(Artigo originalmente publicado quando Pelé completou 80 anos e agora republicado por ocasião da morte do antigo jogador brasileiro)
Em outubro de 2010 e na altura em que completou 70 anos, Pelé deixou uma promessa. Garantiu que daí a uma década, quando chegasse aos 80, marcaria um golo no Maracanã para assinalar a data. Mas quando Pelé fez 80 anos a promessa ficou por cumprir. Ficou para dez anos depois.
“Aos 90, ele vai marcar”, disse Pepito Fornos, amigo e assessor do antigo jogador há décadas, à Folha de S. Paulo. Pelé chega aos 80 anos num ano estranho e dos mais atípicos que já viveu — e nem tudo disso está diretamente relacionado com a pandemia. Para Edson Arantes do Nascimento, o nome verdadeiro do símbolo a quem aprendemos a chamar esta alcunha de apenas quatro letras, 2020 começou com rumores de que estava a atravessar uma depressão. Rumores, aliás, levantados pelo próprio filho, Edinho, que garantiu que o pai estava deprimido devido à limitação de mobilidade imposta pelos problemas na anca que o restringe a uma cadeira de rodas. Dias depois, em comunicado oficial, Pelé não deixou nada por explicar.
“Obrigado por suas orações e preocupações. Eu estou bem. Estou completando 80 anos este ano. Tenho os meus dias bons e maus. Isso é normal para pessoas da minha idade. Não tenho medo, sou determinado, sou confiante no que faço (…) Tive duas sessões de fotos no mês passado para campanhas que utilizam a minha imagem e testemunho. Tenho vários eventos futuros agendados. Não evito cumprir compromissos da minha sempre movimentada agenda. Continuo aceitando as minhas limitações físicas da melhor maneira possível mas pretendo manter a bola rolando”, podia ler-se no comunicado do antigo jogador brasileiro, que em março sofreu mais um revés com a morte do irmão Zoca. Ainda assim, em poucas frases, Pelé deixava clara principalmente uma coisa: não tinha qualquer intenção de se retirar da vida pública e de deixar de estar onde era desejado.
E isto obriga-nos a alguma matemática. Se é certo que Pelé tinha então 80 anos, também é certo que Pelé conquistou os históricos três Mundiais em 1958, 1962 e 1970. E também é certo que acabou a carreira em 1977, depois de 18 temporadas no Santos e duas no New York Cosmos dos Estados Unidos. Ou seja, em resumo, o jogador terminou a carreira há 43 anos — Pelé deixou de jogar futebol antes de Messi e Ronaldo nascerem, apenas três anos depois do 24 de abril e mais de uma década antes da queda do Muro de Berlim. Então como é que Pelé, tido por muitos como o melhor de uma geração e talvez de todas as gerações, continua a ser o ícone tão atual que ainda é hoje?
A explicação, afinal, não é assim tão complicada. A maior e melhor ferramenta de Pelé é manter-se atual e atualizado, renovar-se com a passagem dos anos e dos tempos e nunca perder o ritmo da corrida. Em 2018, em entrevista à Folha, o antigo jogador do Santos garantia que ainda se estava a habituar ao “bichinho sem fios”, o telemóvel. Dois anos depois? “Esquece, ele já sabe mexer em tudo”, conta ao mesmo jornal Joe Fraga, o norte-americano que é empresário de Pelé há vários anos e que é atualmente o grande responsável pelo legado do brasileiro.
“O principal foco agora são as redes sociais. Nós tínhamos eventos programados [para assinalar os 80 anos] mas logo no início do ano percebemos que não poderíamos fazê-los. Ninguém sabia que a Covid-19 afetaria tanto a vida das pessoas. Mas tomámos a decisão de que o Pelé precisa de uma celebração, precisa de ser honrado”, explica o empresário, que revelou então que a entourage do brasileiro tem planeada uma série de mensagens de outros jogadores e celebridades, publicações relativas ao aniversário e estratégias de marketing no Instagram oficial da antiga estrela do Santos. Um Instagram que é atualmente o centro da promoção não só do cidadão Edson como principalmente da marca Pelé.
