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"A trabalhar com crianças aprendes a lidar com algo essencial no futebol: imprevistos": entrevista a Tiago Pinto, diretor desportivo da Roma

Moura Morta, a marca da Escola de Miragaia, a AG que mudou tudo, oito anos na Luz, Itália. Mourinho, CR7, Dybala, o Benfica. Presente na Roma, futuro no futebol. Uma (rara) entrevista com Tiago Pinto.

Onde estava um campo, encontram-se agora três. Um, aquele na horizontal que tem o melhor relvado com ajuda também de alguns toques sintéticos para que o campo natural alcance maior rendimento, conta com um ecrã grande para que José Mourinho consiga transmitir de forma mais imediata e sem ter de juntar os jogadores no auditório o que pretende da equipa no plano tático. Outro, na vertical, simula a relva natural do Olímpico de Roma que é partilhado com o rival Lazio. Mais ao fundo ainda, um terceiro conseguiu ainda aproveitar o espaço que sobrava do terreno para fazer uma área de trabalho para os guarda-redes, poupando a zona da área dos outros campos e permitindo outras condições a um treino específico que difere do resto. Numa imagem, várias mudanças. Assim foi evoluindo a Roma nos últimos dois anos de vida.

No verão de 2020, com o impacto criado pela pandemia a funcionar como último fôlego para um desejo que vinha de trás mas que se tornou mais alcançável em termos financeiros, o norte-americano Dan Friedkin comprou, através do Grupo Friedkin, a esmagadora parte do capital social do clube transalpino, concluindo dessa forma uma década com James Pallotta na liderança dos giallorossi num negócio que rondou os 600 milhões de euros por 86,6% mais uma oferta pública de compra obrigatória das restantes ações ordinárias. Foi também nessa altura que Tiago Pinto, diretor geral do futebol do Benfica após passagem de cinco anos pelas modalidades de pavilhão, começou a pensar de forma mais séria na possibilidade de ter uma primeira aventura no estrangeiro. Entre muitas entrevistas por Zoom até à final em Itália, o gestor de 38 anos foi o vencedor de uma corrida que seguiu moldes pouco habituais no futebol. Agora, faz dois anos no cargo.

Nascido numa pequena aldeia do concelho de Peso da Régua, Tiago Pinto construiu um trajeto com tanto de improvável como de ascensional. O futebol e o Benfica sempre foram uma presença constante na sua vida entre uma carreira como futebolista que não passou do primeiro ano nos seniores pela vida académica mas também por aquilo que não gostava de fazer jogando como ponta de lança – correr e pressionar. Aí, entre as mãos na cintura à espera da bola que tantas vezes levaram o pai a chamar à atenção, poupava-se ao trabalho; fora dos pelados ou relvados, transitava para a ponta oposta e é o que mais gosta de fazer. As pessoas mais próximas recordam sempre a sua veia de índio benfiquista mas explicam que só mesmo o tempo que investe nos projetos que tem à frente permitiu que alcançasse o sucesso que conseguiu até hoje. Um sucesso que, desde início, está vetado enquanto tema de conversa. Antes de olhar para o que ganhou, não esquece o que deixou de ganhar. Antes de pensar no que faz, reflete sobre o que tem ainda para fazer.

Depois da primeira grande vaga de jogadores nacionais a saírem para as principais ligas europeias que se começou a tornar frequente a partir dos anos 90 com Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, Fernando Couto, Vítor Baía e tantos outros, a que se seguiu o novo paradigma do técnico português no topo que teve José Mourinho como expoente máximo, também a nível de diretores desportivos começa a haver uma outra capacidade de implementação entre Antero Henrique, Luís Campos ou Tiago Pinto, olhando apenas para o top 5 das ligas europeias. Ponto comum? Dão poucas ou nenhumas entrevistas. Ponto ainda mais comum? Quando falam, raramente abordam o presente com toques de futuro. No caso do diretor desportivo da Roma, para se perceber o seu presente e o que pensa para o futuro há um trajeto no passado que explica tudo o resto.

