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Um chapéu levantado para Edgar Degas

Degas guardava um respeito primordial pela configuração das coisas, ao contrário do excesso de auto-afirmação que caracteriza o nosso tempo. Ou como a vontade de mostrar ultrapassou a vontade de ver.

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"A Aula de Dança", óleo sobre tela, 1873. Musée d'Orsay, Paris

Mondadori via Getty Images

"A Aula de Dança", óleo sobre tela, 1873. Musée d'Orsay, Paris

Mondadori via Getty Images

Bailarinas em mil posições diferentes. Mulheres que se penteiam de costas para nós, uma com o braço assim, outra com o braço assado. Homens ao perto, homens ao longe, metidos em casacos de cores vivas e dobrados sobre cavalos de corrida. Cada quadro de Degas parece ser uma homenagem ao corpo humano, a partir de um novo ângulo e sob uma nova luz.

Halévy ficou por isso surpreendido quando soube que o pintor trabalhava numa série de paisagens sem figuras. Intrigado pela novidade, comentou com o amigo: “Alain escreveu que as paisagens são estados de alma. Parece-te uma boa tirada?” Talvez esperasse uma teoria complexa sobre arte e psicologia. Ou talvez contasse com uma afirmação carregadinha de orgulho, vinda de um artista desejoso de imprimir a sua marca sobre a estúpida mudez das coisas. Degas respondeu: “Estados de olhos. Aqui não usamos uma linguagem tão pretensiosa.”

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"Danseuses" (1871-4): Cada quadro de Degas parece ser uma homenagem ao corpo humano, a partir de um novo ângulo e sob uma nova luz

Corbis via Getty Images

A historieta sinaliza bem a importância que a observação tinha para o artista que nos ofereceu prodígios como Femme aux chrysanthèmes e Danseuses. Os relatos biográficos apresentam-nos um homem fascinado pela matéria visual da vida, um devoto da observação atenta das formas e das cores. Antes de atacar a tela com o seu modo de expressão próprio, Degas detinha-se diante dos objectos concretos que queria pintar, tentando absorver, nesse contacto demorado, os pormenores do encanto misterioso que lhe chegava aos olhos – com um certo pudor em relação à possibilidade de estragar tudo com afectadas idiossincrasias pessoais.

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Esta atitude não se confunde com uma pretensão ingénua de objectividade. Degas irritava-se com os dogmas dos seus amigos impressionistas, para quem era obrigatório pintar “a partir da natureza” e respeitar os ditames das impressões. Contra purismos desse tipo, defendeu os furores da imaginação e do artifício. Se eu tivesse de resumir a grandeza da pintura de Degas, diria que ela reside no cruzamento entre a admiração meticulosa do real e um entendimento muito livre da autonomia da pintura, abrilhantado pela propensão onírica da sua personalidade. Uma mistura que atinge o esplendor naqueles pastéis de bailarinas em que a fixação de um instante banal – a rapariga que espera o início do ensaio, a rapariga curvada para se calçar – parece puxar-nos para dentro de um sonho mais sublime do que todos os sonhos que já tivemos.

Degas (1834-1917) detinha-se diante dos objectos concretos que queria pintar, tentando absorver, nesse contacto demorado, os pormenores do encanto misterioso que lhe chegava aos olhos

Mas o ponto relevante aqui é outro: realista, impressionista ou fantasista, Degas guardava uma espécie de respeito primordial pela configuração das coisas que tinha diante de si. Uma reverência pelo espectáculo material do mundo, que servia como ponto de partida para o gesto criador. É por causa dessa humildade do olhar que, embora Degas tenha sido um experimentador nato, sempre disposto a arriscar pontos de vista e técnicas diferentes, não costumamos encontrar nas suas obras a etiqueta da originalidade esquecida do lado de fora.

Tenho pensado em Degas ao dar-me conta do excesso de auto-afirmação que caracteriza o nosso tempo. A vontade de mostrar ultrapassou a vontade de ver – e parece estar já a grande distância. Não é preciso repetir, a este respeito, a lengalenga contra as redes sociais. Uma manhã no trânsito serve também para perceber como as cidades hoje se assemelham a templos enlouquecidos, onde não faltam profetas a anunciar as suas verdades inspiradas. Ligamos o rádio e, entre locutores, cantores e comentadores variados, um baixo contínuo de opiniões confiantes sobre os mistérios da existência vai-nos entrando pelos ouvidos adentro. Olhamos então lá para fora e, através da janela, sucessivos outdoors têm ordens para nos dar – como numa feira onde os pregões não sugerissem apenas o que comprar, mas como viver. Não quero simplificar demasiado. Também não quero parecer apocalíptico. Mas há algo de estranho numa sociedade tão rica em modelos existenciais, que ao mesmo tempo não faz distinções de qualidade e desconhece a exigência da precisão.

"Femme aux chrysanthèmes", 1865: ou a importância que a observação tinha para o artista

François Fosca conta que os últimos anos de Degas foram tristes porque a progressiva perda de visão o afastou das suas actividades predilectas: olhar com cuidado para as formas do mundo e pintar. Passeava sem propósito, à deriva nas avenidas de Paris, na iminência de um acidente qualquer. Pelo contrário, a nossa época aparenta estar entusiasmadíssima pela possibilidade de falar sem ver, de publicar antes de conhecer, numa ânsia de auto-afirmação que é capaz de ter alguma origem traumática.

O que me impressiona em Degas é o facto de ter assumido esta atitude de serena resistência sem fugir da cidade, sem se refugiar em ambientes protegidos, mergulhado da cabeça aos pés no bulício da boémia parisiense. Olhos abertos no coração da cacofonia. Olhos inquisitivos apesar do fogo-fátuo. Como faria um admirador no século XIX, tiro-lhe o chapéu, Monsieur Degas.

O auto escreve segundo o antigo acordo ortográfico

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