Este é um dos maiores clássicos do futebol europeu. Pode não ter a mesma base histórica de um Inglaterra-Alemanha, pode não ter a mesma base de rivalidade atual de um Alemanha-França mas é um clássico, daqueles grandes. O maior até se olharmos apenas para a história das fases finais, com o sétimo encontro num total de 38 olhando para todas as provas oficias ou particulares com 11 vitórias para cada e 15 empates no saldo até esta meia-final. Por tudo isso, era o jogo do imprevisível. Com resultado imprevisível. Do momento imprevisível.

Porque esta Itália também é isso, imprevisível. Ao longo de 32 jogos sem perder, numa série que começou após uma derrota frente a Portugal em setembro de 2018, a equipa de Roberto Mancini construiu um novo ADN camaleónico onde foi crescendo no jogo com bola sem descurar a mossa que poderia fazer na mesma sem ela e sem que o adversário percebesse que caminhos preferenciais eram utilizados até às zonas de finalização. Mas porque esta Espanha também é isso, imprevisível. Com a mesma forma de jogar em posse, a privilegiar sempre a qualidade de passe a partir de trás mas tornando-se mais vertical e com movimentos diferentes no último terço daqueles que consagraram a Geração de Ouro campeã mundial e bicampeã mundial com o tiki-taka.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No meio deste choque de ideias, Pedri emergia como o símbolo da imprevisibilidade mais previsível, aquela que todos os que veem futebol não percebem o que vai dar mas têm a certeza de que alguma coisa dará sempre. E foi através do jovem médio do Barcelona que se escreveu grande parte da meia-final, quando conseguia receber a bola com capacidade para virar e jogar ou quando os transalpinos conseguiam uma marcação que secasse os seus movimentos. Dani Olmo, no 1×1, até pode ter dado mais nas vistas mas era de Pedri que saía quase tudo até que Mancini abdicou de ter Jorginho à frente da defesa, colocou-o como sombra do espanhol e evitou males maiores. Só assim a Itália conseguiu travar a fúria espanhola antes de resolver nas grandes penalidades. Aí, tudo é imprevisível. E foi o médio campeão europeu do Chelsea que fechou com uma conversão de categoria.

A Itália entrou melhor no jogo, quase como se fizesse um prolongamento daquela forma guerreira como estava a cantar o hino. Parecia que 11 jogadores iam fazer o jogo mais importante da vida e essa intensidade, aliada às zonas de pressão mais altas, deixou a Espanha remetida ao seu cantinho, a ver ainda Barella acertar no poste num lance em que apareceu na profundidade após uma desmarcação de rutura mas em que partiu de posição irregular (5′). Foi apenas esse o período temporal desse domínio, cinco minutos. Ou até a um berro que Luis Enrique atirou para dentro de campo para pedir a Pedri para dar dois passos atrás. E foram dez para a frente.

Pedri é um pequeno génio, daqueles que pensa enquanto faz e que faz o que melhor pensa. Os jogos na presente época continuam a suceder-se mas as pernas respondem como a cabeça precisa e foi assim que se foi colocando como o cérebro da Roja, virando também o rumo da meia-final ou pela forma como passou a vir buscar o jogo mais atrás (até porque Koke pareceu mais posicional do que é normal por estratégia), ou pela maneira como ia à procura dos espaços entre linhas como fez aos 12′, quando fez uma assistência fantástica para Oyarzabal que o avançado da Real Sociedad não recebeu da melhor forma. A Espanha tinha encontrado a sua zona de conforto.

Houve mais oportunidades. Um remate de Ferran Torres após uma finta em progressão fora da área que saiu ao lado (15′), uma grande defesa de Donnarumma a remate do mesmo Ferran Torres já na área que foi a primeira grande ameaça do jogo (25′), uma tentativa de Dani Olmo de meia distância que saiu por cima (32′), um tiro em arco que foi parar ao último anel de Wembley por Oyarzabal (39′). A equipa de Luis Enrique tinha a bola que queria, onde queria e como queria (72%), disfarçava com a posse as fragilidades que foi mostrando no Euro em termos defensivos mas via também a Itália a ficar mais confortável nesse jogo e a explorar a profundidade em busca daquela faceta mais cínica de resolver as coisas quando os outros estavam melhor. Foi assim que, com outro erro individual de Unai Simón, ameaçou o golo inaugural entre cortes do conjunto espanhol (20′). E foi assim que, no último minuto antes do intervalo, Emerson combinou com Insigne e acertou na trave.