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O dia em que agarrou no carro, saiu mais cedo do trabalho e fez de camisola de malha vermelha cerca de 600 quilómetros num dia para ter um par de minutos para falar numa Assembleia Geral do Benfica que lhe iria mudar a vida. A importância que as crianças com que trabalhou em Miragaia no âmbito do programa TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) ao longo de cinco anos teve para aprender a gerir e trabalhar grupos e pessoas. Os oito anos em que foi quase “obrigado” a crescer mais depressa do que todos os outros pelo andamento de uma locomotiva chamada Benfica entre futebol e as modalidades. O processo com mais de dez entrevistas até à última conversa em Itália com Dan Friedkin, empresário norte-americano com vários negócios milionários na venda automóvel, no cinema e na hotelaria que se tornou proprietário da Roma em 2020. A vida que leva em Trigoria, centro de treinos dos giallorossi que é quase uma segunda casa há dois anos, desde que assumiu o cargo nos romanos. Ao longo de uma década, Tiago Pinto deu apenas uma entrevista. Agora, quis assinalar a data numa conversa de fundo com o Observador.

Tiago Pinto cumpre esta quarta-feira dois anos como diretor desportivo da Roma, tendo conseguido a vitória na Liga Conferência na última época

Vamos até Moura Morta?
Sim, vamos lá…

O que é que ainda se recorda hoje de Moura Morta, quando passa no centro desportivo da Roma em Trigoria grande parte do seu tempo 38 anos depois?
Recordo-me de tudo, de tudo mesmo até porque ainda agora lá fui passar o Natal. É uma aldeia muito pequena do concelho de Peso da Régua. Se não me falha a memória, hoje deve ter umas 250 ou 300 pessoas recenseadas, mas se calhar vivem lá mesmo umas 150 se calhar. É uma aldeia muito pequena mas é lá que está a minha família, sobretudo os meus pais. O meu pai continua a trabalhar lá, a minha mãe também, tios, primos, a minha madrinha que é uma pessoa muito importante na minha família e educação.

Mas o Tiago que saiu de lá não é o mesmo…
Não, agora é diferente, um bocadinho diferente… Quando saí de lá tinha 17 anos, para ir para a faculdade no Porto. Já quando estudava lá até aos 17 tínhamos de ir para a Régua para ir para a escola, todos os dias tinha de fazer uma hora para ir e vir porque era tudo na cidade e aquilo é só uma aldeia… De qualquer forma, quando era pequenino vivia um bocadinho com a ânsia de sair, de ir para o Porto, de ir para Lisboa, de ir para o estrangeiro. Hoje em dia sinto-me mesmo muito bem quando regresso ali, vejo as coisas de uma forma diferente. Ensinaram-me muito os 17 anos que vivi ali até ir para a faculdade. A humildade, a capacidade de trabalho, as pessoas que estão habituadas a viver com muito pouco.

Chegou mesmo a trabalhar com o seu pai no verão, na serralharia. Ainda se recorda desses tempos?
Sim, recordo-me bem.

Ainda dava uma perninha se fosse preciso?
Sim, sim. O meu pai. Tive a felicidade de ter um pai e uma mãe que sofreram muito no início da vida para me criarem, depois a minha irmã já veio com um bocadinho mais de facilidades, se é que se pode dizer assim. Foram sempre muito importantes na minha educação e quando ia trabalhar com o meu pai não era por necessidade, era porque ele queria que soubesse o valor do trabalho. Obviamente que para mim não era fácil, com 12 ou 13 anos no verão queremos é andar a passear, a jogar futebol, estar com as amigas, isto e aquilo, mas tinha de andar a trabalhar com ele, a ficar todo sujo por causa do ferro… Depois aprendi a gostar de ajudar o meu pai, quando estava na faculdade era eu que lhe pedia na pausa do verão ir para lá.

Mas aí já era para ganhar uns trocos.
Pois, ele pagava-me, aí já era para ganhar uns trocos. [risos] Depois, claro que quando fui crescendo percebi melhor o que os meus pais fizeram por mim porque em muitos momentos foram aquelas pessoas que… Não diria pessoas duras mas exigentes comigo. Hoje, a pessoa que sou devo tudo a eles. Estou muito grato e ainda hoje se for preciso ajudo, não sei fazer muito mas alguma coisa sei fazer.

Pelo meio jogou também no Penaguião e no FC Fontelas.
É verdade.

