Quando, a 26 de julho deste ano, Snoop Dogg apareceu nas televisões de todo o mundo a carregar a tocha olímpica, uma boa parte desse mesmo mundo riu-se e admirou tanto o sentido de humor dos franceses como do rapper. Snoop é conhecido por fumar erva com a obsessão de um CEO a olhar para o valor das ações da sua empresa – e ali estava ele a fazer o que, no fundo, melhor sabe fazer: andar de chama acesa.

Era, também, um sinal que Snoop dava à humanidade: agora, ele não era mais o artista polémico da sua estreia a solo, com Doggystyle, há 31 anos; agora ele é uma mega-estrela, conhecida de todos e suficientemente adorado para toda a gente achar curioso o seu amor à erva, quando durante décadas esse mesmo mundo olhava para o seu vício como mais uma prova de que Snoop era perigoso.

Claro que Snoop alimentou essa imagem, logo a começar com Doggystyle, que se tornou polémico à conta do seu conteúdo explícito sobre violência, misoginia, vida de gangs e uso de drogas. O próprio título do disco era um double entendre de cariz sexual e canções como Gin and Juice e Ain’t No Fun (If the Homies Can’t Have None) exemplificavam uma visão hedonista e sem arrependimentos da vida que não estava muito de acordo com a moral então vigente na música.

[o álbum “Missionary” está disponível no Spotify:]

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O seu primeiro encontro com a fama deu-se no ano anterior, quando apareceu no single de estreia de Dr. Dre, Deep Cover, e logo a seguir no álbum de estreia do mesmo Dre, o clássico The Chronic, que acabou por vender três milhões de exemplares e tornar-se tripla-platina. A participação de Snoop em Bitches ain’t shit, a magnífica (e misógina) faixa que encerrava o disco tornou-o uma estrela do dia para a noite.

A fama de tipo perigoso adensou-se nesse mesmo ano, quando Calvin Cordozar Broadus Jr. (o verdadeiro nome de Snoop) foi acusado de assassinato em primeiro grau – alguém disparara contra um membro de um gang rival, mas chegou-se à conclusão de que o gatilho fora premido pelo guarda-costas de Snoop, que acabaria por ser ilibado em 1996.

Isto foi o suficiente para Snoop abandonar a vida dos gangs – de outra forma acabaria ou morto ou na prisão, segundo explicou mais tarde. Mas o caso aumentou o seu estatuto de estrela – Snoop deu por si a participar em 2 of Amerikaz Most Wanted, uma das últimas canções que Tupac gravou antes de morrer, a 13 de setembro de 1996. Poucos meses depois saiu Tha Doggfather, o segundo álbum de Snoop – apesar do flow distintivo de Snoop (muito mais suave que a maior parte dos seus colegas), o disco não teve o mesmo sucesso do anterior; pouco depois, Suge Knight, o dono da editora Death Row, que lançara ambos os discos de Snoop, foi preso e Snoop abandonou a editora.

A vida não lhe correu mal – lançou muitos discos, teve o ocasional êxito, e por vezes soube associar-se às pessoas certas e criar sons que apontavam o futuro da música, como quando gravou Drop it like it’s hot com Pharrel. Mas se quisermos ser justos, em termos musicais nunca mais criou um disco com o mesmo impacto que Doggystyle.

É esse estatuto que Doggystyle tem, de disco-bandeira, de monumento cultural que mudou a paisagem do hip-hop e alterou as linhas do que se podia ou não dizer num disco, que faz de Missionary um disco importante, mesmo antes de ouvirmos uma nota do mesmo – porque Missionary volta a unir Snoop e Dre, trinta anos depois.

Snoop tem-se desdobrado em entrevistas afirmando que Dre o levou a limites que não sabia que tinha, que Dre é um perfecionista, enfim, o tipo de discurso que ouvimos de um jogador de futebol a falar do seu treinador, ou de um ator a falar do realizador do último filme em que entrou – mas sejamos honestos, Missionary nunca poderá estar à altura de Doggystyle; Dre e Snoop já não são o futuro do hip-hop, são super-estrelas e empreendedores que provavelmente passam mais tempo a tratar dos negócios do que enfiados num estúdio a compor.

Não há aqui ponta de exagero – Snoop tornou-se uma marca, tornou-se aceitável, reconhecido e apreciado pelo americano médio, uma personalidade com quem a nossa avó pode empatizar porque a imagem que passa é a de um tipo brincalhão, que cometeu uns erros no passado mas que, no fundo, só quer estar sossegado a fumar a sua ervinha e de preferência que ninguém o chateie.

Se um dia Doggystyle foi discutido até à náusea por causa da sua linguagem e inclusive houve movimentos no sentido de censurar o disco, fast forward uns anos e não só Snoop apareceu em meia dúzia de filmes de Hollywood como se tornou uma presença constante na televisão americana: Snoop Dogg’s Father Hood era uma série de reality TV que mostrava a sua vida familiar; Martha & Snoop’s Potluck Dinner Party foi um programa de culinária a meias com Martha Stewart e convidados célebres; e já este Snoop tornou-se jurado de The Voice, o que basicamente confere estatuto imediato de super-estrela.

O amor pela erva levou-o a criar uma empresa chamada Casa Verde Capital, que opera na indústria da canábis e vale (segundo a imprensa) cerca de 300 milhões de dólares; criou a sua própria marca de vinho (Snoop Cali Red) e uma marca de acessórios e roupa (Snoop Doggie Doggs). Isto não é propriamente o retrato de uma estrela pop empenhada em criar êxitos – é o portfólio de investimentos de um operador sagaz do mercado.

O que não significa que Missionary seja um disco fraco – antes pelo contrário, Dre não perdeu talento, Snoop continua a rapar com muita pinta e os convidados (50 Cent, Eminem, Method Man) são luxuosos. O beat de Outta da blue é uma maravilha (e cita M.I.A.); a malha de piano de Gorgeous é perfeita; Skyscrapers é uma delícia, com os metais samplados a trazerem opulência à faixa; em Gunz n Smoke, 50 cent e Eminem fazem o que os convidados bem educados devem fazer (abrilhantam a canção, embora não a tornem brilhante), “Thank you” rock com muita pinta.

Nada disto, no entanto, é particularmente inovador; Missionary é um disco porreiro, mas não é por aqui que a cultura pop vai dar uma guinada. É normal: Dre tem 59 anos, e depois de anos a ser notícia por relato de abusos, teve um aneurisma e três AVCs em 2021, durante um divórcio particularmente venenoso. Estes homens já não são jovens – já nem sequer são de meia idade, estão quase a chegar à terceira. Alguém mais novo não faria Another part of me, que sampla Message in a bottle, dos Police, de forma demasiado óbvia. Em momentos desses sente-se uma falta de conexão com a juventude.

Mais do que um disco, Missionary parece ativação de marca: serve para Dre voltar a ser falado pelos beats e não por problemas em tribunal ou acusações de abuso, serve para Snoop voltar a ter visibilidade e serve para recordar que há trinta anos, com muito pouco, estes dois fizeram um dos discos mais irreverentes e inovadores da história do hip-hop.

No fundo Missionary serve para nos recordar que Snoop e Dre são dois dos gigantes do hip-hop americano, responsáveis por algumas das melhores malhas das últimas décadas, figuras incontornáveis. Não por causa de Missionary, que deve ser encarado como dois amigos a divertirem-se juntos e não mais do que isso.