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A cerimónia de coroação de Naruhito (n.1960) só terá lugar em Outubro, mas a partir de 30 de Abril, data em que é formalizada a abdicação do seu pai, Akihito (n.1933), o príncipe herdeiro converte-se no 126.º imperador do Japão.

Há outras monarquias no mundo que se orgulham da sua longevidade – como a inglesa ou a norueguesa – mas, ao longo dos séculos, ao sabor das convulsões políticas, invasões, alianças e casamentos entre casas reais, o poder foi passando de uma dinastia para outra. Ora, a monarquia japonesa não só é a mais antiga do mundo (mesmo que se considere fantasiosa a data tradicional da subida ao trono de Jimmu, o primeiro imperador, em 660 a.C.), como a linha sucessória tem permanecido sempre dentro da mesma dinastia – a Yamato – desde os primórdios. Esta invulgar longevidade tem explicação nas peculiaridades da história e da geografia do Japão.

O trono Takamikura, no palácio de Kyōto, é o mais antigo dos vários tronos imperiais japoneses e é o usado nas cerimónias de coroação

O Japão emerge das águas

No princípio, era o caos, informe e silencioso. Dele emergiram pouco a pouco partículas minúsculas, que ascenderam e coalesceram em nuvens, dando origem ao Céu; as partículas que ficaram em baixo formaram à Terra, que começou por ser uma massa sombria e indiferenciada. A formação do Céu foi seguida pela aparição de várias fornadas de deuses, as três primeiras sem sexo definido, e depois seis deuses masculinos e femininos – os dois mais jovens desta última fornada, Izanagi e Izanami, tornaram-se marido e mulher e, de acordo com o Kuniumi, o mito fundador do Japão, foram os criadores do arquipélago japonês.

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O Kuniumi tem versões diferentes nos Kojiki (“Registos das Coisas Antigas”), a mais antiga crónica japonesa, datada de 711-12, e nas Nihon shoki ou Nihongi (“Crónicas do Japão”), a segunda crónica mais antiga (mais detalhada do que anterior), cuja redacção foi terminada c.720, mas coincidem no essencial: Izanagi e Izanami debruçaram-se do Céu e, usando uma lança revestida a pedras preciosas (Ame-no-nuboko), que lhes fora entregue pelos deuses seniores, agitaram a massa informe da Terra até que emergiu a ilha de Onogoroshima.

Izanagi (à direita) e Izanami (à esquerda) fazem o arquipélago japonês erguer-se das águas, numa pintura de Eitaku Kobayashi, c.1885

As restantes ilhas nasceram da cópula de Izanagi e Izanami, após se terem estudado mutuamente e percebido que havia um detalhe nas suas anatomias que era complementar; ainda assim, as primeiras tentativas foram mal sucedidas e só após se terem aconselhado com as divindades seniores, acertaram com o processo e as ilhas começaram a brotar do mar. A relação de 14 ilhas assim criadas omite a grande ilha de Hokkaido e as Ryukyu, por estas só muito mais tarde terem sido anexadas ao Japão.

Mas após terem descoberto as suas capacidades procriadoras, Izanagi e Izanami não se ficaram por gerar ilhas: começaram também a produzir mais divindades, um processo que teve um desfecho trágico quando o 17.º filho, Kagutsuchi (também designado por Hi-no-yagihayo), o kami (espírito ou divindade) do fogo, queimou de tal modo a sua mãe, Izanami, ao nascer, que esta sucumbiu (o que marca o aparecimento da morte no mundo) numa terrível agonia – do vómito, fezes e urina de Izanami ainda brotariam mais seis deuses. Mais tarde, Izanagi, enlouquecido pela dor da perda da sua bem-amada esposa, pegou na espada e esquartejou Kagutsuchi e da carne deste nasceram oito deuses e do seu sangue mais oito, entre os quais Takemikagutsichnō, deus do trovão, e Kuraokami, deus da chuva e a neve.

