Falou-se num efeito Bosman, não terá o mesmo efeito da lei Bosman, é muito mais abrangente do que o caso Bosman. A decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia em relação ao diferendo que opõe o ex-jogador Lassana Diarra e a FIFA voltou a ser favorável ao antigo internacional francês mas, ao contrário do que se viu na década de 90 com o belga, o órgão que tutela o futebol mundial considera que o acórdão conhecido fará com que “dois parágrafos de dois pontos” do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores tenham de ser revistos em vez de frases como “é o fim deste desporto” ditas por altura do diferendo com Jean-Marc Bosman. Será mesmo assim? Só o tempo dirá. Mas pode haver mais do que isso.

Um diferendo com uma década que continua mesmo depois do fim da carreira. Pode Diarra ser o novo Bosman e mudar o futebol?

Logo à cabeça, e para utilizar casos concretos, o que aconteceria com a saída de Rafael Leão do Sporting em 2018? De acordo com as atuais regras, o Lille foi obrigado a pagar o valor da multa aos leões depois de não ter sido provada a justa causa na rescisão do avançado; agora, à luz deste acórdão, o clube pelo qual o atleta assina, neste caso a formação francesa, não poderia ser responsabilizado a não ser que o conjunto português conseguisse provar que foi a nova equipa que interferiu nessa revogação do vínculo. A multa, essa, mantinha-se mas imputada apenas ao jogador e porque, segundo a FIFA e o TAD, não havia motivos para rescindir. Este é um dos pontos que irá mudar no futebol a nível de transferências, à luz de um processo que teve início há quase uma década e que teve o antigo jogador de Chelsea, Arsenal ou PSG no epicentro.

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Quem? Lass Diarra, o campeão com Mourinho que foi perseguido por azares na seleção

Lassana Diarra tinha tudo para passar ao lado de uma carreira. Nascido em Paris, filho de pais malianos, o início não foi fácil no Paris FC, tendo sido recusado por vários clubes nos testes que ia fazendo. O Nantes, que foi o segundo clube na formação, chegou mesmo a descrevê-lo como um miúdo demasiado pequeno e leve para um dia ter lugar no futebol profissional. Ainda passou pelo Le Mans e pelo Red Star 93, sendo que foi no Le Havre que encontrou o seu porto seguro, encontrando um clube onde acreditavam no potencial a ponto de apostarem na sua subida ao conjunto principal. A época de 2004/05 foi um ponto chave, com o destaque na seleção francesa Sub-21 a levá-lo até ao Chelsea de José Mourinho visto como “um novo Makélélé”.

Os tempos em Stamford Bridge não foram fáceis, não só pela concorrência que tinha no meio-campo dos campeões ingleses (onde ganhou também uma Taça de Inglaterra e uma Taça da Liga, entre as três partidas na Premier League de 2005/05 ganha pelos blues) mas também pelas necessidades da própria equipa, que em alguns encontros fizeram com que recuasse de médio mais defensivo para lateral direito. Em 2007/08 rumou ao Arsenal, onde também não vingou, passando depois para o Portsmouth, onde 18 meses chegaram para convencer o Real Madrid a comprar o seu passe no seguimento da lesão de Mahamadou Diarra. Ganhou uma Liga, uma Taça e uma Supertaça com Ronaldo, Pepe, Fábio Coentrão e Mourinho antes de embarcar para o El Dorado russo em 2013, que teve início no Anzhi e seguiu no Lokomotiv Moscovo. Foi aí que começou a ir caindo, jogando ainda no Marselha, no Al Jazira e no PSG antes de acabar a carreira em 2019.

