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“Nero: o homem por detrás do mito” abre com a conhecida imagem de Peter Ustinov, no êxito de bilheteira “Quo Vadis” (1951), evocando o Nero que dedilhou a lira, enquanto Roma ardia. Esta seleção não é inocente: sublinha que o conhecimento que temos do imperador se baseia no que o cinema, a literatura e até a História ditaram. O que o cinema disse dos restantes imperadores da dinastia Júlio-Cláudios não é muito melhor, se tivermos presente a mini-série (1976) “Eu Cláudio”, através da qual a BBC celebrizou o romance de Robert Graves. No entanto, Nero parece tê-los suplantado a todos. E até Shakespeare põe Hamlet a dizer:
“O heart, lose not thy nature,
Let not ever
The soul of Nero enter this firm bosom”.
(Oh coração, não percas a tua natureza, não deixes nunca a alma de Nero entrar neste peito firme)
Faz sentido que, numa exposição dedicada a reabilitar a memória de Nero, o mito da sua infame piromania seja o primeiro a abater. É o mais fácil de contraditar. Dependemos dos historiadores romanos para conhecer Nero. Tácito e Suetónio — eram quase seus contemporâneos — e Dião Cássio viveu no séc. 2 d.C. A exposição dedica-se a demonstrar como os três foram sempre hostis a Nero e distorceram a sua imagem.
Recuemos aos factos. O grande fogo eclodiu na noite de 18 de julho de 64 d.C., entre armazéns de madeira, junto ao Circus Maximus. As chamas cresceram durante seis dias antes de serem debeladas; mas o fogo reacendeu-se e durou outros três. Quando o fumo se dissipou, 10 dos 14 distritos de Roma tinham sido afetados. O templo de Júpiter Estator, com 800 anos, e o Atrium Vestae, a Casa das Vestais, juntamente com dois terços da cidade antiga, haviam desaparecido.
Passemos agora aos relatos históricos. Os “Anais” de Tácito foram os primeiros a registar rumores de que Nero ordenara o fogo e de que gangues de bandidos impediram os romanos de o combater, ameaçando-os de tortura. Tácito porém ressalvou que os rumores podiam ser falsos. Posteriormente, Dião Cássio relatou que Nero destruiu a cidade para construir a sua Domus Aurea, a majestosa série de vilas e pavilhões situada sobre um parque e um lago artificial, construída após o incêndio.
É atualmente consensual que Nero estava a mais de 50 quilómetros de Roma quando o incêndio deflagrou e que, após o desastre, comandou uma legião de socorro aos desabrigados, supervisionou a reconstrução da cidade e aprovou regulamentação urbanística para impedir a repetição da desgraça.
Roma tinha dois milhões de habitantes e as suas construções em madeira eram altamente inflamáveis, — o calor sufocante do verão ateava regularmente fogos nos bairros de lata que cobriam uma grande extensão da capital. Sabendo disso, o próprio Imperador estava na estância balneária de Antium. No entanto, este não foi um incêndio comum. Teve proporções trágicas. E Nero usou os cristãos como bodes expiatórios, ordenando que muitos fossem queimados nos seus próprios jardins, de acordo com a prática legal romana de ajustar a punição ao crime. Neste aspeto, a exposição é deliberadamente curta.
Ouçamos Francesca Bologna, a curadora da exposição “Nero: o homem por detrás do mito”: “A história de Nero é sobre como devemos abordar as informações, como devemos sempre abordar as nossas fontes de forma crítica”. Na mesma linha, apontam as declarações do conservador do British Museum, Thorsten Opper: “O Nero de nossa imaginação é uma figura inteiramente artificial, cuidadosamente construída há 2.000 anos. É fascinante desvendar como e porque isso foi feito”.
No princípio, era o pequeno Lúcio Domício Aenobarbo
Se é válido o propósito de não tomar a palavra dos historiadores como suprema verdade final, uma pergunta não deixa de ser intrigante: porque foi necessário chegarmos ao século XXI para alguém se aventurar a reavaliar as fontes e a desestabilizar o mito? E se o século XXI está mais predisposto a formar uma opinião própria, possuirá os meios para o fazer?
