A multidão aplaudiu, em apoteose, quando Aziz Salha apareceu à janela, mostrando as palmas das duas mãos manchadas de sangue. O homem tinha acabado de esfaquear dois soldados israelitas que, por engano, conduziram o seu carro para onde não deviam – e deram de caras com soldados da Autoridade Palestiniana que tinham montado um bloqueio de estrada na Cisjordânia. A imagem, que se tornou um símbolo da luta palestiniana e marcou a memória coletiva dos israelitas, foi captada a 12 de outubro de 2000 – e quase 24 anos depois, Aziz Salha terá sido morto num ataque aéreo na Faixa de Gaza.

A morte dos dois soldados ficou conhecida pelos “linchamentos de Ramallah”. Vadim Norzhich e Yosef Avrahami, ambos reservistas israelitas, conduziam um carro (civil) em direção a um ponto de encontro em Beit El, onde o exército israelita tinha posições. Mas os dois não conheciam muito bem as estradas e acabaram detidos por soldados palestinianos que os levaram para uma esquadra em el-Bireh, uma das principais cidades da região de Ramallah.

De acordo com o relato feito pelo Jerusalem Post, sobre os acontecimentos daquele dia, rapidamente se intensificaram os rumores, entre a população, de que havia um par de soldados israelitas detidos na esquadra de polícia, suspeitos de uma tentativa de infiltração.

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A região vivia dias tensos: naquele mesmo dia tinha sido o funeral de um jovem palestiniano morto pelo exército israelita – o último de mais de 100 palestinianos que, nas semanas anteriores, tinham morrido em confrontos com israelitas na Cisjordânia. Alguns meses antes, tinham fracassado as negociações israelo-palestinianas em Camp David (EUA), o que criou condições para o início da chamada “Segunda Intifada”, a violenta insurreição palestiniana que começou naquele ano de 2000 e durou até 2005.

Convencidos de que aqueles dois soldados israelitas eram agentes à paisana, largas centenas de palestinianos foram para as ruas, dirigindo-se para a esquadra de polícia de el-Bireh, cidade controlada pela Autoridade Palestiniana. As imagens, que mostravam uma multidão em fúria, à procura dos soldados, foram difundidas mundialmente nos primórdios da internet de banda larga.

Mais tarde, foi noticiado que o exército israelita se apercebeu do motim que se estava a formar. Mas foi tomada a decisão de não avançar com uma possível operação de salvamento dos dois soldados, já que aquela era uma zona muito patrulhada pelas militares da Autoridade Palestiniana – o quartel-general de Yasser Arafat era logo ali ao lado.

Treze guardas (palestinianos) acabaram feridos, completamente incapazes de impedir a invasão popular da esquadra de polícia. Dali a alguns momentos, Vadim Norzhich e Yosef Avrahami, os dois jovens soldados israelitas, tinham sido espancados e esfaqueados até à morte sobretudo por dois palestinianos – um deles era Aziz Salha, que logo foi à janela com as mãos ensanguentadas.

Os corpos dos soldados israelitas foram, depois, atirados pela janela para o meio da rua. A multidão desmembrou-os, deitou-lhes fogo e levou-os para a praça Al-Manara, a praça central daquela cidade. As imagens, captadas por correspondentes da imprensa internacional, eram de uma violência tal que a Autoridade Palestiniana tentou, sem sucesso, proibir a sua distribuição.

Não sendo o mais mortífero, este incidente foi, pela crueza das imagens, o que mais marcou os primeiros meses da “Segunda Intifada”. Nos meses e anos que se seguiram, mais de 1.000 israelitas e mais de 3.000 palestinianos morreram nos confrontos entre os dois povos.

Os dois homens que mataram os soldados israelitas acabaram por ser presos por Israel, e condenados a prisão perpétua. Nasser Abu Hamid, que colaborou com Aziz Salha na morte dos dois soldados, morreu com um cancro em dezembro de 2022. Já o protagonista do incidente, Aziz Salha, foi enviado para a Faixa de Gaza num acordo feito em 2011 para a libertação de um soldado israelita chamado Gilad Shalit.

Na madrugada desta quinta-feira, surgiu na imprensa palestiniana (citada pelo The Times of Israel) a informação de que Aziz Salha teria sido morto num ataque aéreo israelita no centro da Faixa de Gaza. A Reuters também noticia a morte do homem, citando fontes das equipas médicas e publicações ligadas ao Hamas.

Não se sabe, para já, se esse foi um ataque aéreo especificamente preparado para matar este homem que se tornou um símbolo da luta palestiniana – as Forças de Defesa de Israel não fizeram, para já, qualquer comentário.