É do jogar que vem a paixão do futebol ou mesmo que não tivesse jogado estava lá na mesma?
Não, a paixão vem da minha família. Uma das primeiras roupas que vesti foi o equipamento do Benfica, a primeira foi a roupa da madrinha e a segunda foi o equipamento. O futebol sempre foi algo muito presente em casa pelo meu pai e pelos meus tios. Jogando desde pequenino nos clubes da terra, e no Penaguião cheguei mesmo a ser treinado pelo Pedro Caixinha que fez carreira, fiquei com mais ligação ao jogo, mas a paixão tem muito mais a ver com o facto de ver futebol. Quando era pequenino até ouvíamos os relatos.

Só Benfica ou tudo?
Começou muito pelo Benfica porque o Benfica na minha casa é uma espécie de religião, mas o meu interesse generalizou-se. Em toda a minha vida foi sempre assim, qualquer que fosse a coisa que fizesse na escola ou na minha vida profissional, o futebol esteve sempre muito presente. Nacional, internacional. Lembro-me de quando era miúdo, talvez 12 ou 13 anos, quando começou a SportTV em Portugal, não tinha em casa e só havia num café. Numa aldeia como Moura Morta fazer dois quilómetros custa porque aquilo é tudo a subir, não há luz e fazia aquele percurso a meio da semana à noite para ver jogos da Liga dos Campeões ou da Liga espanhola. O interesse pelo futebol foi sempre para lá do Benfica, obviamente com o Benfica, enquanto religião lá em casa, a ter sempre destaque.

Tiago Pinto, aqui a festejar a vitória na Liga Conferência da Roma, recorda os tempos em que ia para o café à noite por ser o único local com SportTV

O Tiago Pinto jogador atuava em que posição? Defesa, médio?
Não, não, ponta de lança! Algumas vezes joguei também como médio ofensivo mas era mais ponta de lança. Mas era um miúdo com uns tiques de arrogância na forma de jogar, corria pouco e só queria marcar os golos. Aquele trabalho que os treinadores pedem aos pontas de lança de pressionar etc. não fazia nada disso.

Portanto, o Tiago jogador nas mãos do José Mourinho não ia correr bem.
Não ia não, não tinha hipótese nenhuma. Tinha algum jeito para marcar golos mas era muito preguiçoso, corria pouco. O meu pai dizia que quando ia ver os jogos, mesmo que marcasse golos, passava demasiado tempo com as mãos na cintura. [risos] O Tiago Pinto jogador não tinha hipótese nenhuma com Mourinho.

Quando deixa o futebol já é a pensar nos estudos?
Sim, aos 17 anos quando vou para a faculdade no Porto fazia parte da seleção universitária de futsal. E era uma coisa que jogava, muito no verão, mas não sentia a mesma paixão que sentia pelo futebol.

Não dá para ficar parado no futsal.
Pois, se calhar era por causa disso. [risos] Chegou a uma altura que não dava para conciliar. Aos 17 anos já estava nos seniores do Fontelas mas era complicado fazer tudo. Estar na faculdade durante a semana, fazer bem o meu trabalho, jogar nessa seleção à quinta no Porto ou em Braga ou onde quer que fosse, na sexta ir a correr para treinar e jogar depois ao fim de semana. Não dava, tive de deixar o futebol de 11.

"Tinha algum jeito para marcar golos mas era muito preguiçoso, corria pouco... O meu pai dizia que quando ia ver os jogos, mesmo que marcasse golos, passava demasiado tempo com as mãos na cintura... [risos] O Tiago Pinto jogador não tinha hipótese nenhuma com Mourinho..."

Como foram os tempos na faculdade? E como é que acompanhava o futebol nessa fase?
O futebol foi sempre uma constante. Quando estava na faculdade comecei a ser mais crescido, a ter capacidade de me organizar. Passei a ter lugar cativo no Estádio da Luz, ia lá ver jogos apesar de estudar longe, como vivia no Porto via também jogos do Boavista quando eram no Bessa, através da televisão fui sempre seguindo todos, tendo as minhas equipas preferidas. O Manchester United vi 60% ou 70% dos jogos nos últimos dez ou 15 anos, o Barcelona a mesma coisa. Foi uma presença constante, depois os amigos da faculdade também têm em comum esses gostos. E ali era quase tudo do FC Porto, tinha alguns amigos benfiquistas mas a maioria é tudo adepto do FC Porto.