É fácil pensar nisso enquanto admiramos a bela estátua de Nero ainda rapazinho, teria 12 ou 13 anos. Foi ali colocada propositadamente ao nível dos nossos olhos, simples e despretensiosa, para nos aproximar da sua inocência. Outras estátuas como esta foram criadas para assinalar a ocasião em que Cláudio o adotou (50 d.C.) São as primeiras esculturas que temos de Lúcio Domício Aenobarbo, nascido a 15 de dezembro de 37 d.C., num clã da elite romana intimamente relacionado com Augusto. Três anos após a feitura da estátua, aos dezasseis anos, Nero torna-se César. O quinto e último Imperador da dinastia dos Júlio-Cláudios, foi assim o mais jovem deles todos. Reinou durante quase quatorze, de 54 a 68 dC. E morreu com apenas 30 anos.
Foi, portanto, relativamente imberbe que recebeu o governo de um vasto império, durante um período de grandes mudanças. O domínio de Roma estendia-se por toda a bacia do Mediterrâneo, a Leste da qual começava o império da Pártia (onde hoje se situa o Irão), era o maior inimigo de Roma, e as guerras romano-partas atravessaram o reinado de Nero.
Avancemos para a sala seguinte. Imponentes, erguem-se ali as estátuas da dinastia júlio-claudiana, que começa em Augusto e termina no seu trineto. Chamam a atenção as estátuas das mulheres da família real. Relembram bem o poder, influência e proeminência pública destas mulheres, até porque a via feminina garantiu frequentemente a sucessão.
Ali também convém depor alguns mitos que os autores romanos teceram sobre elas, que vão da promiscuidade sexual ao envolvimento em assassínios para colocarem os filhos no trono (as histórias da trisavó de Nero, Lívia, da sua mãe Agripina, e da prima Messalina).
Diante da sóbria estátua de Messalina (17/20 A.C a 48 D.C), vestida como perfeita “matrona” e aninhando no colo o filho Britannicus como uma mãe protetora, há uma certa dificuldade em encaixar a imagem com o que se disse sobre a terceira mulher de Cláudio, das conspirações em que entrou aos 150 amantes que teve, a vida de Messalina foi um desvario a que Cláudio pôs termo, ordenando-lhe o suicídio.
Não longe de Messalina está uma miniatura de Agripina (15-16 a.C-59 d.C), talhada numa bonita pedra verde que nos caberia na palma da mão. As mulheres de César foram representadas em todos os materiais e tamanhos, mas as histórias que sobre elas se contam não diferem muito. A de Agripina é tão má ou pior do que a de Messalina. O que o vulgo sabe sobre a mãe de Nero foi que manobrou astutamente Cláudio até conseguir que o marido preterisse os filhos do casamento com Messalina e favorecesse Nero na sucessão ao trono. A seguir, Agripina livrou-se de Cláudio, envenenando-o com cogumelos. Uma relação incestuosa ter-se-ia seguido com o filho que, desejoso de se libertar do controle e ambição maternos, a terá mandado matar, cometendo um matricídio que até naquela dinastia destoou.
Há aqui outra magnífica estátua de Agripina, desta feita em ponto gigante e numa pedra negra que imita o brilho metálico do bronze, em contraste esplêndido com as estátuas de mármore branco que nos habituámos a ver. É uma estátua que terá levado meses a esculpir: uma peça dispendiosa, pertença da família imperial.
A história da vilipendiada Agripina merece ser revisitada. Agripina tinha 13 anos (idade em que as raparigas romanas do seu estatuto casavam) quando o tio-avô Tibério lhe arranjou o casamento com Cneu Domício Aenobarbo, pai de Nero. Cneu morre quando Nero tinha três anos e pouco depois Agripina parte para o exílio, por ter conspirado para a morte do irmão Calígula, deixando o filho confiado aos cuidados de uma tia.
