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Nick Cave na Meo Arena: em paz com um deus selvagem

Envelheceu e sofreu, mas continua a sentar-se ao piano para compor, continua a erguer-se, a atirar os pulmões garganta fora em busca da catarse que pode nunca chegar. Voltou a demonstrá-lo ao vivo.

Cave deu um concerto de 2h30, esgotando todas as gotas de suor do seu corpo enxuto e sem cair na tentação de encher o alinhamento de canções conhecidas
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Cave deu um concerto de 2h30, esgotando todas as gotas de suor do seu corpo enxuto e sem cair na tentação de encher o alinhamento de canções conhecidas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Cave deu um concerto de 2h30, esgotando todas as gotas de suor do seu corpo enxuto e sem cair na tentação de encher o alinhamento de canções conhecidas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Por esses dias Nick Cave ainda era Nick Cave – e terão sido tantos os dias que se passaram desde então que já nem recordo a data, apenas que foi num Primavera Sound da década passada: os Bad Seeds já estavam em palco quando um vulto de fato surge vindo dos bastidores, dirigindo-se à frente no passo estugado de um homem decidido, que não tem tempo para reconhecer o público, para dizer olá com a mão. Nick atravessou o palco como que possuído por uma missão da qual nenhum humano seria capaz de o desviar, e quando chegou à frente pegou no microfone inclinando o tripé e a sua perna direita e, em pose à Elvis, bradou: “Get ready for love”.

Como um gás que encontra uma chama, o público explodiu de imediato numa catarse que muito deveu à expectativa que o nome Cave então carregava: por esses dias um concerto de Cave ainda era razoavelmente imprevisível, o seu comportamento oscilava entre o de um profeta e o de um louco, acicatando o público, espicaçando-o de modo a que nos momentos certos (quando as canções explodiam numa catarse malsã) o público enfeitiçado o seguisse na sua expiação bombástica.

Mas talvez esse também já não fosse o Cave de antigamente – o de 1993, no Porto, na digressão de Let Love In, por exemplo –, do mesmo modo que o Cave de hoje talvez não seja o de há uns anos. O tempo passa, as pessoas envelhecem, tragédias ocorrem. Em 2015, Arthur, um dos filhos gémeos de Cave, morreu ao cair de um penhasco; pouco tempo depois morreu-lhe outro filho (com quem tinha uma relação mais distante).

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O impacto da morte de Arthur é visível no documentário One More Time with Feeling (de 2016) e, musicalmente, em Ghosteen (de 2019, o 17,º álbum dos Bad Seeds). É possível que Cave já estivesse em mutação antes da morte de Arthur – Skeleton Tree, de 2016, estava escrito antes da tragédia, faltando apenas gravar as vozes, mas já adotava um tom sombrio, etéreo, muito distante do Cave que criou nome como profeta do mal, o Cave que ia beber ao gospel para criar canções como granadas.

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Ainda assim, quando Nick Cave entra no palco da Meo Arena, a receção é, no mínimo calorosa, apesar de a sala estar, na plateia em pé, a três quartos. Não há a explosão de há uns anos nem há o ambiente demencial de há 30, mas ainda há uma pequena euforia em ver este homem. Claro que o tempo muda tudo: há 30 anos tínhamos 15, 25 anos, Cave era um junkie e uma parte da sua audiência também – no mínimo éramos miúdos zangados, meio perdidos, que sentiam tudo com demasiado intensidade e viam naquele homem uma espécie de anti-profeta, pronto a revolver a terra para nos atirar com o lado obscuro da vida à cara. Hoje dominam os cabelos grisalhos – algumas destas pessoas hão-de acompanhar Cave desde sempre mas não consigo deixar de pensar que Cave perdeu muitos fãs pelo caminho e conquistou outros – que houve toda uma nova fornada de fãs quando o homem amansou e compôs Into my arms.

Desde então a música de Cave tornou-se aceitável, à falta de melhor expressão – se antes os pais ficavam aterrorizados com Cave e tentavam impedir os filhos de ir aos seus concertos, hoje há crianças entre o público. A sua música amansou, antes de entrar por uma espécie de ambientalismo gótico quase sufocante nos mencionados Ghosteen e Skeleton Tree. Wild God, o disco a que esta digressão dá suporte, e que constitui o cerne do concerto, tem sido descrito como um álbum em que Cave volta a respirar depois das tragédias – em certa medida é verdade: é menos sufocante do que os anteriores, regressa ao registo-canção e depende imenso dos coros gospel.

