“És linda!” -­ gritaram entre o público, ainda mal tinham terminado os acordes de “Moura Encantada”, tema de abertura do espetáculo que marcou o arranque da digressão de Ana Moura por terras lusitanas, justamente na cidade de Guimarães este sábado à noite. A sala do Pavilhão Multiusos foi aquecendo ao ritmo a que o público se instalava perante o palco onde a representação de um casulo contornava o dispositivo cénico. À medida que abria deixava ver mais do cenário onde se arrumaram primeiro os músicos, seis ao todo. Só depois surgiu a fadista de figura esbelta e vestido negro para dar início à narrativa de metamorfose que é símbolo de Moura. O disco homónimo é o sexto álbum de originais da “fadista divina” como lhe chamou o circunspecto Le Figaro. O jornal francês atribuiu o título à cantora portuguesa e ao artigo que lhe dedicou, dias antes da notável exibição no emblemático Olympia de Paris, há menos de um mês.

Continuavam a chegar pessoas no final da segunda canção quando Ana Moura saudou o auditório, dizendo­-se grata e feliz por estar na cidade­-berço a começar a digressão nacional. Depois de “O meu amor foi para o Brasil” a cantora explicou que o fado no século XIX era dançado. Estava feita a introdução de mais um dos novos temas, escrito por Miguel Araújo, o “Fado Dançado”. Os aplausos sucediam­-se no compasso quando Ana Moura ensaiou o refrão de “Os Búzios” com o público que havia de fechar em coro, num sonoro “vou mudar­-te a sorte!”. Valeu-lhes mesmo o elogio da estrela: “Ah! Fadistas!”.

Veio depois o “Fado Alado”, outro dos temas fortes do último disco. Estrutura melódica equilibrada numa canção que soa como uma balada pop onde pontua a sonoridade da guitarra portuguesa, em par com a linha de ritmo criada pelos teclados e pela bateria. Seguiu-se uma sequência de três fados tradicionais. “Ninharia” foi o primeiro, cuja intensidade na execução levou a fadista a querer alterar o fado seguinte no alinhamento. “Ganhei!” disse Ana depois de trocar impressões com o guitarrista Ângelo Freire. A guitarra portuguesa começou a tocar “Hoje tudo me entristece” e, com uma franqueza desconcertante, a fadista admitiu sem rodeios a emoção que a levou a falhar a entrada na canção. Momentos de pura humildade, ali partilhados com a graça de um sorriso tímido.

Seguiu­-se “Porque teimas nesta dor” a fechar este trecho de composição tradicional em que apenas três músicos ficaram em palco. Os guitarristas executaram então uma peça instrumental com meia dúzia de minutos, os suficientes para a cantora fazer uma pausa e trocar de vestido. Com ela regressou a formação completa para mais um dos temas novos de “Moura”. O poema escrito por Pedro Abrunhosa em “Tens os Olhos de Deus” ganhava corpo na voz de veludo que ia sendo acompanhada por imagens do videoclip, projetadas em fundo. Aliás, a sequência de projeções que ajudou a compor a narrativa ao longo do espetáculo foi selecionada pela própria fadista. “Desamparo” manteve a guitarra portuguesa como protagonista, a que se seguiu na mesma linha o tema­-título “Moura”. Em fundo a imagem da capa do disco e antes que acabasse a canção, um novo momento de improvisação. A estrela é Ana Moura mas ela tem o mérito de deixar brilhar os músicos que a acompanham.

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O público respondeu com palmas ao apelo da fadista no compasso de “Agora é que é”. Ouviu-­se depois “Valentim”, que Ana Moura cantou com Bonga no documentário “Amália: As Vozes do Fado” realizado por Rúben Alves. A entrada do “Bailinho à Portuguesa” permitiu mais um momento raro, especialmente tratando­-se de um espetáculo de Fado:

Um longo solo de bateria, com a maior parte do público a aplaudir de forma espontânea, comprovam que este Fado é mesmo novo e veio para ficar. A atuação havia de fechar com “Dia de Folga”, o single de apresentação do novo álbum e até agora o mais conhecido tema de Moura. Ensaiava-­se a despedida com o elenco dos músicos: Pedro Soares (Viola), Mário Barreiros (Guitarra), Ângelo Freire (Guitarra Portuguesa), Mário Costa (Bateria), André Moreira (Viola­Baixo) e João Gomes (Teclado).

Feitos os agradecimentos e o corte de luz, o público continuou a ovação em pé pedindo mais. E vieram mais duas cantigas para encerrar as duas horas de espetáculo. Primeiro a “Loucura” e depois o convite da fadista para “dançarmos todos juntos” o “Desfado”. A última canção deu para quase tudo. Incluiu um cheirinho a África numa parte do arranjo e alguns acordes do clássico cubano “Guantanamera” já perto do final. Enquanto uns cantavam, outros tiravam selfies, aproveitando a sala já iluminada. Ritual seguido também no palco onde os artistas fizeram um autorretrato tomando a plateia, toda em pé, como cenário.

A generosidade parece não ter limites, tal a forma como Ana Moura se entregou a uma extensa (muito extensa!) fila de pessoas que esperaram por autógrafos clássicos e, na versão moderna, selfies com a artista. Mais de 2000 pessoas estiveram no Pavilhão Multiusos de Guimarães, entre elas uma família que vestia t­-shirts estampadas com a imagem da fadista, um casal holandês que vai onde for possível para a escutar, galegos, gente de todo o Minho mas também transmontanos. Houve até quem trouxesse presentes como a peça de artesanato gravada com os títulos dos discos. Dos apreciadores recentes aos fãs de sempre, com história, uns mais velhos, outros mais novos e até crianças, a todos a fadista acolheu com simpatia. E eram tantos que duas horas depois de terminar a atuação (cerca da uma e meia da madrugada deste domingo) nós viemos embora e ainda havia gente à espera para levar um último pedaço de “Moura” na alma.