Quando Cláudio sobe ao trono, Agripina regressa do exílio, mas é só após o suicídio de Messalina, que Cláudio se casa com ela, persuadindo um grupo de senadores de que o casamento entre tio e sobrinha devia ser autorizado no interesse público. Como bisneta de Augusto, Agripina era essencial a Cláudio para estabilizar o poder. Mas na sociedade romana, era considerado incesto um tio casar com uma sobrinha. Um decreto senatorial legitima a união e o casamento ocorre em 49 d.C. No ano seguinte, Cláudio adota Nero formalmente. E um ano mais tarde, em 51 d.C., Nero é simultaneamente declarado adulto, herdeiro e agraciado com o título de Princeps Iuventutis. A posição de Nero como sucessor de Cláudio consolida-se ainda mais em 53 d.C. pelo casamento com a sua filha, Claudia Octavia, a irmã de Britannicus.
A imagem das moedas imperiais em exibição serve para comprovarmos que, a partir do momento em que Nero é designado herdeiro, o seu retrato começou a receber mais destaque do que o dos filhos de Cláudio. Era essencial que ninguém duvidasse de que Nero seria o futuro imperador. As imagens de Nero e Britannicus juntos continuaram apenas em moedas cunhadas nas províncias.
E é assim que a exposição descarta mais uma tradição ou mito histórico: Agripina provavelmente não envenenou Cláudio. Ou dito de outro modo, Agripina não teria tido necessidade de envenenar Cláudio para que Nero subisse ao trono, visto que a sucessão do filho estava assegurada; Cláudio designara-o como herdeiro. Foi novamente Tácito, escritor da elite, que nos convenceu que Agripina matou Cláudio, relatando como os últimos meses de vida deste foram atribulados por disputas com a mulher sobre os avanços de Nero e Britannicus para alcançarem o trono. Agripina ficou com medo ao ouvir Cláudio murmurar enquanto estava bêbado que “era seu destino primeiro suportar os crimes de suas esposas e depois puni-las”. Os eventos estariam a avançar rapidamente e a escapar-lhe da mão: o costume ditava que Britannicus assumiria a toga e seria considerado um homem no início da primavera de 55 d.C. e Agripina teria interferido antes que fosse demasiado tarde. Com a morte de Cláudio em 54 d.C., a dois meses de Nero completar o 17.º aniversário, Agripina assegura que o trono do filho não será disputado.
A exposição desmente Tácito, demonstrando que Nero tinha sido preparado para a ascensão ao trono e que a transição após a morte de Cláudio não suscitou contestações. Nero tinha aliados no Senado e o apoio da Guarda Pretoriana, uma unidade militar de elite estacionada em Roma e estabelecida por Augusto.
Um Nero jovem e enérgico tinha tudo para os senadores acreditarem nele, esperarem que acabasse com os abusos anteriores e os respeitasse como Augusto fizera. “O povo tinha grandes expectativas para o reinado de Nero, que prometia a chegada de uma era de ouro”, lê-se neste momento da mostra histórica.
Das promessas de renovação à paranoia e às conspirações
É importante neste ponto voltar a Augusto (63 a.C- 14 d.C.), junto ao busto do fundador do Império, o único de memória impoluta, a quem coube personificar as virtudes republicanas. Augusto foi adotado na família Juliana pelo tio-avô, Júlio César (100 a.C – 44 d.C). Vitorioso de uma sangrenta guerra civil, Augusto inaugurou um período de paz e prosperidade oitenta anos antes de Nero subir ao poder. Estabeleceu também uma nova forma de governo a que chamou principado, apresentado como uma restauração da república anterior à guerra civil, mas que na realidade era uma monarquia. O principado conduziria a décadas de conflito entre o senado e a família imperial, obrigando à procura de compromissos institucionais, dada a ausência de regras claras, sobretudo no que diz respeito à sucessão imperial.
Foi este pano de fundo que Nero herdou. Infelizmente, o senado, a assembleia tradicional da aristocracia romana, essencial para o funcionamento formal do governo e a aprovação de leis, estaria quase sempre contra ele, tirando o período de graça inicial. Porquê? A tese aqui veiculada é que as expectativas e exigências que recaíam sobre o jovem governante eram elevadas, e que Nero lhes fugiu, enveredando por políticas que atraíram o povo, mas alienaram muitos membros da elite e em última análise colocaram o senado contra si.
