É uma decisão judicial que pode mudar a forma como o mercado de transferências funciona. Esta sexta-feira, o Tribunal de Justiça da União Europeia decide sobre o caso que opõe a FIFA e Lassana Diarra, antigo internacional francês que passou por Chelsea, Arsenal, Real Madrid e PSG — e as consequências podem ser maiores e mais alargadas do que as do Caso Bosman.
A história começa no verão de 2014. Na altura, aos 29 anos, Lassana Diarra jogava no Lokomotiv Moscovo. De acordo com o caso, o jogador desentendeu-se com o então treinador Leonid Kuchuk e o clube russo seguiu em frente com um substancial corte de salário, sendo que Diarra reagiu ao deixar de aparecer nos treinos. Em agosto de 2014, e tendo em conta que o vínculo do francês se prolongava até 2017, o Lokomotiv Moscovo despediu o francês com base na ausência das sessões de treinos e acusou-o de violação dos termos contratuais.
If the transfer system were to end tomorrow, what would replace it?
This is actually being talked about, as Friday sees the potential "new Bosman" of the Lassana Diarra case being decided at the European Court of Justice
So what is actually happening?https://t.co/tNJOXxdiTt
— Miguel Delaney (@MiguelDelaney) October 3, 2024
O diferendo chegou ao Tribunal Arbitral do Desporto, com o Lokomotiv Moscovo a procurar ser recompensado, e apesar do recurso da defesa de Lassana Diarra o jogador foi mesmo multado no valor de 10,5 milhões de euros. Praticamente ao mesmo tempo, recebeu uma proposta dos belgas do Charleroi, que tinham uma condição: garantir que Diarra podia transferir-se livremente e que o clube belga não seria responsável pela dívida ao Lokomovit Moscovo. A FIFA, porém, não deu essa garantia.
De acordo com a resposta do organismo que regula o futebol mundial, uma transferência internacional implica que a liga que o jogador está a abandonar tem de certificar a saída. Ora, sem que Diarra tivesse saldado a dívida milionária ao Lokomotiv Moscovo, essa certificação era impossível de obter. A sequência foi simples: em dezembro de 2015, mais de um ano depois de deixar os russos, o jogador francês lançou uma ofensiva judicial contra a FIFA e a Liga belga (ao lado de Jean-Louis Dupont, advogado do Caso Bosman), iniciando um longo processo que tem um dos seus dias decisivos esta sexta-feira.
O caso ainda está a decorrer nos tribunais da Bélgica, mas acabou por ser transferido para o Tribunal de Justiça da União Europeia por estar relacionado e dependente de duas leis europeias: o direito à liberdade de movimentos para indivíduos e a preservação da competitividade dentro de mercados internos. Já este ano, o Primeiro-Advogado-Geral do Tribunal de Justiça da União Europeia emitiu um parecer sobre o caso — parecer esse que vai naturalmente guiar o pensamento do Tribunal e que é favorável a Lassana Diarra.
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Basicamente, Maciej Szpunar separou o diferendo em três questões: 1) a FIFA, enquanto autoridade, atuou contra o direito de liberdade de movimentos de Diarra quando negou a autorização de transferência para o Charleroi?; 2) a obrigação imposta a um clube comprador de cobrir os custos da saída de um jogador do clube anterior afeta a sua possibilidade de realizar negócio?; e 3) as regras do mercado de transferências da FIFA atingem estas consequências pela forma como estão formuladas?. A todas estas perguntas, respondeu que sim. Se o Tribunal de Justiça da União Europeia entender o mesmo, o mercado de transferências tem questões estruturais que terão de ser adaptadas.
Mercado de transferências atinge recorde de 9 mil milhões de euros em 2023
A decisão desta sexta-feira — que não será decisiva, já que o caso ainda vai mesmo voltar aos tribunais da Bélgica — pode cair para o lado da FIFA e permanece tudo na mesma, pode cair para o lado de Lassana Diarra, considerando que um jogador pode sair de um contrato sem colocar em risco a ida para um novo clube ou implicar custos a esse mesmo novo clube, ou pode ter um desfecho no meio das duas opções. Por exemplo, serem exigidas provas de que um clube comprador impulsionou a rescisão unilateral de um jogador sem justa causa.
Uma decisão contra a FIFA, porém, pode retirar o poder nas negociações de transferências e contratos dos clubes e colocá-lo por inteiro do lado dos jogadores (e dos seus agentes). De forma natural, aumentariam as rescisões de contratos e existiria maior incerteza sobre o verdadeiro valor de uma transferência, para além de que os clubes mais ricos e mais poderosos teriam ainda mais formas de persuadir um jogador de uma equipa mais pequena a abandonar um contrato.
O caso decorre há praticamente uma década e Lassana Diarra, que tem agora 39 anos, acabou mesmo por não ir para o Charleroi, assinando pelo Marselha no verão de 2015. Esteve dois anos nos franceses antes de ir um ano para o Al Jazira dos Emirados Árabes Unidos, regressando à Europa para terminar a carreira em 2019 e depois de duas épocas no PSG. De forma mais destacada, conquistou duas Taças de Inglaterra, com Chelsea e Portsmouth, uma La Liga, uma Taça do Rei e uma Supertaça com o Real Madrid e ainda uma Ligue 1, uma Taça de França, uma Taça da Liga e uma Supertaça com o PSG. Somou 34 internacionalizações por França, sem marcar qualquer golo, e esteve no Euro 2008.