É nesta rede social que Pelé se mantém atual e atualizado. Para além dos compromissos publicitários com marcas de luxo, como a Hublot, o jogador aproveita as parcerias comerciais para daí também tirar o máximo de proveito pessoal possível. A ligação à EA Sports, a empresa que desenvolve o jogo de consola FIFA, levou a que Pelé seja um dos jogadores disponíveis no FIFA 21, a última edição do jogo, e possa ser escolhido pelos utilizadores para atuar ao lado do futebol atual. De uma forma simples e aparentemente inocente, o brasileiro entra pelas casas de adolescentes, jovens e jovens adultos que estavam ainda longe de nascer quando este terminou a carreira. De uma forma simples e aparentemente inocente, o brasileiro aproxima tempos que já parecem história antiga da atualidade. E segundo Joe Fraga, nas primeiras 36 horas em que as redes sociais do antigo jogador receberam publicações relacionadas com o 80.º aniversário, foram registadas 8,9 milhões de interações e 5,6 milhões de likes.
https://www.instagram.com/p/CGI-O3nl9gd/?utm_source=ig_embed
Mas nem só de marketing e do Instagram se faz esta fase da vida e da carreira de Pelé. A vida pública e as presenças nos eventos importantes, que o brasileiro fez questão de garantir que não vai abandonar no tal comunicado em resposta às declarações do filho, continuam a ser o centro das preocupações do brasileiro e o empresário garante que, se a saúde lhe permitisse, Pelé corria os quatro cantos do mundo todas as semanas. O problema é que, muitas vezes, os convites são para sítios como o Qatar, a China ou o Japão — e aí, novamente, são as redes sociais e a tecnologia que ajudam o antigo jogador a estar onde não pode estar realmente. Certo é que é precisamente pelo Qatar e por 2022 que passa o grande objetivo de Pelé nesta altura.
Depois de não ter estado no Mundial 2018, na Rússia — o primeiro, desde que nasceu para o futebol, em que não participou nem como jogador nem como comentador ou convidado –, Pelé queria estar no Qatar. Houve negociações a decorrer para que viajasse a convite do comité organizador, segundo a imprensa brasileira, mas os mais próximos do antigo jogador garantem que este quer estar na competição como adepto, praticamente como anónimo, para aproveitar aquele que, seria o último Mundial a que iria assistir presencialmente. Joe Fraga, além de duvidar desta última promessa, garante que nunca será possível a Pelé estar em lado nenhum como um simples espectador.
“Ele pode querer ir para o Campeonato do Mundo como um fã normal, mas isso nunca vai acontecer. O Pelé vai sempre estar no centro das atenções, as pessoas vão sempre querer falar com ele. Sem a pandemia, o plano é ir ao Qatar e estar lá, ser parte do evento. Ele teria de aceitar que não conseguiria ser uma pessoa normal assistindo ao Campeonato do Mundo”, dizia o empresário. Do lado da família, dos seis filhos, a preocupação é principalmente uma: que Pelé não se esqueça das limitações que a saúde lhe impõe e, principalmente, que não se esqueça das sessões de fisioterapia. O antigo jogador foi operado três vezes nos últimos anos, uma para colocar uma hipótese na anca e outras duas para a corrigir, e sofre com problemas graves nos joelhos que permanecem desde que ainda jogava.
Depois do aniversário e até ao Mundial, o plano era evoluir na continuidade e continuar a promoção de uma marca que já é maior do que o homem que lhe deu nome. “Depois do aniversário, faremos muita coisa com a Fundação Pelé. Vamos relançar algumas iniciativas. Temos uma ligação muito boa com o Mbappé. Neymar provavelmente vai quebrar o recorde de golos pela seleção (77), é uma boa oportunidade para eles estarem conectados”, revela Joe Fraga. Mais uma vez, a ligação entre o passado e o presente a funcionar.
Na antecâmara do 80.º aniversário, Pelé recebeu mais de 200 pedidos de entrevistas de todo o mundo. 43 anos depois de terminar a carreira, Pelé aos 80 anos continuava a ser um símbolo, uma figura, um Rei. E fazia isso não só através da memória que teimava em não deixar esquecer mas também pela postura de invencível que não conseguiu largar. E prova disso foi a resposta que deu a Rogério Caboclo, presidente da Confederação Brasileira de Futebol, que lhe perguntou como estava durante uma vídeochamada que aconteceu dias antes de o Brasil disputar os primeiros jogos de apuramento para o Mundial 2022. “Estou bem”, disse Pelé, “só não vai dar para jogar esta semana”.