados, como falar mal dos espanhóis enquanto se elogia o Algarve.
Em Portugal, comida e restaurantes estão fora dessa janela. Que ninguém se atreva a colocar em causa a qualidade da nossa comida e a simpatia do nosso pessoal. Não se podendo discutir, não se pode melhorar, aviso. C’est triste mais c’est la vie.
Jospeh Overton era americano o que talvez implicasse que só comia batata frita e hambúrguer, pelo menos é o que se diz dos americanos, para usar a metodologia da sua ‘janela’.
Overton não conhecia certamente as maravilhas da cozinha nacional, nem vai conhecer, porque morreu em 2003. E nós, conhecemos? J’ai des doutes.
Todas as cidades têm as suas cantinas, como se sabe. Lisboa não é exceção. Não há muitos dias, estive numa das mais frequentadas pelas elites de homens de negócios portugueses, o restaurante Jockey, que fica dentro do Hipódromo do Campo Grande. Não tenho a certeza, mas acho que era das únicas pessoas que não estava ali ao almoço para fechar um business qualquer. Ou para espiar quem está a comer com quem. Senti-me a mais, visível, talvez porque não usasse camisa branca com casaco cinzento ou azul escuro ou talvez porque não fui ali para negociar, mas para conversar e matar saudades.
O acesso ao Jockey, perto da cidade universitária, é simples de encontrar – basta usar o Waze. Chegando é continuar em frente, sem receio dos pórticos e cancelas, qualquer um pode entrar pelo meio de boxes, chevaux, amazonas, pisando as lombas e um piso em muitíssimo mau estado. Arruma-se o carro lá ao fundo, não é preciso dar moedinha a ninguém. Ficamos sempre com a impressão que estamos na quinta de alguém, mas não é verdade, ignorem os olhares pouco amistoso dos cavaleiros que o Hipódromo é de todos.
No Jockey existem várias zonas, incluindo uma área de exterior agradável (se estiver bom tempo). Por toda a parte existem incontáveis mesas que estão muito perto umas das outras, talvez para que possamos ouvir o que não devemos. Que me recorde não há musique de fond, mas em compensação os aviões passam-nos por cima, obrigando a que interrompamos as conversas.
Este é o tipo de restaurante onde alguém nos leva. Também é um tipo de restaurante onde se vai julgando que estamos razoavelmente sossegados, uma ideia criada pela ilusão de estarmos em milieu rural, mas onde afinal encontramos meia Lisboa, se calhar com a mesma ideia que nós. A minha companhia cumprimentou mais de dez pessoas e fez muito bem. Suspeitei que me levou ali para ser visto por alguém, não foi um tópico que tenha aprofundado.
Como nos locais que os lisboetas preferem, a comida é o menos importante. Não quisemos as entradas, ficaram ali na toalha de pano a olhar para nós, até que alguém as levou. Comemos turbot, que estava banal e que acompanhámos com água. As doses do pregado eram mínimas e os pratos vieram já servidos, sem travessas a atrapalhar, em linha com o espírito cantina. Achei interessantíssimo. Devem ter adivinhado que ambos fazíamos a dieta obrigatória a seguir às férias, as prometidas batatas a murro eram pequenas como azeitonas.
As partes boas do Jockey manifestam-se na familiaridade, na ausência de ruídos urbanos, no imenso espaço e nos empregados que conseguem simular ser diligentes e atentos. São daqueles que usam uns polos brancos enfiados nas calças, realçando barrigas proeminentes.
Como em qualquer restaurante português que quer ser prezado, a carta é longa como uma espera. Não vá alguém querer polvo à lagareiro, outro querer Dourada à Bulhão Pato, outro ansiar por fetucinne de camarão e um quarto apetecer-lhe tornedó com passas de uva. Os quatro constam do menu, bem como várias mãos cheias de outros pratos bem portugais. (Para quem tenha tempo, a lista completa pode ser lida online)
Não sabia bem como qualificar o restaurante até que decidi visitar o site. Transcrevo:
“Visitar o Jockey Restaurante, localizado no Hipódromo do Campo Grande, é apagar dos nossos sentidos que estamos em plena cidade de Lisboa. Na sua esplanada com vista desafogada, somos envolvidos por uma agradável tranquilidade e por um silêncio, apenas esporadicamente quebrados pelo som dos cascos de algum cavalo a bater nos paralelos.”
Talvez então o restaurante seja propriedade de poetas ou pelo menos personnes sensibles. Pode ser que haja por lá qualquer magia que me tenha escapado, um esprit cantine ao alcance dos eleitos. No fim de contas o Jockey vale a pena e valerá ainda mais a pena com alguém que o conheça bem e conheça os empregados. É a típica comida portuguesa, o bacalhau, o cabrito, o bife de todas maneiras e feitios, o arroz de marisco, que inclui o típico jeito português do improviso, se não gostarem de nada disto, a cozinha arranjará sempre qualquer coisa. É um pouco caro mas não faz mal. Este é mesmo o tipo de sítio para meter nas despesas nos dias de semana e para voltar com os avós endinheirados ao fim de semana.
Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de amêijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.