O segundo tempo começou sem alterações, com uma Itália mais baixa sem cair na tentação de pressionar mais alto criando buracos para a transição adversária e uma Espanha a apostar mais na velocidade de Oyarzabal, que entrou bem melhor após o intervalo. Faltavam os remates mas apareceram quase seguidos. Busquets por cima (52′), Chiesa para defesa de Unai Simón (53′), Oyarzabal para defesa de Donnarumma (58′). Faltava um golpe de asa mas também não demorou a aparecer: Donnarumma deixou em Verratti, o médio lançou largo na esquerda em Insigne, a assistência para Immobile foi cortada por Laporte e Chiesa, vindo de trás, ajeitou a bola para uma obra de arte cortada em arco sem hipóteses para Unai Simón que inaugurou o marcador (60′).

Estava desbloqueado o jogo, estava iniciado um novo capítulo. Não melhor, não pior, mas diferente. Com a Itália a sair em duas ocasiões com mais espaço do que até aí, tendo nos pés de Berardi após assistência de Chiesa mais uma grande oportunidade, com a Espanha a ganhar mais presença na frente com Morata e Moreno sem abdicar da qualidade de construção a meio-campo para desequilibrar a partir daí na frente. E foi assim que chegou o empate, numa grande combinação entre Dani Olmo e Morata para a finalização do avançado da Juventus na área e com Pedri a conseguir desviar Jorginho dessa zona de ação para entrar a tabelinha (80′).

A Espanha fazia o terceiro prolongamento consecutivo sem que isso tivesse qualquer influência naquilo que era a sua dimensão física para encarar mais 30 minutos de futebol: enquanto a Itália foi jogando com o tempo, sem posse, à espera de uma transição milagrosa que permitisse criar uma boa chegada à área contrária, a Espanha assumiu o jogo sempre com Pedri e Dani Olmo como principais referências, criou situações de perigo na área transalpina mas não conseguiu o golo que permitisse evitar mais um desempate por grandes penalidades. Aí, Locatelli até começou por permitir a defesa a Unai Simón mas Dani Olmo (por cima) e Morata (defesa de Donnarumma) permitiram que Jorginho fechasse com um 4-2 de classe que garantiu um lugar na final.

O jogo a três toques

Para recordar

Muitos tentam aquele tipo de remate. Poucos tentam aquele tipo de remate numa meia-final do Europeu. Quase nenhum tenta aquele tipo de remate numa segunda parte de uma meia-final do Europeu, quando qualquer erro poderia ser a morte do artista. Pelo contrário, foi o artista que deu ainda mais vida à decisão: o golo de Chiesa, na altura em que foi e pela forma que foi, tornou-se um verdadeiro hino ao futebol de um jogador que pode ter um, dois ou quatro adversários à sua volta mas encontra sempre uma maneira de sair a ganhar dos duelos. Mas não se pense com isso que o empate da Espanha ficou atrás porque a jogada entre Dani Olmo e Morata no meio de tantas pernas de defesas transalpinos mostrou como a simplicidade também pode ser uma forma de arte.

Para esquecer

A constante tremideira de Unai Simón quando a bola lhe chegava para os pés. Na baliza, o guarda-redes basco esteve sempre seguro, até mesmo quando tinha de fazer intervenções menos ortodoxas como aquela que evitou o 2-0 da Itália por Berardi no segundo tempo; quando recebia a bola no relvado, e sem razões para isso (porque não é assim nos encontros pelo Athl. Bilbao na Liga), ou colocava mal na frente, ou chutava para fora, ou dava de uma forma que travava a construção a partir de trás. E pelo meio ainda teve na primeira parte uma saída da baliza que poderia ter piores consequências com outra destreza dos transalpinos. A equipa sentiu isso.

Para valorizar

A forma como, apoiada na magia de Pedri, na irreverência de Dani Olmo e na inteligência de Busquets e Koke, a Espanha foi à procura da bola, ganhou a bola e jogou em constantes ações ofensivas em busca do golo, mesmo não tendo uma referência mais posicional até sofrer o primeiro golo (altura em que entrou Morata). A equipa de Luis Enrique pode jogar melhor ou pior, pode conseguir mais ou menos posse, mas tem uma identidade definida que nunca esquece a parte artística na construção de oportunidades para marcar e ganhar jogos. Quem tem jogadores como Pedri não pode pensar de outra forma. E quem o faz está mais longe da vitória.