“Dragão subindo ao céu” (Ryu shoten), uma estampa de Ogata Gekko, 1897. Este dragão pode ser visto como uma representação de Kuraokami, um divindade com forma de dragão que controlava a chuva e a neve

Descendentes de deuses

Um dos factores que tem pesado para que a linhagem dos imperadores japoneses se tenha mantido imperturbável ao longo dos séculos é a crença de que tem origem divina, o que vem expresso no seu título em japonês, “tennō”, cujo significado, “soberano celestial”, é afim do título do imperador da China, “tian-dì”.

De acordo com as lendas japonesas, o primeiro imperador, Jimmu, que terá reinado entre 660 e 585 a.C. (e que terá vivido entre 711 e 585 a.C. – 126 anos!) descende de Amaterasu, a deusa do sol e do cosmos e a mais importante divindade do panteão japonês. De acordo com a tradição, Jimmu era bisneto de Ninigi, que, por sua vez, era neto de Amaterasu, e fora enviado à Terra (ou melhor, ao Japão) para pacificar o território e introduzir o cultivo do arroz.

A deusa Amaterasu, numa estampa por Kunisada, 1856

A esposa de Jimmu, a imperatriz Himetataraisuzu-hime, que descendia, por sua vez de Susanoo, deus do mar e das tempestades, deu à luz Suizei, que viria a ser o segundo imperador (reinado: 581-549 a.C.). Jimmu tinha um filho mais velho, Tagishimimi, mas, uma vez que este nascera de uma concubina, o herdeiro legítimo era Suizei, algo que Tagishimimi nunca aceitou de bom grado, tendo urdido um plano para se desfazer dos seus meios-irmãos. Porém, Suizei, alertado da tramóia pela sua mãe, a imperatriz-viúva, acabou por matar Tagishimimi.

O deus Susanoo, numa estampa por Kuniteru, c.1847-52

Os mitos fundadores do Japão e o a informação sobre os primeiros imperadores provêm sobretudo das Nihon shoki, mas hoje os especialistas em história do Japão dão pouco crédito a estes relatos e consideram que os primeiros nove imperadores – entre Jimmu e Kaika (que teria reinado em 157-98 a.C.) – são figuras lendárias e mantêm sérias reservas sobre os cinco seguintes – de Sujin (reinado: 97-30 a.C.) a Chūai (reinado: 192-200 d.C.). O que não impede que a data mítica da subida ao trono do imperador Jimmu – 11 de Fevereiro – seja celebrada, ainda hoje, como Dia da Fundação Nacional do Japão.

O imperador Jimmu, na estampa n.º 37 da série “Generais famosos do Japão”, por Taiso Yoshitoshi (1876-82). A ave pousada no topo do arco é Yatagarasu, o corvo de três patas, mensageiro divino do renascimento e rejuvenescimento.

Os imperadores que, segundo a tradição, reinaram nos séculos seguintes terão, quiçá, algum fundamento real, mas pouco ou nada se sabe de concreto sobre as suas vidas e não há certezas sobre as datas dos seus reinados – o primeiro imperador de existência confirmada é o 29.º, Kinmei (reinado: 539-571), com o qual se inicia o período Asuka (539-710), assim baptizado por a cidade com este nome ter sido escolhida como capital. É neste período que o nome do país muda de Wa para Nihon (que se manteve até aos nossos dias) e se dá a difusão do budismo, vindo da China.

O 40.º imperador, Tenmu (reinado: 673-686), é um ponto charneira na história do Japão: é o primeiro a adoptar o título de “imperador (tennō) e é ele que ordena que se inicie a compilação das lendas orais que darão origem aos livros Kojiki e Nihon shoki (publicados poucas décadas depois, nos reinados das imperatrizes Genmei e Genshō, respectivamente). Estes livros criam, retrospectivamente, um mito fundador e uma história legitimadora da dinastia e atribuem grandeza imperial ao que terão sido, possivelmente. governantes de um reino de modestas dimensões. É possível que a promoção de Tenmu (e dos seus antecessores) ao estatuto imperial fosse uma tentativa de emular a dinastia chinesa Tang, que atravessava então um período de esplendor e prosperidade.

O pagode oriental do templo Yakushi-ji, em Nara, construído c.730, é uma das jóias da arquitectura do período Nara

No período Nara (com capital na cidade homónima), que se estendeu entre 710 e 794, a influência chinesa ganhou ainda mais força, nomeadamente com a adopção do vestuário e do sistema de escrita chinês. Este último foi adaptado à língua japonesa – embora as duas línguas tenham origens, estrutura e fonéticas completamente díspares – dando origem ao sistema de escrita kanji, complementado mais tarde com os silabários hiragana e katakana.

