Plano B, plano de recurso, garantias adicionais… Chame-se o que se quiser, a verdade é que deverão ser essas medidas a salvação de um défice que permite que Portugal não volte a violar os compromissos com Bruxelas, ainda que ultrapasse a meta para a qual o orçamento deste ano estava desenhado para alcançar. Graças aos quais o Governo pode garantir à União Europeia que não vai desbloquear 445 milhões de euros de fundos dos orçamentos dos serviços do Estado, pouco mais que a cativação inédita introduzida no Orçamento deste ano.
Recorde-se que no OE deste ano, 2016, o Governo incluiu, como o faz todos os anos, um montante de cativações para controlar as contas dos serviços do Estado. Mas para garantir que o défice era cumprido, Mário Centeno introduziu uma cativação adicional na lei. E é essa medida que agora poderá salvar a meta assumida com Bruxelas.
As cativações são na prática uma ordem que define que uma parte dos orçamentos normais dos serviços para um determinado ano, e com um determinado fim – por exemplo consultadorias, estudos ou pareceres – só pode vir a ser usado depois de o restante montante já ter sido atingido e desde que o respetivo ministro peça, e receba, uma autorização escrita.
Uma das novidades de 2016 foi o próprio Governo ter admitido, no Programa de Estabilidade (PE) que enviou em abril à Comissão Europeia, que tinha no Orçamento um valor adicional de 0,19% do PIB em cativações para garantir o cumprimento do défice:
“No caso de ser identificado um desvio significativo, após avaliação regular, o Governo dispõe de cativações adicionais, pela primeira vez na Lei do Orçamento do Estado, para o controle de despesa na aquisição de bens e serviços no montante de 0,19 pontos percentuais do PIB”, lia-se no PE.
No total, o Governo pediu, e o Parlamento acedeu, o congelamento de quase 1.700 milhões de euros (0,9% do PIB) dos orçamentos dos serviços do Estado, que só poderiam ser usados após autorização do ministro. Destes, 445 milhões de euros, garantiu o Governo neste Orçamento, não serão descongelados, de forma a compensar o impacto do desvio na receita fiscal – ficou muito aquém das previsões – nas contas públicas, e assim garantir que cumpre os compromissos com Bruxelas.
“O agravamento do défice face às previsões anteriores deve-se essencialmente à desaceleração da atividade económica. A evolução menos dinâmica do consumo privado e dos preços no consumidor traduz-se numa menor coleta de receita fiscal. Contudo, o Governo encontra-se inteiramente comprometido com os compromissos assumidos com a Comissão Europeia, pelo que, por forma a compensar os desvios negativos identificados na receita fiscal, não serão utilizados 445 milhões de euros de cativos inscritos no Orçamento do Estado para 2016”, diz o Governo na proposta de Orçamento para este ano.
Sem poupar estes 445 milhões de euros, usando os números do Governo inscritos neste Orçamento do Estado para 2017, o défice subiria para quase 2,7% do PIB, superior em meio ponto percentual à meta usada para desenhar o orçamento deste ano, e duas décimas acima da meta (já flexibilizada em agosto) imposta pela União Europeia.
A última previsão da Comissão Europeia para o défice orçamental do Estado português é que atinja, precisamente, 2,7% do PIB, uma previsão que data de maio.
A diferença face ao previsto será ainda maior caso o Governo esteja a contar com os 100 milhões que prevê arrecadar com o programa PERES, o perdão fiscal que ninguém do Executivo assume que é perdão fiscal, apesar de ser em quase tudo semelhante (com exceção do plano de prestações) ao programa usado pelo anterior Governo PSD/CDS-PP. PSD e CDS-PP, que agora acusam o Governo de usar um perdão fiscal para controlar o défice, também na altura recusaram que fosse um perdão fiscal e que tivesse essa finalidade. E o PS fazia-lhes as mesmas acusações que agora rejeita.
Mas estas cativações não são apenas uma folga que não é usada, é também dinheiro que sai de áreas como a saúde, as empresas públicas e outros institutos públicos. No caso da saúde, como o Observador noticiou no final de setembro, o Governo emitiu mesmo um despacho a congelar quaisquer despesas de investimento. Essas despesas ficaram limitadas até ao final do ano a uma autorização prévia do ministro da Saúde, que impôs ainda uma limitação aos gastos acima da média dos últimos oito meses, em despesas que incluem a reposição de materiais e até de medicamentos, entre outros.
E esta ordem acontece mesmo depois de o próprio ministro da Saúde admitir que o Orçamento para este ano não tinha previsto dinheiro suficiente para fazer face às suas necessidades. A justificação do secretário de Estado da Saúde, que assinou este documento, é que o mesmo serve apenas para evitar surpresas na parte final do ano.
O Plano B que nunca existiu
Não há, nunca houve e o Governo nunca o iria usar se existisse porque não era necessário. António Costa disse-o, Mário Centeno repetiu-o, ainda que com algumas nuances no discurso. A história do famoso plano B foi a questão mais polémica do Orçamento de 2016, apresentado em fevereiro.
A Comissão Europeia só não chumbou o orçamento português depois de uma intensa negociação com o Governo que terminou com a cedência de Costa e Centeno. Cedência feita numa carta enviada já na madrugada de dia 5 de fevereiro, onde se deixava cair a aplicação da redução em 1,5 pontos percentuais da TSU para os trabalhadores com vencimentos até 600 euros.