Ergueram-se, os filhos da Pátria

Lass Diarra mereceu também 34 internacionalizações pela equipa principal de França, sendo chamado à fase final do Campeonato da Europa de 2008 naquela que seria a única grande prova onde entrou por motivos físicos: em 2010, quando estava na lista de Raymond Domenech para o Mundial de 2010 na África do Sul, contraiu um problema de saúde devido à altitude do local do estágio e saiu das opções por necessitar de algumas semanas de repouso; em 2016, após uma ausência de cinco anos dos bleus, foi chamado por Didier Deschamps para o Europeu mas sofreu uma lesão no joelho e foi substituído na convocatória final. Há ainda outra história trágica que liga o jogador à seleção: após ter regressado às opções, o médio estava no Stade de France no jogo com a Alemanha a 13 de novembro de 2015 quando um ataque terrorista na cidade de Paris matou mais de 130 pessoas incluindo o próprio primo de Lass Diarra, Asta Diakité.

O quê? Não quis baixar salário, viu o vínculo rescindido e ainda foi intimado a pagar

No último dia da janela do mercado de transferências de verão de 2012, Lass Diarra aceitou o repto lançado por Samuel Eto’o, grande figura do Anzhi (clube do Daguestão que treinava mais em Moscovo no que no seu próprio recinto), e rumou ao futebol russo. Uma época depois, depois de ter sido falado para clubes como o PSG, acabou por permanecer no Leste, assinando pelo Lokomotiv Moscovo e tornando-se a segunda maior contratação do clube (15 milhões de euros, apenas superado por Mbark Boussoufa). Os primeiros meses corresponderam às expetativas, assumindo um papel de destaque na equipa e sendo reconhecido também pelos adeptos como Melhor Jogador duas vezes consecutivas, mas a paragem de inverno quebrou a linha inicial, começando a falhar vários jogos e a ter exibições aquém do que fizera na metade inicial.

No verão de 2014, Leonid Kuchuk decidiu prescindir do médio. Surgiram notícias de que o Lokomotiv estava a tentar reduzir o salário do jogador, que recusou essas propostas, e Lass Diarra acabou mesmo por ficar a treinar à parte por alegada falta de entrega e profissionalismo. Tendo ligação até 2017, a equipa moscovita avançou com a rescisão unilateral por justa causa do contrato, avançando com uma queixa para a FIFA por forma a ser ressarcido caso o gaulês assinasse por algum dos clubes que iam fazendo abordagens, sobretudo das ligas inglesa e italiana. Devido a essa situação, as oportunidades foram passando. Ficaram no final os belgas do Charleroi, que queriam assinar com o médio mas tinham um problema: acabara de ser punido pela FIFA para pagar uma “multa” de dez milhões de euros ao Lokomotiv para ficar “livre”.

Quando e onde? Começou em 2014, “virou” na Bélgica em 2017 e dura há dez anos

Tudo aconteceu em agosto de 2014, apenas um ano depois de ter assinado contrato por quatro épocas até 2017. O Lokomotiv deu entrada da rescisão unilateral e pediu uma compensação para que o jogador pudesse depois assinar por qualquer outro clube. A FIFA, mais especificamente a Câmara de Resolução de Litígios, deu razão ao clube russo, que intimou Lass Diarra a pagar 10,5 milhões de euros aos moscovitas. Contudo, a história não iria ficar por aí. Longe disso. Dez anos depois, fala-se de um possível caso Bosman 2.0.

Revoltado pela multa e pela impossibilidade de assinar pelo Charleroi já depois de ter perdido o “comboio” de muitas outras equipas, o médio francês decidiu avançar para a justiça belga e para o Tribunal de Comércio de Charleroi. Em 2017, foi-lhe dada razão: os artigos que a FIFA invocava para a sanção estariam a violar o direito comunitário da União Europeia, nomeadamente o direito à livre circulação de trabalhadores, e teria de ser o órgão que tutela o futebol mundial a indemnizar Lass Diarra. Depois dessa decisão, o caso andou em recursos e chegou agora ao Tribunal de Justiça da União Europeia com a FIFA a ter do seu lado a Federação Belga de Futebol no processo, que deu também razão em sentença definitiva ao que tinha sido defendido.