O período Heian, que se estendeu entre 794 e 1185, é assim baptizado por a capital se ter instalado em Heian-kyō (que depois passaria a chamar-se Kyōto), onde permaneceria durante quase um milénio (até 1868).

Maqueta de Heian-kyō, cidade concebida à imagem de Chang’an, a capital da dinastia Tang

O período Heian é marcado por um afrouxamento das relações comerciais com a China – que atravessava então um período turbulento – e por uma autonomização da cultura japonesa face à chinesa. É também um período em que o imperador vai sendo relegado para um papel ritual e simbólico e o poder efectivo passa para o clã Fujiwara. Até então, algumas imperatrizes tinham assumido a regência até à maioridade dos filhos, mas essa tradição é suprimida (só voltaria a surgir uma imperatriz em 1629, com a subida ao trono de Meishō), uma vez que a regência passou a ser assegurada pelos Fujiwara.

A (lendária) imperatriz Jingū, que terá reinado entre 201 e 269 d.C., numa estampa de Tsukioka Yoshitoshi, 1880

Os Fujiwara construíram uma rede tentacular de poder, consolidada por uma política de casamentos com membros da casa imperial, mas encontraram sempre resistência dos mosteiros, que funcionaram como reduto de contra-poder.

No século XI, o poder dos Fujiwara começou a enfraquecer, devido a disputas entre os vários ramos da família e à crescente oposição das famílias Taira e Minamoto, nascidas de ramificações menores da casa imperial, e os imperadores aproveitaram a oportunidade. O 70.º imperador, Go-Sanjo (reinado: 1068-1073), o primeiro imperador a não ter uma mãe da família Fujiwara desde o século IX, abdicou, por razões de saúde, em favor do filho, Shirakawa (reinado: 1073-1087). Este fez o mesmo em favor do seu filho, Horikawa, então com quatro anos de idade, e retirou-se para um mosteiro; Shirakawa estava, todavia, na plena posse das suas faculdades quando abdicou – a sua intenção era subtrair-se ao poder, em declínio, dos Fujiwara e assumir a condução efectiva do país, quase como um regente, enquanto o seu sucessor arcava com as absorventes funções simbólicas imperiais. Esta prática de abdicação precoce, com o fito de ganhar liberdade de manobra e praticar uma governação “na sombra” a partir de um mosteiro, que tem o nome de insei, foi repetida por outros imperadores do período Heian.

O imperador Shirakawa

A abdicação do imperador Toba (reinado: 1107-23) não correu, porém, como ele tinha previsto e gerou uma crise sucessória que levou, em 1156, à eclosão de uma guerra civil, com um candidato ao trono (Sutoku) a ser apoiado por um ramo dos Fujiwara e pelos Minamoto e o outro (Go-Shirakawa) a ser apoiado por outro ramo dos Fujiwara e pelos Taira Deste período de convulsão, conhecido como Rebelião Hōgen (Hōgen no ran), resultou a vitória de Go-Shirakawa (reinado: 1155-58) e dos Taira, o afastamento dos Fujiwara e o início da ascensão dos clãs de samurai como força decisiva no jogo político.

Uma batalha da Rebelião Hōgen, num biombo do período Edo

A rivalidade entre os Taira e os Minamoto haveria de resultar em mais duas guerras civis, a Rebelião Heiji (1160), vencida novamente pelos Taira, e a Guerra Genpei (1180-85), que conduziu os Minamoto ao poder. Mas enquanto Taira e Minamoto se digladiavam, Go-Shirakawa, que abdicara em 1158, após apenas cinco anos de reinado, viveu até 1192 e foi exercendo o poder na sombra, enquanto passavam pelo trono cinco imperadores (dois filhos e três netos seus).