O Orçamento para 2016 passou no primeiro exame, mas teve um primeiro embate com o Eurogrupo. Como o esforço orçamental estava no mínimo legal que permitia a sua aprovação, a Comissão classificou o orçamento como em risco de incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
A 9 de fevereiro, como noticiou o Observador, numa teleconferência entre os adjuntos dos ministros para preparar a reunião decisiva de dia 11, os representantes da Alemanha, Holanda e Áustria defenderam que Portugal tinha de preparar um plano de recurso com medidas para evitar que o país voltasse a falhar com os seus compromissos (já se antecipava a derrapagem em 2015 devido à resolução do Banif).
A Comissão concordou com estes países da tradicional linha dura do Eurogrupo (a que se juntou a Finlândia), e dessa reunião preparatória saiu um pré-acordo do que seria discutido, e aprovado, na reunião do Eurogrupo dois dias depois.
“De acordo com o parecer da Comissão, a proposta de orçamento de Portugal está em risco de incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento. O Eurogrupo emitiu um comunicado concordando com as conclusões da Comissão e elogiar o compromisso do Governo português de preparar medidas adicionais para implementar quando necessário para garantir que o orçamento de 2016 cumpre as regras do Pacto [de Estabilidade e Crescimento]”, disse o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, na conferência de imprensa que se seguiu a essa reunião de dia 11.
Mário Centeno admitiu isso mesmo depois da reunião, de que o Governo português se tinha comprometido com o Eurogrupo. Mas daí em diante disse sempre que não havia um plano B, apenas o plano A, que era o cumprimento da execução orçamental.
A informação das cativações inéditas foi avançada apenas no Programa de Estabilidade. O PE era um dos documentos de que a Comissão Europeia estava à espera para avaliar se iria considerar que Portugal estava em incumprimento e se avançaria com um processo de sanções inédito contra Portugal.
E foi com essa ameaça de sanções que a Comissão Europeia e os países da linha dura do Eurogrupo jogaram para exigir de Portugal o que sempre quiseram, o cumprimento da meta do défice deste ano. Quando o ministro das Finanças se reuniu com os seus pares no Eurogrupo da 11 de julho (o tal em que entrou de cachecol da seleção portuguesa ao pescoço a celebrar a inédita vitória de Portugal no Campeonato Europeu de futebol em França na véspera), foi isso mesmo que os ministros e a Comissão Europeia lhe disseram: para não haver sanções contra Portugal, tinha de haver garantias do Governo de que a meta ia ser cumprida, o que o Observador na altura.
A linha dura do Eurogrupo queria mostrar que estava firme na exigência do cumprimento das regras, mas mostrou-se recetiva a que a sanção fosse zero desde que o procedimento avançasse para a próxima fase. Foi isso mesmo que veio a acontecer: Portugal apresentou garantias aos ministros europeus e mostrou como pretendia controlar o défice este ano e recebeu em troca o cancelamento da multa.
O que aí vem
Mas o processo não morreu aqui. A Comissão continua à espera de ver os resultados práticos das medidas apresentadas e tem feito depender um eventual cancelamento da proposta de suspensão de fundos europeus das garantias que Portugal apresentará não só para este ano, mas também para o seguintes. Ou seja, que irá reduzir o défice estrutural na medida que tem sido exigida pelos parceiros europeus: 0,6% do PIB, cerca de 1100 milhões de euros.
Nas conversas tidas durante a discussão com o Governo português (não confundir com negociações, que a Comissão só aceita que estas se desenvolvam assim que a formalidade da entrega da proposta de orçamento seja completada), a Comissão tem-se mostrado inflexível: a meta de redução do défice estrutural em 0,6 pontos percentuais acordada com o Conselho da União Europeia é para ser cumprida, sem qualquer flexibilização. E tem forçado o Governo a ir ao seu encontro.
O Governo acedeu, pelo menos para já, às pretensões europeias e reviu o défice estrutural e o défice global para cumprir essas metas. Nos números que usou nas negociações com os partidos, o Executivo previa um défice orçamental de 1,7% do PIB e uma redução do défice estrutural de 0,5 pontos percentuais, mas o valor final que acabou por ser inscrito no Orçamento acabou por cair para os 1,6% do PIB no caso do défice orçamental, com uma redução de 0,6% do PIB no défice estrutural, tal como exigido por Bruxelas.
Esta segunda-feira a proposta de Orçamento para 2017 segue para Bruxelas, juntamente com um relatório onde o Governo tem de explicar o que tem feito para cumprir o ajustamento exigido pelo Conselho.
A partir daí, a Comissão tem duas semanas para se pronunciar sobre o Orçamento, caso decida aprovar, ou três semanas, caso decida chumbar, exigindo uma nova proposta ao Governo. Esta segunda hipótese é algo que não deve acontecer, pois nesta fase é avaliada apenas a legalidade do documento, ou seja, se o esforço orçamental é de pelo menos 0,1 pontos percentuais do PIB (a regra é que não pode ser inferior a 0,5 pontos percentuais do objetivo estabelecido, que é de 0,6 pp).
Mas quanto a levantar a eventual suspensão dos fundos europeus é já uma conversa diferente. Ainda nem sequer está decidida qual vai ser a proposta da Comissão (que se diz obrigada a propor a suspensão parcial de fundos) e o Parlamento está a atrasar o processo. Agora pediu para ouvir os países faltosos (Espanha e Portugal), depois de já ter exigido ouvir a Comissão Europeia ao abrigo do diálogo estruturado.