As nove histórias são contadas na primeira pessoa, pelo eu múltiplo que se descobre ao longo da ação. Quase não há âncoras geográficas, nem nomes. “Já fiz tantas canções com nomes”, desabafa Sérgio Godinho a sorrir, em entrevista ao Observador. Em Vida Dupla, o músico e escritor quis tirar a narrativa de referenciais, e é isso que o leitor percebe logo a partir do primeiro conto, “O Lençol”. Uma mulher sozinha numa casa, uma mulher sem nome, uma casa sem morada. A história reduzida a ações, a pensamentos, a sentimentos, a ruturas. Vida Dupla chegou às livrarias na sexta-feira,com a chancela da Quetzal, mas há mais novidades no final do mês.

Em rigor, Vida Dupla é uma falsa estreia, porque Sérgio Godinho já fez ficção juvenil – O pequeno livro dos medos. Mas há poucas coisas que Sérgio Godinho ainda não tenha feito. No currículo conta com guiões de cinema (“Kilas, o Mau da Fita”), peças de teatro (“Eu Tu Ele Nós Vós Eles”), poesia (O Sangue por um Fio), crónicas (Caríssimas Quarenta Canções).

Vida Dupla é a estreia na ficção, chamemos-lhe, para adultos”, explica. O ponto de partida para o livro foi um primeiro conto encomendado para a Biblioteca Digital do Diário de Notícias, publicado em 2013. Sem tema. Assim nasceu “Notas soltas da corda e do carrasco”, com uma versão também publicada agora em Vida Dupla, de onde se retira este excerto:

“Escolhi o caminho da lei, porque tinha de se confiar no presente caminho da lei, certa ou errada no futuro. Foi-me confiada a parte final da decisão, o último golpe. (…) “A ética está na lei”. Assim se ensina no Livro Primeiro do Direito. Fosse tudo assim tão simples, e não haveria nem polícia, nem ética, e muito menos as duas ao mesmo tempo. Mas, certo ou errado, era pegar ou largar. Consegui o emprego.”

“Foi o ponto de partida e foi um bocado misterioso. Eu sempre senti que gosto de escrever, mas as canções são uma matéria diferente, com rimas e métricas a respeitar, mas de certo modo abriu-se um caminho ali, quase naturalmente, que foi até para mim um bocado misterioso, senti que tinha mesmo de continuar, agora era a altura de explorar outros territórios e de me atirar a situações e a personagens”. Sérgio Godinho atirou-se a realidades distantes da sua. Imaginou outros universos, muitas vezes contrários ao seu pensamento. “É sempre aquela matéria ficcional que me dá muito gozo porque eu já escrevi argumentos para filmes, essa capacidade de criar personagens e fazê-las viver, que também existe nas canções, e elas autonomizarem-se, terem vida própria”.

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Daí se ter tornado mais fácil fazer nove histórias dentro de um livro? “Sim. Também porque agrada-me muito esta concisão que o conto proporciona, de dizer muita coisa, mas também de sugerir outras que não chegam a ser desenvolvidas, que deixam pistas abertas para as pessoas imaginarem como é que seria aquela pessoa noutra situação. Gosto também muito que a certa altura esse fio que se vai tecendo se encerre”.

Gostando muito da trama, é possível que o leitor gostasse de continuar a ler. Mas a passagem para outro assunto é inevitável. Como se fossem canções. A vida é feita de ruturas. “Todos nós somos várias coisas, dependendo dos dias, dependendo da disposição, da lucidez. São as nossas vidas duplas, no sentido em que nós temos contradições, temos forças que lutam dentro de nós, temos acontecimentos que muitas vezes proporcionam uma espécie de vinda à tona de uma consciência. Muitos destes contos têm essa vinda à tona”, conta. No conto “Notas soltas da corda e do carrasco” isso é patente, quando o carrasco compreende o condenado.

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© Hugo Amaral

Das nove histórias, Sérgio Godinho não gosta de individualizar. “Eu gosto destes contos todos de maneira diferente”, responde o autor. Mas é inevitável não criar empatia, ou antipatia, em relação aos personagens. Do pré-catastrofista, confessa, não seria amigo. “Não acho que seja um tipo de quem eu gostasse muito de ser amigo [risos]. Tem uma neurose própria”. Pelo contrário, a rapariga de “O circo de três pistas” é uma personagem positiva, “que quebra o círculo de onde ela não pode sair. Aliás, o cavalo é que comanda isso, o cavalo que é o seu grande amor”. Também a mulher da fábrica, personagem central do conto “Queria só falar da minha história de amor”, é especial. “Por ser cheia de contradições, por viver uma história de amor com outra mulher, é muito genuína e tudo acontece de forma natural. A gente fala das personagens como se elas já nos fossem exteriores. E de certo modo são, elas autonomizam-se e ajudam a conduzir a própria ficção que se escreve – o que é que esta pessoa faria nesta situação, o que é que a fez de repente acordar?”.

Sérgio Godinho ainda está a desfrutar da sensação da estreia, mas gostou tanto que “inevitavelmente, de uma maneira ou de outra”, vai voltar à ficção. Mas sem datas, sem obrigações. “Não tenho compromisso nenhum, nem comigo próprio. Tenho mais uma vontade, e uma certa necessidade, de criar. Seja em que ramo for. Por exemplo nas canções tenho composto pouco. Mas isto deu-me muito gozo porque descobri uma voz, uma maneira de contar”, explica.

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© Hugo Amaral

Sérgio Godinho pode andar a compor pouco mas, no dia 27 de outubro, há mais material seu a chegar às lojas. “Vai sair o disco ao vivo, chamado Liberdade”, um apanhado do que foram os espetáculos com o mesmo nome que o músico e compositor apresentou em 2014 para celebrar os 40 anos do 25 de Abril. Uma revisitação das suas canções, uma delas chamada precisamente “Liberdade”. com arranjos totalmente novos, embora o núcleo da canção esteja intacto. “Acho que é quase uma necessidade minha e dos meus músicos de não estar sempre com a mesma cor musical, de dar às pessoas e a nós mesmos algo novo, ainda que reconhecível. Embora haja ali canções que são novas”.

Uma delas é um original escrito no início deste ano para a peça “Tropa-Fandanga”, do Teatro de Praga. Mas o destaque vai para um tema de Zeca Afonso, ate à data nunca fixado em disco, “Na Rua António Maria”. “É praticamente um inédito porque ele nunca a gravou. Eu conhecia-a porque ouvi-o cantar no estrangeiro”. A Rua António Maria Cardoso era a morada da PIDE. “‘Na Rua António Maria’ fala da altura em que a PIDE mudou o nome para DGS. Por isso ele sabia que se gravasse essa canção o disco inteiro seria proibido”. Sérgio Godinho trabalhou a parte instrumental de memória. “Agarra-se muito”. A letra foi mais fácil, porque estava publicada.

O disco vai ter 15 músicas e é a desculpa ideal para Sérgio Godinho voltar à cidade onde nasceu e viveu até aos 20 anos, o Porto. Nos dias 1 e 2 de novembro leva “Liberdade” ao Rivoli, sala que não visita há 15 anos. No dia 22 de novembro é a vez de o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, ver ao vivo Sérgio Godinho cantar canções como  “Maré Alta”, “Que Força é Essa”, “A Noite Passada” ou “Lisboa Que Amanhece”.

Lisboa também recebe o lançamento oficial de Vida Dupla, na Livraria Ler Devagar, dia 16 de outubro, às 18h30. O livro vai ser apresentado por Anabela Mota Ribeiro.