Há aqui um ponto importante também, para quem vive longe: o Campeonato de 2005, que quebra um jejum de 11 anos do Benfica. Como é que viveu essa festa? E como via então o Benfica?
A minha primeira grande festa ainda foi aquele Campeonato de 1993/94, que o Benfica faz o último jogo no Bessa. Fui com o meu pai. Até perdemos com o Boavista mas estava tudo resolvido e houve invasão de campo no final. Nessa época levou-me a Guimarães e ao Bessa. Em 2005 estava na faculdade no Porto e já é um Campeonato que vivi com um nível de ansiedade e envolvimento muito grandes. Fui ver o jogo a Vila do Conde que até perdemos no final com um golo do Miguelito, aquele com o Sporting em casa com o golo do Luisão no final e no Bessa, a última jornada que até empatámos.

Luís Filipe Vieira viria a admitir que foi uma vitória que chegou antes do tempo.
Mais tarde percebi o que o presidente quis dizer, que o título talvez não tenha vindo na altura certa, mas um miúdo de 17 ou 18 que só tinha visto o Benfica a ganhar 11 anos antes, que vivia no Porto. Foi espectacular, ainda para mais com a possibilidade de ir ver os jogos, de seguir a equipa. Lembro-me desse Campeonato, entrava o Mantorras, fazíamos um golinho e o último jogo vai ficar sempre comigo e com o meu pai.

O Bessa era quase uma mini Luz nesse dia.
Era mesmo. Há uma história gira porque o jogo do FC Porto nesse dia acaba mais cedo, o Benfica é campeão, o José Veiga e o Álvaro Magalhães viram-se no banco para os adeptos a fazer a festa, o meu pai diz-me que o Benfica era campeão e eu só dizia com a ansiedade e os nervos ‘Cala-te, não digas isso que estás a dar azar, o jogo ainda não acabou!’. Estava empatado, não sabia, mas afinal estava feito.

O jogador do Benfica, Carlos Nicolia (C) festeja o seu golo contra o FC Porto durante a partida de Hoquei em Patins no Pavilhão da Luz em Lisboa, 25 de junho de 2022. TIAGO PETINGA/LUSA

Tiago Pinto ainda mantém relação com vários atletas das modalidades, um deles com uma amizade mais profunda: o hoquista argentino Carlos Nicolía

TIAGO PETINGA/LUSA

Há depois mais cinco anos sem títulos no Benfica, chega o Jorge Jesus campeão em 2010 com uma equipa que tinha Aimar, Di María, Saviola ou Ramires e dois anos depois surge o Tiago Pinto pela primeira vez em público na Assembleia Geral. O que é que se recorda desse dia?
Recordo tudo, tudo. Podia ser fanático mas era um seguidor informado, sabia o que se passava no futebol e nas modalidades. Isto acontece na época em que o Benfica perde tudo. Estive na final da Taça de Portugal com o V. Guimarães, estive na final da Liga Europa em Amesterdão com o Chelsea… Foi um momento conturbado. Sempre fui uma pessoa com autoconfiança e o Benfica sempre deu oportunidade aos sócios de falarem, enquanto clube democrático. Falei com a minha mulher da altura a dizer: ‘Não consigo estar calado, tenho de dizer o que penso’. Já trabalhava mas decidi arranjar tempo para ir a Lisboa assistir à Assembleia Geral. No final, falei. Tinha um discurso preparado mas era algo muito emocional, muito meu, se calhar até fora da minha realidade. Quando estamos fora não conhecemos as coisas por completo. Houve algo que ficou evidente para todos, incluindo presidente: o que disse, saiu do coração. Não conhecia ninguém, não tinha interesses nenhuns, não sabia o que era poder ou oposição. Era um adepto, sócio. Foi um momento marcante da minha vida. Se calhar tive sorte, tenho de admitir, e a partir daí é uma história diferente que se começa a escrever.