A Batalha de Dan-no-ura, em 1185, que marcou a vitória final dos Minamoto sobre os Taira

Com a morte de Go-Shirakawa, o líder dos Minamoto, Yoritomo, conseguiu obter do imperador Takahira (reinado: 1183-1198) o título de shōgun (uma abreviatura de sei-i taishōgun = “comandante-em-chefe da força expedicionária contra os bárbaros”), com autoridade sobre os governadores militares, que eram, na prática, quem detinha as redes da administração no país. Inicia-se assim o período Kamakura (1192-1333), em que o imperador foi relegado para o papel de figura decorativa. Com algumas intermitências, os shōgun iriam governar o Japão até à Restauração Meiji, em 1868.

Possível retrato de Minamoto no Yoritomo, o primeiro shōgun , que esteve no poder entre 1192 2 1199

Sob o governo dos shōgun

Foi durante o período Kamakura que o Japão sofreu a maior ameaça à independência da sua história (até 1945): os mongóis, que já tinham convertido a Coreia num estado-vassalo e conquistado o império chinês, não tinham saciado o seu apetite pela expansão territorial e, em 1266, o seu chefe supremo, Kublai Khan, que dois anos antes instalara a sua capital em Pequim, enviou uma delegação com uma carta ameaçadora ao “rei do Japão”, intimando-o a submeter-se e a pagar tributo.

Batalha de Bun’ei, em 1274: O samurai Takezaki Suenaga enfrenta invasores mongóis e coreanos. Pintura datada de c.1293 e encomendada pelo próprio Suenaga

O 90.º imperador, Kameyama (reinado: 1260-1274) ainda considerou negociar uma solução de compromisso com o todo-poderoso império mongol, mas o shōgun negou-se a cumprir o exigido e devolveu a delegação à procedência. Kublai ordenou uma invasão em 1274, com um exército misto mongol, chinês e coreano, cujos 23.000 soldados e 600 navios teriam provavelmente sido suficientes para esmagar as forças japonesas, não fosse dois tufões, separados por apenas duas semanas, terem lançado a destruição entre os atacantes.

Samurai abordam navios mongóis. Pintura datada de c.1293

Uma nova tentativa de invasão mongol, em 1281, foi destroçada por outro tufão – os deuses pareciam, com efeito, estar do lado do Império do Sol Nascente. Os japoneses deram a estes providenciais fenómenos meteorológicos o nome de kamikaze (“vento divino”), designação que seria recuperada na II Guerra Mundial para baptizar o programa de ataques suicidas contra a frota americana.

O “vento divino” abate-se sobre a frota mongol. Estampa de Yōsai Kikuchi, 1847

Por altura das tentativas de invasão mongol, uma nova família, os Hōjō, tinham assumido o controlo do shogunato, mas em 1333, o 96.º imperador, Go-Daigo (reinado: 1318-1339), decidiu devolver o poder à casa imperial. O período, conhecido como Restauração Kenmu, durou apenas três anos, até que Takauji Ashikaga derrotou os outros pretendentes ao poder e se tornou shōgun , dando início ao período Ashikaga (1336-1573), também conhecido como período Muromachi.

Takauji Ashikaga

A transição entre os períodos Kamakura e Ashikaga é confusa, com a família imperial a separar-se em dois ramos: um formado pelo imperador Go-Daigo (e os seus sucessores), com capital em Yoshino (a Corte do Sul), o outro com o imperador Kōgon (e os seus sucessores), com capital em Kyōto e apoiado pela família Ashikaga (a Corte do Norte). Embora, os Ashikaga tenham vencido, a legitimidade parece ter ficado com a Corte do Sul, de forma que a numeração oficial reconhece os seus imperadores e ignora os da Corte do Norte. Esta coexistência de dois imperadores estendeu-se até 1392, quando a Corte do Sul se submeteu à do Norte e Go-Komatsu, que era, desde 1382, o imperador da Corte do Norte, foi reconhecido como único imperador do Japão (o 100.º).

Go-Komatsu

Go-Komatsu reinaria até 1412, mas, por esta altura, não fazia muita diferença prática quem era o ocupante do trono imperial, pois o clã Ashikaga tinha retirado ao imperador de todos os aspectos da governação. Isto não quer, porém, dizer que os Ashikaga detivessem o poder absoluto, pois este período foi marcado por incessantes tumultos e guerras civis. A debilidade dos shōgun Ashikaga permitiu o estabelecimento, nas ilhas do sul do arquipélago, de bases de piratas japoneses, que desferiam ataques contra as costas chinesas, o que levou a China a retaliar, restringindo as relações comerciais com o Japão (ver capítulo “Ningbo, 1523: Piratas anões e contrabandistas”, em Cinco séculos de comércio livre e proteccionismo, parte 1).