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Mas por mais que Wild God seja visto como um disco de aceitação não é propriamente um disco feliz – mesmo que em Joy, uma das peças centrais do álbum,  ele cante “We all had too much sorrow / now is the time for joy” a verdade é que não se sente muita joy em Wild God, no duplo sentido de não ser propriamente um disco gaiteiro e efusivo e não ser dos mais felizes musicalmente – várias das suas canções, como a própria Joy, ou Conversion (até aos 2m30, quando os coros entram, tornando-se depois torna-se uma bela canção gospel) ou Cinammon horses deixam-se arrastar nos seus lamentos. O que não significa que não haja canções inspiradas ou belas, como Song of the lake ou a homónima ao disco.

O concerto abre com Frogs, também do novo disco e a boa notícia é que algumas destas canções crescem ao vivo – ganham uma nova intensidade e a presença do coro funciona como uma enzima para crescendos de intensidade que não são tão prevalentes em disco. Isto aplica-se a Frogs mas também a Wild god, ou a Final rescue attempt. De alguma forma, com o público pela frente, são arrancadas à sua inércia e encorpam.

Tirando os momentos em que se senta ao piano, Cave permanece um mestre de condução da audiência, percorrendo o palco, caindo para cima do público, acicatando-o. Isto é uma novidade, face a tempos recentes, quando não havia concertos dos Bad Seeds e Cave optou por uma digressão a solo, ao piano, em que o público podia pedir canções e em que Cave falava sobre as canções e falava com o público, num registo de intimidade tão próxima que podia ser assustadora (ou redentora).

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Nesse período pós-morte do filho, em que Cave evitou concertos de grandes dimensões, houve livros, vários, o mais recente dos quais Faith, Hope and Carnage, um título que parece resumir bem a última década da vida de Cave. E houve muita: em 2018 Cave criou os Red Hand Files, um site em que responde às perguntas dos seus fãs – e o homem que ali surgia era alguém que repetia muitas as vezes a palavra “aceitação”, que repetia muitas vezes a palavra “perdão”, e se alguns dos textos são (literária e emocionalmente) belíssimos, fica-se com a impressão de que Cave está a escrever para expiar qualquer coisa, como se a escrita fosse um unguento para as suas maleitas.

Tudo isto faz com que seja quase um milagre que Cave consiga dar um concerto de 2h30, esgotando todas as gotas de suor do seu corpo enxuto e sem cair na tentação de encher o alinhamento de canções conhecidas. Aqui e ali regressou ao passado – com O Children ou Jubilee St, por exemplo – mas não deixa de ser um ato de coragem tocar quase todo o disco novo, que uma parte das pessoas ainda nem terá ouvido com a devida atenção; tenham ou não ouvido, as novas canções foram sempre bem recebidas.

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Regressar ao passado comporta um problema, contudo: permite compará-lo com o presente. E quando os Bad Seeds se atiram a From her to eternity”, Tupelo, Red right hand, Mercy seat e, principalmente, Papa won’t leave you Henry e Weeping song (estas duas já no encore), torna-se claro que o material pré-Boatman’s Call tem uma carga demencial, uma vertigem e uma dose de perigo que gradualmente se foi tornando ausente da música dos Bad Seeds – que nunca recuperaram completamente das saídas de Mick Harvey e de Blixa Bargeld, cuja guitarra suja e neurótica desempenhava um papel essencial.

Nick Cave envelheceu e sofreu – sofreu o que nenhum pai deve sofrer, o que nenhum humano deve sofrer. Apesar disso, ainda se senta ao piano para compor, e ainda se ergue nas suas perninhas magras e atira os pulmões garganta fora à procura de uma catarse que pode nunca chegar. E, a avaliar pela receção do público, ainda consegue encantar uns milhares de pessoas, que o ouvem com a atenção de um crente numa missa. Não é coisa pouca.

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