Como e porquê? Violam leis da UE de livre circulação (mas FIFA fala só em dois parágrafos)

Um dos pontos mais relevantes da queixa apresentada por Lass Diarra passava pelo desacordo de atribuir uma responsabilidade por parte da nova equipa por quem assinou, neste caso o Charleroi, a pagar qualquer tipo de compensação ao anterior clube, o Lokomotiv de Moscovo. “As normas em questão são tais que impedem a livre circulação de futebolistas profissionais que desejem prosseguir a sua atividade trabalhando para um novo clube”, defende o Tribunal de Justiça da União Europeia. Mais: “Estas normas não só constituem um obstáculo à livre circulação de atletas como restringem a competição entre os clubes”.

“Um antigo futebolista profissional estabelecido em França impugnou nos órgãos jurisdicionais belgas algumas das normas adotadas pela FIFA e que estão vertidas no ‘Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores’ da FIFA. Estas normas advogam, entre outras, a situação em que um clube acredita que pode rescindir o contrato de trabalho com um jogador sem ‘justa causa’ antes do seu término. Nesses casos, o jogador e o clube que pretenda depois contratá-lo são responsáveis solidários do pagamento de qualquer adequada ao seu antigo clube. Da mesma forma, em certos casos, poderá ser imposta ao novo clube uma sanção desportiva que consista na proibição de contratação de novos jogadores por um determinado período”, começou por balizar esta sexta-feira o Tribunal de Justiça da União Europeia.

“O Tribunal de Justiça declara que estas normas no seu conjunto são contrárias ao Direito da União. Por um lado, as normais em questão podem colocar obstáculos à livre circulação de futebolistas profissionais que desejem prosseguir a sua carreira e trabalhar para um novo clube, estabelecido no território de outro Estado membro da União. Assim, as ditas normas supõem que os jogadores e os clubes que desejem contratá-los ficam expostos a riscos jurídicos importantes, a riscos económicos imprevisíveis e potencialmente muito elevados e a riscos desportivos sérios que, considerados no seu conjunto, podem ser um obstáculo à transferência internacionais desses mesmos jogadores”, defende, citado pela imprensa internacionais.

Em resumo, aquilo que o Tribunal de Justiça da União Europeia defende é que as regras de transferência de jogadores da FIFA violam aquilo que é a lei da União Europeia. No entanto, e na reação, a FIFA mostra-se despreocupada por entender que estão em causa apenas dois parágrafos do Regulamento. “A FIFA está satisfeita porque a legalidade dos princípios chave do sistema de transferências voltou a ser confirmada. A sentença só coloca em questão dois parágrafos de dois artigos do Regulamento da FIFA sobre o estatuto e a transferência de jogadores, que agora o tribunal nacional está convidado a verificar. A FIFA irá analisar a decisão em coordenação com outras partes interessadas antes de mais comentários”, advogou.

“A decisão emitida a favor de Lassana Diarra abre o caminho para a modernização do governance atual do futebol. Depois das sentenças sobre a Superliga Europeia e sobre o Antuérpia, o Tribunal de Justiça da União Europeia, uma vez mais, castiga de forma severa as atuações estruturalmente ilegais dos atuais reguladores do futebol”, defendeu Jean-Louis Dupont, advogado que ficou conhecido por ter representado Bosman no caso que mudou a história do futebol mundial nos anos 90 e que representou o antigo médio, recordando que os pontos 17.4 e 17.5 da Regulamentação estão agora obrigados a ser mudados. Ou seja, um clube que assine com um jogador que rescindiu previamente o contrato de forma unilateral não tem qualquer tipo de responsabilidade naquilo que é a sua decisão, algo que muda e muito o mercado de transferências.

“Bosman continuará a ser um símbolo, o acórdão Bosman, porque foi o momento em que, diria eu, o leigo na rua se apercebeu de que havia uma coisa chamada direito comunitário que podia tocar no futebol. Mas, no que se refere à substância, este acórdão é muito, muito, muito mais abrangente do que Bosman. Em primeiro lugar, não se trata apenas de livre circulação de trabalhadores, trata-se também de livre concorrência. Em segundo lugar, não se limita a dizer que estas e aquelas regras exatas da FIFA são claramente ilegais, também diz: ‘Mas quem raio é a FIFA para regular este mercado de trabalho?’”, acrescentou mais tarde Dupont, falando à Reuters sobre o impacto da decisão que foi agora conhecida.