O cliente é como o material: tem sempre razão, mas às vezes avaria. Formulo esta máxima enquanto navego pelas avaliações online da Marítima de Xabregas, um clássico lisboeta que sempre mereceu a minha simpatia. Acontece que há uns bons dez anos não ponho lá os pés e antecipo o regresso espreitando de longe. Entre as últimas trinta entradas no TripAdvisor, conto onze vezes a nota 1 (terrível). Visto daqui, parece um naufrágio.

A Internet é hoje um livro global de reclamações (de aclamações também, mas a censura berra sempre mais alto) e o mundo inteiro está sujeito a avaliação. Nada escapa ao mercado reputacional. Restaurantes, hotéis e lojas, praias, campos e montanhas, tudo é digno de nota e tudo denota indignação. A Torre Eiffel é alta demais; o Taj Mahal lembra a morte da minha mãe; o Grand Canyon não passa de um buraco no chão; e o Cemitério dos Prazeres não cuida dos gatos e só quer saber dos mortos (269 avaliações, nenhuma do ponto de vista do utilizador — essas ficam guardadas para o juízo final).

De maneiras que é assim. Com idêntica ligeireza, o pessoal alivia-se de bitaites sobre monumentos e estruturas geológicas, lençóis de cetim e tripas à moda do Porto (categoria que, ouso sugerir, merecia uma plataforma só sua, talvez batizada TripasAdvisor. Fica a ideia).

Navegar à vista

No caso dos restaurantes, há que reconhecer, os benefícios são evidentes. Nunca como hoje foi tão fácil evitar armadilhas e dissabores e quem quiser perceber se um tasco vale o risco tem ali toda a informação de que precisa — à segunda só cai quem quer e à terça há cabidela.

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A dificuldade está em descontar os elogios dos amigos e as indignações dos choninhas. A solução, defendo, é prestar menos atenção à média e mais à moda. Ou seja, em vez de olhar apenas para o equilíbrio aritmético das classificações, há que identificar os comentários mais frequentes e perceber o acontecimento com mais ocorrências.

Só que a Marítima de Xabregas desafia esta minha proposta para uma hermenêutica das bocas do povo. Na mesma página, juram-me que aqui mora o melhor bacalhau da cidade e garantem-me que o bicho cheirava a estragado; pelo meio não se acha quem ache a coisa mais ou menos. Tudo aqui é 5 contra 1 de bacalhau (passe a expressão). Para complicar, há ainda quem seja testemunha de um risotto de lagosta e camarão com uma vista incrível para o mar, coisa que, conhecendo a carta e a posição geográfica da casa, me diz que há por aqui advisors a escrever sob o efeito de uma trip.

Posto isto, achei por bem ir lá ver o que se passa.

Carta Marítima

São 20h20 de uma quinta-feira. A ementa à porta avisa-me que Hoje há cozido á portuguesa (sic). Descontando aquele acento agudo — que não é grave — a frase deixa-me indiferente. Estou aqui pelo bacalhau, primeiro, e depois para perceber o que se passa com os empregados e com o bife — por esta ordem, as três razões de queixa mais frequentes.

A Marítima conta 142 lugares sentados e se arredássemos as mesas dava para jogar à bola aqui dentro. Por agora, conto apenas seis clientes, e sinto que reservei mesa para dois no salão de jantar do Titanic a meio da tarde. Na televisão, o Porto joga com o Manchester.

Faz-se o pedido, recebe-se o couvert. Uma tigelinha de azeitona galega simpática, um queijo de vaca industrial sem história e um cesto de pão que cai na mesa como um mau presságio. Lá dentro, duas bolas secas a cheirar a trasantontem lembram-me que carcaça também é sinónimo de cadáver; acrescem cinco fatias de pão ressequido que, após cuidada análise forense, concluo que também faleceram há várias horas, vítimas de reaquecimento. Nem 20 minutos e o Porto já perde 2-0.

Chegar a bom Porto

Chega o bacalhau, mais ou menos como me lembrava dele, estilo lagareiro, posta generosa em travessa de inox, meia dose avia dois (27,5€). A minha companhia elogia a textura do gadídeo, o ponto da grelha, a frescura albina do peixe; eu lamento a falta de firmeza, a lasca molenga, o excesso de demolha. Mas concordo que é um bom bacalhau, que cheira a bacalhau, que sabe a bacalhau — o que deixa toda esta avaliação em águas de bacalhau.

De um lado tenho as batatas, de boa safra mas já esmorecidas, cozinhadas à mesma hora que torraram o pão; do outro um tinto servido a temperatura impecável, escolhido de uma carta ampla, a preços razoáveis e toda preservada em caves de vinhos. O barco balança. O Porto segue para intervalo empatado.

A noite segue pachorrenta, a sala compõe-se um pouco, nada que impeça o pessoal de ir espreitando a bola. Do serviço, aliás, pouco conseguirei dizer. Simpático, um pouco ronceiro, coisa normal quando se navega águas calmas (a esta hora seremos uns 20 comensais). Terei de regressar ao almoço para perceber como isto corre com casa lotada e agitação na Marítima.

Quando me faço ao bife (16€), estou a torcer pela equipa da casa e nem sei explicar porquê. Chega uma vazia tenra e alta de dois dedos, peça de bom porte com dois ovos a cavalo, cortesia para quem divide, molho a denunciar manteiga, mostarda e alho. Ninguém me perguntou o ponto da carne, mas este está ótimo, selado por fora, rosadinho por dentro. Uma vez mais, a batata é o elo mais fraco, caseira mas emborrachada. Ainda assim, boas notícias. O Porto também cresce sobre os bifes e faz 3-2.

Nem tanto ao mar

Já no tempo extra, o jogo deixa-se empatar e eu deixo-me ficar. Enquanto nos entretemos com umas farófias (boas, mas já a atirar para o molotof, as claras muito subidas), pondero que avaliação merece esta refeição desigual. Gabo a suculência do bife, lamento o bacalhau que já foi melhor ou vilipendio a vergonha do couvert?

Decido-me por um três em forma de assim-assim, considerando que esta Marítima está à tona de água, mas bem abaixo da média da posta publicada (4,1). E deixo um aviso à navegação: a indignação é um mercado emergente e convém fazer um desconto às avaliações mais inflamadas. O cliente tem sempre razão, mas nem sempre é razoável.

Hei-de voltar, mas trago pão de casa.

Rua da Manutenção 40. Tef. 21 868 2235. Todos os dias, 12h00–16h00, 19h00–23h00

Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.