Estavam as coisas neste pé quando, em 1543, estando no trono o 105.º imperador, Go-Nara (reinado: 1526-1557) chegam às costas japonesas os primeiros europeus: eram portugueses e viajavam a bordo de um navio chinês que terá sido empurrado por uma tempestade até à ilha de Tanegashima.

Navios ocidentais em pintura japonesa do século XVI

Foi o início de um profícuo comércio entre o Japão e a Europa, mas, entretanto o poder do clã Ashikaga começou a ser desafiado pelos daimyō (senhores feudais), que, ao mesmo tempo, guerreavam entre si. O último shōgun Ashikaga resignou em 1573 e do caos emergiu um vencedor, o daimyō Toyotomi Hideyoshi, que assumiu o cargo de regente entre 1585 e 1592. Hideyoshi reunificou o país, reprimiu o cristianismo e invadiu a Coreia (como primeira parte de um plano para conquistar a China), sem que os imperadores n.º 106 (Ōgimachi) e n.º 107 (Go-Yōzei) tivessem uma palavra a dizer (ver capítulo “Nagasaki, 1580: Bárbaros do Sul no Império do Sol Nascente”, em Cinco séculos de comércio livre e proteccionismo, parte 1).

Um ainda jovem Toyotomi Hideyoshi lidera um grupo de assalto ao castelo do Monte Inaba, um episódio do período de guerras civis que o Japão atravessou na 2.ª metade do século XVI. A estampa é a n.º 7 da magnífica série 100 aspectos da Lua, do mestre Tsukioka Yoshitoshi, datada de 1885

Pouco antes de falecer, em 1598, Hideyoshi designou um Conselho de Cinco Anciãos para lhe suceder, mas Ieyasu Tokugawa, o mais poderoso entre eles, acabou por desembaraçar-se dos quatro colegas e de outros rivais e tornou-se, em 1600, o detentor do poder absoluto no Japão. Em 1603, o imperador Go-Yōzei confirmou formalmente a sua posição, nomeando-o shōgun – tinha início o shogunato Tokugawa, também conhecido como período Edo, por a capital se ter transferido para Edo (a moderna Tóquio), um período pacífico, sobretudo quando comparado com os tumultuosos anos precedentes. O início do período Tokugawa foi marcado por uma política de expulsão de missionários, execução de cristãos e severas restrições ao comércio internacional e à circulação de estrangeiros – esta política de isolamento, conhecida como Sakoku, estendeu-se até ao final do shogunato, em 1867 (ver capítulo “Dejima, 1641: Uma fresta na muralha”, em Cinco séculos de comércio livre e proteccionismo, parte 2).

Ieyasu Tokugawa

E assim, enquanto as potências europeias iam intrometendo-se cada vez mais nos assuntos das nações asiáticas, ou até conquistando-as, o Japão ficou à margem da marcha do tempo, enquanto os shōgun governavam o país com mão de ferro, assegurando paz e prosperidade. Os daimyō (senhores feudais) foram “controlados” através da política sankin-kōtai (“serviço alternativo”, em tradução literal), que os obrigava a residir no seu feudo e na capital Edo, em anos alternados – porém, quando regressavam ao seu domínio eram obrigados a deixar em Edo as esposas e os filhos, que funcionavam como garantes da sua fidelidade. Sem guerras para se entreterem, os samurai converteram-se numa classe com funções administrativa, enquanto, pelo seu lado, os imperadores pareciam conformados em desempenhar o seu papel ritual.