Nunca teve receio que alguém se virasse a si, por exemplo? É que os ambientes das Assembleias Gerais às vezes podem tornar-se mais complicados, o que não é normal é receber o contacto do presidente do Benfica no final.
Nunca pensei nisso porque, independentemente de se criar confusão, sempre senti o Benfica como um clube democrático e fui sempre habituado assim, em casa também. Com respeito, digo sempre o que penso. Não sou pessoa de me amedrontar. Naquela altura tinha uma tristeza tão grande dentro de mim por termos perdido. Até o Ricardo Araújo Pereira já falou disso, às vezes as pessoas gozam que os benfiquistas são demasiado fanáticos mas não foi fácil lidar com uma época em que se perde tudo aos 90+2′ numa semana e meia. Estás quase a tocar o céu e depois vais ao chão, ao inferno. Naquela altura foi a forma que tinha para me expressar e mostrar que achava o que estava a acontecer no clube. Na minha ingenuidade, achei que ia dar um contributo para o clube. Nunca pensei que me pudessem chamar para o que quer que fosse nem pensava nisso. Em tantos anos de Assembleias Gerais, não há muitas histórias assim.

Costuma haver até ao contrário…
Sim, ao contrário. Fui com essa quase ingenuidade dizer o que sentia e tentar ajudar no que fosse possível. Foi esse o espírito que levei nesse dia para a Assembleia Geral.

"[Naquela Assembleia Geral] houve algo que ficou evidente para todos, incluindo presidente: o que disse, saiu do coração. Não conhecia ninguém, não tinha interesses nenhuns, não sabia o que era poder ou oposição. Era um adepto, sócio. Foi um momento marcante da minha vida. Se calhar tive sorte, tenho de admitir, e a partir daí é uma história diferente que se começa a escrever..."

O sim não foi imediato a Luís Filipe Vieira mas através do seu blogue foi percebendo que havia um outro lado na parte do desporto que são as críticas, o apontar de dedo, aquele ‘Já te estás a vender’ etc.? Isso de alguma forma demoveu-o?
Não dou muitas entrevistas mas é mesmo a primeira vez que falo sobre isso. Foi um período muito difícil para mim. Fiz sempre tudo com a melhor das intenções e a minha paixão pelo Benfica faz parte da minha identidade, mesmo na minha família e amigos às vezes é difícil algumas pessoas perceberem. Se me encontrar na rua e perguntar três traços que me identifiquem, se calhar digo primeiro benfiquista e depois português. Só achava que estava a fazer algo bom para o clube, a dar opinião. Seis ou sete meses depois comecei a trabalhar no Benfica, era um sonho que tinha. Deixei a minha vida toda, deixei a minha mulher no Porto porque era uma missão, e depois ver que algumas pessoas achavam que tinha vendido as minhas ideias e perdido a espontaneidade. No início custou-me muito, depois fui percebendo as pessoas que faziam esses comentários. A blogosfera é um mundo agressivo em que as pessoas podem dizer e escrever o que querem. Admito que na altura me custou porque fui sempre uma pessoa desinteressada em relação ao Benfica, nunca fiz nada a pensar nisso. O meu sonho, esse sim era o meu sonho, nunca vai ser concretizado.

Qual era?
Ser jogador do Benfica! Esse é que era o meu sonho, tudo o que faça ou fiz pelo Benfica foi sempre no sentido de ajudar e não de me promover. Quando olho para trás, quantas pessoas tiveram essa oportunidade que eu tive e a exposição que eu tive? Muito poucas. Estive cinco anos nas modalidades, fizemos algumas das melhores épocas mas nunca dei uma entrevista. No futebol em três anos e meio ganhámos, perdemos, tivemos coisas boas e más e dei uma entrevista. Nunca quis colocar-me à frente dos verdadeiros interesses do Benfica. Tinha um acordo com a minha ex-mulher em que se chegasse a casa a dizer ‘Eu ganhei qualquer coisa’, tinha obrigação de me chamar à atenção e de me obrigar a sair. Se tivesse esse discurso, era sinal que me tinha esquecido do porquê de ter ido para o Benfica. Sempre vivi com esse espírito de missão. Custou-me aí algumas coisas mas foi aí que comecei a aprender que quem quer andar neste mundo não pode estar a ler ou a ligar ao que dizem nesses meios.