Após o seu prematuro e trágico suicídio, a memória de Nero não foi imediatamente condenada. Mas no final ganharam os julgamentos dos autores de elite como Tácito, Suetónio e Cássio Dio, que apoiavam o poderoso senado, a quem não agradava Nero estar mais interessado nas artes do que em governar.
Havia também uma pendente questão financeira que o fez cair em desgraça junto à elite. Nero não arrecadou os triunfos militares dos líderes precedentes e as procissões militares, além de trazerem receitas para o império, eram uma celebração das vitórias, do poder e do prestígio de Roma.
É importante referir que uma revisão histórica como esta, com o selo do British Museum, não surge do nada. Tem por fundamento o trabalho de David Shotter, Professor Emérito da Universidade de Lancaster, autor de Nero Caesar Augustus: Emperor of Rome, publicado em 2008, que inaugura uma tendência.
Na esteira do livro, a exposição do British Museum sublinha que o reinado de Nero começou com grandes esperanças, esperando-se uma revigorante mudança face à época de Cláudio. Nero defraudou-as, revelando ser perfeitamente inadequado para a tarefa de governar Roma. A sua dependência da aprovação popular e o medo de potenciais rivais conduziram à cisão do Imperador com os senadores de Roma. A qualidade do governo deteriorou-se e Nero refugiou-se cada vez mais em interesses culturais e artísticos. Auto-indulgente e paranoico, entrou num círculo vicioso que o afastou dos súbditos e encorajou as conspirações que temia.
Um assassino opulento ou uma vítima de um tempo “diferente”?
Avancemos. A próxima sala é dedicada aos campos em que Nero governou bem. Vemos como reformou o sistema tributário, melhorou o abastecimento alimentar de Roma, interessou-se e ordenou a construção de obras de engenharia monumentais e inovadoras: umas termas públicas, um mercado central de comida (Macellum Magnum) um esplêndido anfiteatro e um circo para entretenimento popular. Familiarizamo-nos com os chamados “ludi” que incluíam lutas de gladiadores, corridas de bigas, caçadas, e representações teatrais.
Estas grandiosas construções granjearam a estima e admiração popular do Imperador, mas desagradaram à aristocracia e ao senado, não só porque agravavam a despesa pública, mas também porque lhe conferiam uma visibilidade inusitada. Os teatros e os circos não eram só espaços para diversão popular, as audiências podiam expressar ali a sua opinião e apelar diretamente para o governante. Havia ainda um código do decoro que proibia a elite de participar em atuações cénicas e jogos de gladiadores e que Nero violou sucessivamente, exibindo-se nas corridas de bigas, nas lutas de gladiadores de que era fã, ou no palco a que subia indiferenciadamente para representar ou mostrar os seus talentos musicais. De acordo com Suetónio, o imperador atuava como Orestes e Édipo, figuras míticas que cometeram matricídio e incesto, respetivamente. Nero também distribuía dinheiro e criou um festival quinquenal (Neronia).
Dizer que esta exposição glorifica Nero seria ir longe demais. Não se contesta aqui que o imperador assassinou a mãe, cinco anos após ela lhe ter valido na subida ao trono. Não se escusa o assassinato da primeira mulher, Otávia, “esposa aristocrática e virtuosa” (palavras de Tácito) que entediava Nero e que este odiava (ainda de acordo com Tácito e Suetónio), tentando em várias ocasiões estrangulá-la (diz Suetónio), tendo casos com uma liberta chamada Claudia Acte e depois com Poppaea Sabina. Poppaea Sabina é mais uma bonita imperatriz vilificada como promíscua e maliciosa cujo bonito busto aqui podemos admirar. Quando Poppaea ficou grávida do filho de Nero, Nero divorciou-se de Otávia, alegando a sua esterilidade, casando-se com aquela doze dias depois. Otávia foi executada ou obrigada a cometer suicídio, provocando alguma agitação em Roma.
Por fim, não se desmente que o grande palácio, Domus Aurea, o único dos que construiu e lhe sobreviveu, era extraordinariamente luxuoso. Em grande parte consistia em salas de jantar, onde os convidados esperavam um entretenimento faustoso e 600 pessoas compareciam semanalmente para um banquete.