Daimyo afluem ao castelo de Edo, nas cerimónias associadas ao sankin-kōtai; biombo por Kyosai Kiyomitsu, 1847

Da Idade Média à Revolução Industrial, sem escalas

E assim passaram placidamente pelo trono 16 irrelevantíssimos imperadores, até que em 1853, estando no trono o 121.º, Kōmei (reinado: 1846-1867), o mundo exterior bateu à porta do Japão, sob a forma de uma frota americana, comandada pelo comodoro Matthew Perry, que fundeou na baía de Edo (ver capítulo “Baía de Edo, 1853: Comércio livre à força”, em Cinco séculos de comércio livre e proteccionismo, parte 3).

A chegada ao Japão do comodoro Matthew Perry, numa estampa japonesa da época

A frota de Perry era modesta, mas a superioridade tecnológica ocidental era tão esmagadora que o governo do shōgun Iemochi Tokugawa se viu obrigado a aceitar todas as imposições e condições americanas – e, passado pouco tempo, também as das grandes potências europeias. Sob este choque violento com o mundo da Revolução Industrial, o Japão medieval sofreu uma convulsão: enquanto o shogunato tentava dar passos para a modernização do país, os samurai (sobretudo os jovens samurai, conhecidos como shishi) e outros grupos conservadores resistiam à mudança e constituíram o movimento Sonnō Jōi, cujo lema era “Reverenciar o imperador, expulsar os bárbaros”.

Estampa japonesa apelando à expulsão dos estrangeiros, 1861

O imperador Kōmei tomou o partido dos tradicionalistas e, quebrando séculos de alheamento imperial, tentou intervir na política, emitindo, em 1863, um decreto intitulado “Ordem para expulsar os bárbaros”. Iemochi Tokugawa não deu cumprimento às suas ordens, mas houve vários ataques a ocidentais, que foram alvo de pesadas retaliações pelas potências ocidentais, tornando ainda mais claro que os séculos de isolamento tinham tornado o Japão militarmente impotente.

Samurai do clã Chosyu, durante um dos conflitos que opuseram “reformistas” e “tradicionalistas” na década de 1860

Estes eventos, ao mostrar a fraqueza do shogunato, acabaram por incitar à acção os partidários do Sonnō Jōi: em 1864 eclodia a Rebelião Mito (também chamada Rebelião Tengutō), com levantamentos armados e ataques terroristas contra o shogunato. Porém, este acabou por prevalecer e castigou duramente os revoltosos.

Episódio da Revolta Mito, numa estampa por Utagawa Kuniteru III, 1891

Quando Kōmei faleceu, em 1867, sucedeu-lhe o filho de 14 anos: o 122.º imperador, Meiji (reinado: 1867-1912). Dada a tenra idade, é provável que, nos primeiros tempos, Meiji se tenha limitado a ser testemunha perplexa dos acontecimentos inauditos que varriam o país. Em Novembro de 1867, o 15.º e último shōgun Tokugawa, Yoshinobu, apresentou a sua demissão e, a 3 de Janeiro de 1868, o imperador reassumiu formalmente o governo da nação e tomou conta das propriedades dos Tokugawa – tinha início a Restauração Meiji. As forças fiéis ao shogunato ainda tentaram resistir mas foram derrotadas (alguns refugiaram-se na ilha do norte, Hokkaido, e constituíram a efémera República de Ezo) e em 1872 os daimyō, convocados a comparecer perante o imperador, acordaram em confiar-lhe todos os seus domínios.

O imperador Meiji, em 1872

As revoltas contra a nova ordem continuaram nos anos seguintes, mas não impediram que as reformas, impulsionadas pela oligarquia que se tornara dominante no gabinete imperial, se sucedessem num ritmo vertiginoso, com a adopção de modelos ocidentais para a administração pública, para o sistema tributário e para as forças armadas e até para a vida quotidiana, embora mantendo como referencial último as tradições clássicas japonesas, expurgadas de influências chinesas e budistas.

Em 1889 era promulgada a Constituição Meiji, que convertia o Japão numa monarquia constitucional, atribuindo ao imperador o papel de líder supremo, mas reservando a condução dos assuntos da nação a um primeiro-ministro. A constituição estabeleceu a criação de um parlamento (a Dieta Imperial), mas este não dispunha de poderes efectivos, que acabavam por estar nas mãos de uma oligarquia (genrō) formada pelos daimyō e chefes militares que tinham promovido a Restauração.