Antes de sair do Benfica, tem um pormenor que é escrever uma carta personalizada a cada uma das crianças que acompanhava no Miragaia. Porquê? Ainda faz isso?
Aquela experiência do ponto de vista humano foi incrível. Trabalhei cinco anos no agrupamento de escolas de Miragaia, estamos a falar de uma escola que tinha mesmo problemas sociais, pessoas que precisavam de ajuda. Além do meu trabalho, tantas vezes cheguei a casa a pensar ‘Podia ser pai de uma das crianças e o meu contributo era trazer essa criança para minha casa’. No momento em que tenho oportunidade e posso ir para o Benfica, senti que era importante para a minha carreira e para mim como pessoa escrever essas cartas. Senti que os estava quase a abandonar, durante cinco anos senti que fui importante para aqueles jovens e famílias.

"Trabalhei cinco anos no agrupamento de escolas de Miragaia, estamos a falar de uma escola que tinha mesmo problemas sociais, pessoas que precisavam de ajuda. Além do meu trabalho, tantas vezes cheguei a casa a pensar 'Podia ser pai de uma das crianças e o meu contributo era trazer essa criança para minha casa'. No momento em que tenho oportunidade e posso ir para o Benfica, senti que os estava quase a abandonar, durante cinco anos senti que fui importante para aqueles jovens e famílias."

Ainda se lembra quantas cartas foram? 150, 200? Fez o mesmo antes de vir para Roma?
Não me lembro se foram 150 ou 200 cartas, mas escrevi cartas também no sentido de motivar para a vida, para o percurso que iam ter. Com o tempo perde-se contacto mas dois dos meus grandes amigos, o Eurico e a Marina, ainda trabalham nessa escola e alguns destes miúdos conseguimos acompanhar onde estão. Um que apesar das dificuldades se tornou piloto, outra que foi jogadora profissional de futsal, outra que emigrou para a Suíça mas que a cada passo me manda mensagem. Percebi o que são realmente problemas na vida. Depois, sempre fui uma pessoa de relações. Paguei caro às vezes a ideia de que era muito jovem e podia ter relações muito próximas com os jogadores, mas o tempo veio a provar que sempre soube manter as devidas distâncias. Cartas não mas mensagens ainda enviei quando saí do Benfica, gosto de escrever e fiz isso em muitos casos nesse momento. Ainda hoje olho para as modalidades e continuo a manter contacto.

Ainda continua a seguir e a ver os jogos?
Sim, tento e sou amigo de alguns. O [Carlos] Nicolía é um caso diferente porque é um amigo que conhece a minha família, é de família, mas do Paulo Moreno ao Tomás Barroso e ao Betinho e a tantos outros, tenho relações ainda porque no final é isso que fica. Hoje em dia vejo poucos jogos pela vida que tenho aqui, acompanho resultados e tenho sempre notificações para isso por ter amigos meus ali e querer que estejam bem, a fazer as coisas bem, mas quando vim para Itália e Roma decidi que tinha de me adaptar a esta realidade. Todos os dias, nos primeiros três ou quatro meses, às 7h45 ou 8h da manhã, tinha 30 minutos a aprender italiano com o Cláudio [tradutor do clube]. Em casa não vejo televisão portuguesa, só italiana. Não acompanho como antigamente mas faço questão que seja assim para me obrigar a ouvir as coisas em italiano. Os filmes, o futebol da Sky… tudo italiano. Além da Serie A, vejo mais Serie B em Itália, Premier League, Liga espanhola e francesa do que a de Portugal porque não acompanham. Quando posso, vejo, mas pela minha vontade de estar totalmente imbuído do espírito e da cultura italiana não tenho esse hábito.

Tiago Pinto passou das modalidades para o futebol em 2017 depois de uma Assembleia Geral em que pela primeira vez tomou a palavra após viajar desde o Porto

Filipe Amorim

Em 2017 passa das modalidades para o futebol do Benfica. Qual foi a importância do contacto que tinha tido antes no Miragaia para gerir pessoas, balneários, egos ou equipas e o que é a presença pelas modalidades ajudou na entrada para o mundo do futebol? Há um bocadinho a ideia de que as modalidades não têm nada a ver com o futebol, têm quase uma ponta de carolice e proximidade aos adeptos que o futebol não tem.
Primeiro, quando trabalhas com crianças aprendes a lidar com algo essencial no futebol de alto nível: os imprevistos. Com uma criança não podes pensar que tem um problema, defines uma estratégia e até ao final do ano resulta porque no dia a seguir as coisas mudaram. Aquela experiência na escola e num limite tão grande que eram os problemas daquelas crianças deu-me capacidade. Acho que leio bem as pessoas e aquela escola ajudou-me muito e as crianças ajudaram-me com a parte do imprevisto.