O conservador Thorsten Opper desvaloriza porém os assassínios e o luxo, sublinhando que nos temos de despojar dos “preconceitos” de hoje, visto que assassinar parentes e viver de uma maneira opulenta estavam longe de ser atuações incomuns aos governantes romanos. Para o efeito, são-nos mostradas vilas aristocráticas que em termos de tamanho, estrutura e mobília seriam similarmente grandiosas e se espalhavam pelas províncias do Império. Salta à vista a imagem de um serviço em prata descoberto em Moregine, ao largo de Pompeia, que pertenceu a um romano muito rico, antes de ler a conclusão de que a Domus Aurea só rompeu com a tradição por ter sido erguida no coração de Roma.
Apesar da recusa de glorificação, a exposição pretende mostrar que a história foi injusta com Nero e que ele merece mais compreensão, tendo sido vítima da elite do seu tempo. Logo após a morte de Nero, uma procissão de pessoas afluíram ao seu túmulo para o cobrirem de flores, mostrando a sua popularidade. Mas a complexidade do tema é evidente. E a nota sobre o túmulo coberto de flores não deixa de entrar em contradição com a visita que fiz há anos à Domus Aurea.
O guia informou-nos que os romanos tinham soterrado o palácio às pazadas, logo após a morte do imperador. O palácio dourado, que havia arruinado as finanças do estado e se encontrava ainda incompleto à morte de Nero em 68 d.C, simbolizava o seu gosto pela opulência. Todo revestido a mármore, pedras preciosas, folha de ouro, madrepérola e marfim traansportados dos recônditos do Império, contava ainda com milhares de criados. Era um embaraço que urgia ser escondido e esquecido. Até porque haveria também uma crença generalizada entre cristãos e judeus de que Nero não morrera realmente, que surgiria da sepultura para aterrorizar ainda mais o mundo, e que radicaria no compreensível horror dos cristãos ao seu perseguidor. Foram camadas e camadas de terra que a partir do século XV, os romanos da Renascença se empenharam em remover para apreciar a arquitetura e a decoração da Domus Aurea, em particular os seus frescos, contando-se que Raphael e Michelangelo rastejaram até ao subsolo para o efeito.
O destino de um homem de quem ainda não se gosta
“Nero: o homem por detrás do mito” abstém-se de classificar Nero como populista, quando essa conclusão é evidente. No difícil braço de força com o senado, ele fez do povo seu aliado, como muitos líderes populistas de hoje. As transposições no tempo são perigosas, mas os recursos à disposição do poder não diferem em muito. O populismo é eterno. A encenação é algo que um populista sabe usar e abusar. A exposição aflora, sem aprofundar, o que Edward Champlain, Professor de Estudos Clássicos da Universidade de Princeton dissecou em “Nero”, um homem que, tendo-se percecionado como artista, usou de gestos teatrais e encenações para cuidadosamente urdir uma imagem de herói. Com um profundo entendimento da mitologia, e um astuto conhecimento do seu auditório, as representações que Nero fazia das tragédias gregas e dos intensos dramas psicológicos que encerram tinham propósitos políticos.
O julgamento feito pelos historiadores da Roma antiga é posto em causa sob pretexto de que pertenciam a uma elite que o detestava. Mas mesmo que tenham errado na atribuição do incêndio de Roma a Nero ou na forma como subiu ao trono, não se pode dizer que Tácito, Suetónio ou Dião Cássio estivessem errados em muitos outros relatos. E se os historiadores que viveram no seu tempo ou logo a seguir não conheciam o seu Imperador, quem o conheceria? Nós, que no século XXI, não estamos mergulhados na época e temos 2000 anos a afastarem-nos do homem? A predisposição para o revisionismo é perigosa.
Em “Anticristo”, o quarto volume da História das Origens do Cristianismo, o filósofo e historiador Ernest Renan escreve: “O nome de Nero foi encontrado, será a besta, Nero será o anticristo”. Para Renan, muito do Apocalipse de João é inspirado nos horrores dos massacres ordenados por Nero. E se o Anticristo é uma imagem que não ressoa no nosso tempo, o populista é certamente atual. Nero é um homem de quem ainda não se gosta.