Na indústria do entretenimento, tal como na vida real, quando alguém quer um brinquedo, todos querem ter o mesmo. É um assunto que tem sido falado: o crescimento do streaming, em comunhão com a pandemia, tornou aceitável uma certa ideia de fluência contínua entre cinema e televisão. Os spin-offs não são uma tendência recente, existem há décadas, muitas vezes circulavam dentro do mesmo meio sem se tornarem um fenómeno — usando um termo caro dos videojogos — cross-platform. Só que antes os spin-offs eram só spin-offs, muitas vezes apenas um parêntesis do qual se estudava a possibilidade de construir uma frase completa. Poucos conseguiam. Agora, um spin-off quase que parece um termo pejorativo, tal a vontade de construir um universo e não um mundo paralelo.
A culpa é da Marvel? Ou de Star Wars? Da Disney como monstro do entretenimento? Não, em última instância a culpa é de quem consome, porque somos nós que vemos, compramos, aceitamos e pagamos. Ainda que a Marvel — e depois a Disney como um todo — tenham apurado a fórmula de tal maneira que até franchises como Velocidade Furiosa são agora universos, em que cada novo filme se apresenta sempre como algo mais. Não se trata “apenas” de marketing. Os filmes deixaram mesmo de crescer para a frente — deixaram até, em alguns casos, de arriscar — e passaram a crescer só para dentro. Assim também se explica a fadiga face aos filmes da Marvel: não é um problema de super-heróis, é um problema de replicação da replicação.
[o trailer de “Dune: Prophecy”:]
E assim chegamos a Dune: Prophecy. Tal como The Penguin (também na Max), tal como todas as séries do Universo Cinematográfico da Marvel que surgiram de 2021 (e, a uma escala menor, as que foram produzidas antes pela Netflix), não estamos realmente perante um spin-off. Estamos perante mais uma prova de que esta é uma indústria que muitas vezes arrisca pouco e que prefere criar em volta de marcas estabelecidas em vez de gerar produtos que sejam fruto de criatividade absoluta. Porque o território que se relaciona automaticamente com o público é mais seguro, mais confortável, mais previsível. A desvantagem é que o risco é uma ilusão, rouba tempo e energia para o resto — e o resto é muito.
Dune: Prophecy quer tentar algo semelhante com a reabilitação do imaginário de Frank Herbert que Denis Villeneuve adaptou recentemente para cinema, num filme dividido em dois capítulos — e, claro, o realizador já está a trabalhar num terceiro. O universo cresce no cinema e expande-se na televisão e no streaming, para ver até onde é possível crescer, alimentando-se de si próprio. Só que Prophecy está num lugar estranho e parece reconhecer isso. Por esta altura já se percebeu que é impossível encontrar a próxima Guerra dos Tronos dentro do universo da fantasia. E se ela estiver na ficção científica? Porque tem sido feito caminho para isso, com os sucessos dos últimos anos de séries como Silo, 3 Body Problem, Fallout ou até Severance (a lista é muito maior). E, sim, ficção científica pode ser muita coisa, mas também a fantasia.
O que nos leva a pensar nisto é a forma como os primeiros episódios de Dune: Prophecy (será uma temporada curta, feita apenas de seis partes) se assemelham à primeira temporada de Guerra dos Tronos, a colocar as coisas muito a medo (o que parece estranho, vindo de onde vem) e a experimentar para ver reações dos espectadores, entre fãs, curiosos e visitantes acidentais. Tudo isto tem os seus problemas, tal como a primeira temporada de Guerra dos Tronos tinha: choca por chocar, deixa-nos demasiado à deriva sem se saber exatamente qual é o objetivo.
Só que há qualquer coisa de génese, há qualquer coisa aqui que nos diz que algo de muito bom pode vir a acontecer. Em parte, porque já sabemos para onde vamos nesta história. Prophecy acontece mais de dez mil anos antes da história que David Lynch e Villeneuve adaptaram para o cinema e começa por ser sobre um assunto muito específico: a fundação das Bene Gesserit, as mulheres que em Dune controlam tudo e estão algures entre as bruxas e as marionetistas. O que se passa aqui? Valya (Emily Watson) e Tula (Olivia Williams) Harkonnen fazem parte da Irmandade que irá dar origem às Bene Gesserit. Quando as conhecemos, ainda não desenvolveram bem as técnicas de manipulação através da voz e uma série de gadgets de que dispõem, mas conhece-se a génese, sobretudo a génese da procura pelo líder perfeito, o Messias — tema que atravessa a história de Frank Herbert e as adaptações ao cinema, desde David Lynch.
Valya, mais ambiciosa desde criança, acredita no potencial de um trabalho já feito por outra integrante da Irmandade sobre o cruzamento de genética entre diferentes famílias no universo de Dune. Essa base de dados que criou é uma espécie de desejo para criar um sistema para controlar quem está no poder dentro daquele universo. A vontade de assumir esse controlo e as dinâmicas para concretizar tal vontade são a base da primeira temporada e, tal como no arranque de Guerra dos Tronos, há muito sexo, mortes, traições e um fio narrativo que parece mais interessante do que aquilo que estamos a ver. E é isso que nos agarra, é isso que nos estimula a voltar e a pensar que pode haver aqui algo mais do que uma história de origens para capitalizar uma marca — assumindo que pode acontecer apenas esta última parte, a da capitalização, é um risco que corremos quando decidimos acompanhar a série.
Ao contrário de The Penguin, Prophecy não é uma história sem o seu núcleo (que naquele caso é Batman, que nunca aparece na série), mas uma que usa as origens de uma ideia (a criação, tanto do mito como da linhagem de um Messias) para trabalhar as dinâmicas de poder que existem em Dune, mas que foram só abordadas superficialmente nos filmes de Villeneuve. Avaliações à parte (deixemos isso para o final da temporada), ficamos cada vez mais seguros de que, muito provavelmente, a ficção científica vai dominar estas conversas durante a próxima década.