Em 2016, pouco antes da eleição de Donald Trump como Presidente dos EUA, a produtora Funny or Die estreou no seu site, de borla, Donald Trump’s The Art of the Deal: The Movie, de Jeremy Konner, em que um irreconhecível Johnny Depp, pesadamente maquilhado e cheio de chumaços, personifica Trump. O filme pode ser visto no YouTube e começa com o realizador Ron Howard a revelar ter achado a videocassete de um telefilme esquecido e perdido há muitos anos, produzido, escrito, realizado e interpretado por Donald Trump, adaptando o seu “best-seller” Trump: The Art of the Deal para promoção pessoal e do livro, e que é a seguir exibido.
[Veja o trailer de “Donald Trump’s The Art of the Deal: The Movie”:]
Contando no elenco com nomes como Patton Oswalt, Alfred Molina ou Henry Winkler, Donald Trump’s The Art of the Deal: The Movie é uma sátira desarrumada e feroz de 50 minutos à figura de Trump e aos aspetos menos palatáveis da sua personalidade, caricaturalmente exagerada e com traços de nonsense (na sequência do casamento de Trump com Ivana, o Alf da série de comédia homónima está entre os convidados e faz um brinde aos noivos, com Trump a responder, comovidamente, que ele é o único “alien” de quem gosta), e dominada pela interpretação endiabrada de Depp.
O humor decapante de Donald Trump’s The Art of the Deal: The Movie faz bastante falta ao laborioso, esquemático e bisonho The Apprentice: A História de Trump, assinado pelo iraniano-dinamarquês Ali Abbasi (Na Fronteira, Holy Spider), e que apesar da insistência do realizador e dos produtores em dizerem que se trata de uma abordagem “justa é equilibrada” à figura do recandidato à Casa Branca, não passa, lá no fundo, de mais uma contribuição para àquilo a que gosto de chamar o PDDTEC, ou Processo de Diabolização de Donald Trump em Curso (a fita passou na Competição do Festival de Cannes, sendo longamente aplaudida, como não podia deixar de ser).
[Veja o trailer de “The Apprentice: A História de Trump”:]
Trump tentou, através dos seus advogados, bloquear a exibição da fita nos EUA, mas apesar disso, The Apprentice: A História de Trump estreou-se há alguns dias. E é bem melhor assim, até porque não irá fazer a menor mossa à campanha daquele, tal como Donald Trump’s The Art of the Deal: The Movie não fez na altura. O filme abre com uma nota avisando que certos acontecimentos da história foram ficcionados e centra-se na ascensão do ambicioso jovem Donald J. Trump (Sebastian Stan) no mercado do imobiliário de Nova Iorque nos anos 70 e 80, quando ele queria a todo o custo sair da sombra do pai, o multimilionário Fred Trump (Martin Donovan), e instalar-se e triunfar por conta própria.
Ali Abbasi e o argumentista Gabriel Sherman apresentam Trump como tendo sido “fabricado” por Roy Cohn (Jeremy Strong), o temível advogado e mediador político que, nos anos 50, conseguiu a condenação à cadeira elétrica do casal Rosenberg, por espionagem para a União Soviética. Trump contratou-o como advogado e terá acabado por se moldar nele (foi o seu “aprendiz de feiticeiro”, uma referência também ao “reality show” que teve na televisão), para poder vencer no mundo dos negócios, pondo de parte quaisquer princípios, escrúpulos e valores, recorrendo à intimidação, ao suborno e à chantagem sempre que necessário, e fazendo tudo para ganhar e nunca admitir a derrota. Abbasi mostra também Trump a violar a primeira mulher, Ivana (Maria Bakalova), a consumir anfetaminas para perder peso e a fazer lipossucções e cirurgia plástica. Só falta pô-lo a bater em ceguinhos e pontapear cães vadios.
[Veja uma entrevista com Ali Abbasi:]
Como costuma acontecer neste tipo de filmes biográficos — e ainda mais se têm um viés contra o biografado —, factos, ficção e especulação acabam por se misturar e confundir, e os espectadores menos avisados e mais influenciáveis acabam por tomar o todo por verdade e acreditar que aquilo que viram corresponde inteiramente à realidade. A subtileza está longe de ser uma qualidade de Abbasi, que lhe prefere o traço bem grosso. The Apprentice: A História de Trump é um filme de monstros cartoonescos, prontos-a-execrar e sem redenção, que se movimentam por um mundo sinistro de deboche, narcisismo, golpes baixos, corrupção, sede de poder e veneração do dinheiro, sendo que o “capitalismo” e a “ganância” estão na raiz de tudo, e tudo explicam.
[Veja uma entrevista com Sebastian Stan e Jeremy Strong:]
A verdade é que The Apprentice: A História de Trump não traz praticamente nada de novo ao que já se sabe sobre Donald Trump, e pode ser encontrado na página que a Wikipédia lhe dedica e em vários documentários já feitos sobre ele (por exemplo, Trump: What’s the Deal?, de 2016), sendo uma confeção pouco hábil e bastante calculista de factos comprovados, especulações e liberdades dramáticas. Os execradores de Trump irão aplaudir e plebiscitar o filme, e vê-lo como uma confirmação de tudo o que já pensavam sobre ele. Enquanto que os seus apoiantes, ou os que, não gostando particularmente dele, o veem como o menor de dois males, ou o ignorarão como se não existisse, ou o irão ver para depois dizerem todo o mal possível.
Sebastian Stan é um Donald Trump pouco crível, da voz à atitude geral da personagem, dos maneirismos à extroversão brusca e afirmativa. Nem o cabelo funciona. Devia talvez ter ido espreitar a composição de Johnny Depp em Donald Trump’s The Art of the Deal: The Movie para tirar umas dicas. Quanto ao Roy Cohn de Jeremy Strong, é de uma tal unidimensionalidade maléfica, que parece ter saído da Mordor de O Senhor dos Anéis para a Nova Iorque das décadas de 70 e 80 em que a fita decorre. A época é recriada evocando as estafadas atmosferas visuais de sordidez e de excessos, berrantes e de mau gosto novo-rico de outros filmes e séries de televisão ambientadas nessa era. Em The Apprentice: A História de Trump, Ali Abbasi prega aos convertidos e não cativa os descrentes.