Promulgação da Constituição Meiji, numa estampa por Toyohara Chikanobu, 1889

Os resultados destas reformas não se fizeram esperar: o país que fora intimidado por uma modesta frota americana em 1854 mostrou-se capaz de infligir pesadas derrotas ao declinante Império Chinês na guerra de 1894-95 e, para incredulidade de todo o mundo, ao todo-poderoso Império Russo na guerra de 1904-05. A extensão das linhas de caminho-de-ferro, que era de 29 Km em 1872, atingia 11.400 Km em 1914 – no mesmo intervalo de tempo, a frota de navios a vapor do Japão passara de 26 para mais de 1500. O país que Meiji deixou, ao falecer, em 1912, era bem diverso do que encontrara quando subira ao trono 45 anos antes, embora os historiadores não consigam, ainda hoje,  precisar que papel desempenhou ele nesta espantosa metamorfose.

Exposição Industrial de 1907, em Tóquio

Os últimos cem anos

Meiji foi sucedido por Taishō (reinado: 1912-1926), cujo reinado foi marcado pela indiferença perante os assuntos de Estado e por uma progressiva deterioração das capacidades mentais, o que conferiu ainda mais poderes à oligarquia – em particular aos militares, uma vez que, a partir de 1900, o Exército e a Marinha passaram a deter poder de veto sobre a constituição dos governos. Face ao declínio da sua saúde, em 1919 o filho mais velho, Hirohito, então com 18 anos, assumiu a regência, tornando-se no 124.º imperador após o falecimento do pai, em 1926.

Os quatro filhos do imperador Taishō, em 1921: da esquerda para a direita, Hirohito, Takahito, Nobuhito e Yasuhito

Convém explicar neste ponto que os nomes de imperadores japoneses que têm, até agora, sido mencionados neste texto são os nomes cerimoniais que lhes são atribuídos após a morte, não os seus nomes próprios – que, aliás, deixam de ser usados quando o imperador sobe ao trono, altura a partir da qual passa a ser designado por “Imperador” (tennō), com mais ou menos fórmulas cerimoniais. O 124.º imperador é uma excepção: “Hirohito” é o seu nome próprio, mas como foi por este nome que ficou conhecido no Ocidente, não se emprega aqui o seu “nome póstumo”, Shōwa. Akihito é o nome próprio do 125.º imperador, que, estando ainda vivo, não tem, claro, “nome póstumo”.

Hirohito em 1935

Os primeiros anos do reinado de Hirohito coincidiram com a crise económica global resultante do crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, e com o crescente controlo dos militares sobre o governo japonês, e foram pontuados por assassinatos de políticos moderados (como o Primeiro-Ministro Inukai Tsuyoshi, em 1932) e por revoltas de militares. Hirohito tentou conter os impulsos mais radicais, mas não parece ter feito nada para contrariar a decisão dos militares de invadir a China, em 1931. Em meados da década de 1930, os militares japoneses tinham tomado o freio nos dentes e as atrocidades e crimes da guerra na China multiplicavam-se – levando a que o Japão fosse expulso da Sociedade das Nações –, sem que Hirohito desse mostras de ser capaz de sustê-los (ou de querer fazê-lo).

O imperador Hirohito passa revista a tropas, Janeiro de 1938

O expansionismo cada vez mais agressivo do Japão acabou, sem surpresa, por conduzir, em 1940, à assinatura do Pacto Tripartido com dois parceiros de índole e ambições similares: a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini. Parece, todavia, que Hirohito começou por se opor ao plano dos militares para entrar em guerra com os Aliados, por entender que a diplomacia era a forma apropriada de resolver diferendos entre nações. Porém, quando, no final de 1941, chegou a altura de encontrar um substituto para o Primeiro-Ministro Konoe, que se demitira em resultado do assédio e das tramóias dos militares, Hirohito nomeou um “falcão”, o general Hideki Tōjō. Com Tōjō à frente do governo, o Japão não tardou a encarrilar na senda da guerra – com a aprovação de Hirohito.

A guerra com os EUA e a Grã-Bretanha, iniciada a 7 de Dezembro de 1941, começou com triunfos ainda mais fulgurantes do que aqueles logrados pela Alemanha nazi na Europa, mas a partir de meados de 1942, o rumo do conflito começou a inverter-se. Pouco a pouco, os Aliados foram estrangulando o Japão e desta vez o “vento divino” não veio em socorro do Império do Sol Nascente. Em meados de 1945, após a rendição da Alemanha, o destino do Japão parecia inevitável, mas as facções radicais dos militares preferiam a morte à desonra e o imperador, face à exigência de rendição incondicional apresentada pelos Aliados, optou pela continuação do combate. Só os bombardeamentos atómicos de Hiroshima e Nagasaki o levaram a mudar de ideias – a 15 de Agosto, os japoneses, pasmados, ouviram pela primeira vez a voz do “soberano celestial” através da rádio, anunciando a rendição.

O general Douglas MacArthur e o imperador Hirohito, no seu primeiro encontro, na embaixada americana em Tóquio, 27 de Setembro de 1945

Os EUA – e, em particular, o general Douglas MacArthur, comandante supremo das forças aliadas de ocupação – revelaram uma sageza e prudência que lhes faltaria em situações similares posteriores (nomeadamente no Iraque): compreendendo que o estatuto de que o imperador gozava aos olhos do seu povo era muito mais que o de um simples governante, MacArthur não só poupou Hirohito ao julgamento por crimes de guerra a que foi submetida a cúpula do governo japonês, como o manteve como imperador, apesar de haver membros da família imperial que advogavam que Hirohito deveria assumir a responsabilidade pela derrota e abdicar. MacArthur passou a governar o Japão através de Hirohito e logrou assim uma transição surpreendentemente suave e bem-sucedida. É possível que tenha sido também MacArthur a persuadir – ou pressionar – Hirohito a fazer, a 1 de Janeiro de 1946, um segundo discurso aos japoneses pela rádio, ainda mais surpreendente que o primeiro, em que Hirohito rejeitou “a falsa ideia de que o imperador era divino”.

Esta declaração foi acompanhada pela nova Constituição promulgada em 1947, que “despromoveu” o imperador a “monarca constitucional”, retirou-lhe o papel de comandante supremo das forças armadas e atribui-lhe o papel essencialmente cerimonial de “símbolo do Estado e da unidade do povo” – uma nítida perda de protagonismo face ao estatuto previsto na Constituição Meiji.

O general Hideki Tōjō (ao centro) numa sessão do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, em Tóquio. Foi considerado culpado das acusações e enforcado em Dezembro de 1948

Hirohito teve, daí em diante, um papel discreto, enquanto o seu país se erguia dos escombros com espantosa rapidez e a sociedade assumia uma nova feição, sem vestígios da febre nacionalista e militarista que a marcara entre o final do século XIX e 1945. Com a queda, em 1979, do shah do Irão e de Jean-Bédel Bokassa, o líder do efémero Império centro-Africano em 1979, Hirohito passou a ser o único governante do mundo a ostentar o título de “imperador”. Faleceu em 1989, após um reinado de mais de 62 anos – o mais longo entre os imperadores japoneses.

O imperador Akihito com os trajes cerimoniais, por ocasião da cerimónia de coroação, em 1990

Sucedeu-lhe, o filho, Akihito (n.1933), que trouxe substanciais “novidades” à figura tradicional do imperador: casou-se, em 1959 com Michiko Shōda, uma “plebeia” que recebera educação católica (embora não fosse baptizada), e Akihito e a esposa ocuparam-se eles mesmos dos filhos, contrariando o uso de afastar as princesas e príncipes japoneses dos pais e de os confiar tutores. Não menos heterodoxa é a paixão de Akihito pela ictiologia, que o levou a publicar vários artigos científicos em revistas especializadas sobre a taxonomia dos Gobiidae.

Também a abdicação – a primeira desde 1817 – é uma quebra com a tradição pós-Meiji e nem sequer estava prevista no regimento da casa imperial, tendo este de ser alterado para que a vontade de Akihito de transferir o poder para o príncipe-herdeiro Naruhito pudesse ser cumprida.

Não se sabe o que pensará Amaterasu do facto de os seus veneráveis descendentes terem, nos últimos 70 anos, perdido a aura divina e estarem cada vez mais parecidos com vulgares seres humanos