E as modalidades?
As modalidades em Portugal não são levadas a sério como mereciam, às vezes são até desvalorizadas, mas o nível do profissionalismo que se vive é altíssimo. Não digo que seja superior ao do futebol para não criar confusões mas é altíssimo. Há muitas pessoas que trabalham nas estruturas do futebol de Benfica, FC Porto ou Sporting que vieram das modalidades, sinal que se trabalha bem lá. É uma realidade muito diferente. A transição para mim foi difícil, num período muito difícil da história do Benfica como se veria depois e não é fácil alguém de 32 anos, após cinco anos e meio de modalidades, chegar ao futebol do Benfica com os três anos que viriam a acontecer. Além dos conceitos técnicos e tanta coisa que aprendi, houve algo que me fez tornar melhor gestor: tinha cinco modalidades que eram culturalmente diferentes. Dou sempre este exemplo: entravas no autocarro destas modalidades e só pela playlist conseguia-se adivinhar a modalidade porque as músicas que o futsal houve não tem nada a ver com as do voleibol, as rotinas de um jogador de andebol ou de basquetebol são diferentes. Enriqueceu-me muito. Diariamente contactava com cinco treinadores diferentes, cinco formas de estar diferentes. Fui muito, muito feliz nas modalidades.

Mais nas modalidades do que no futebol? Os desafios são diferentes mas enquanto profissional…
Era mais fácil, ninguém me conhecia, não tinha tanta pressão. E há uma coisa importante, a carolice. Nas modalidades, o espírito desportivo ainda é o mais importante e nesse sentido todas as relações são muito mais naturais, não são tão fake. Havia muita gente que eram os seccionistas que não recebiam nada depois, uns bilhetes só para ver os jogos e pouco mais. Isto é aquele espírito de carolice.

É aqui que fazemos uma espécie de interrupção na conversa para explicar o que é carolice, uma das poucas palavras com a qual o tradutor não está completamente familiarizado. Conversa puxa conversa, vários exemplos da tal carolice em Portugal e nos pavilhões, e o facto de estarmos a falar das modalidades leva-nos para tudo o que se passou após o trágico desaparecimento do antigo guarda-redes internacional de andebol Alfredo Quintana, bem plasmado agora num documentário que mostra como o número 1 era tão importante, tão respeitado e tão próximo de tanta gente, dos companheiros de clube e Seleção a muitos outros que nessa altura até poderiam ser adversários no Campeonato mas amigos com ou sem Seleção.

– Já estava aqui em Roma e senti aquilo de uma forma muito forte mesmo. O Quintana, além de ser o melhor guarda-redes que vi jogar em Portugal, como pessoa e como desportista era um exemplo para toda a gente. Às vezes há aquela tendência de falar bem quando alguém morre mas era espectacular. Com os guarda-redes do Benfica, sobretudo com os miúdos, era uma referência, como atleta, como desportista. Nunca se viu aquele rapaz em confusões. Foi um momento chocante e ainda bem que os outros clubes fizeram tanta coisa que homenagear o Alfredo. Ali as relações são mais próximas, sabemos que apesar da rivalidade o mercado é tão pequeno que se não houver união não há hipóteses de fazer crescer o mercado.

No futebol substituiu também alguém com muitos anos no Benfica, o Lourenço Pereira Coelho. Foi mais difícil por isso, por ter de trabalhar com Domingos Soares de Oliveira que também tinha visado em 2012 ou um Rui Costa que era um símbolo?
O Rui foi o único que não foi visado nessa altura… [risos]

"Houve um momento nos primeiros meses em que toda a gente que me via dava os parabéns, elogiava e pensava para mim 'Ninguém sonha como me estou a sentir'. O início foi muito difícil. Vinha de uma realidade nas modalidades em que tinha as coisas moldadas à minha imagem e de um momento para o outro mudo para o futebol a substituir o Lourenço [Pereira Coelho], que tinha 11, 12 ou 13 anos de Benfica..."

Como é que conseguiu gerir isto tudo?
A primeira coisa que devo dizer é que houve um momento nos primeiros meses em que toda a gente que me via dava os parabéns, elogiava e pensava para mim ‘Ninguém sonha como me estou a sentir’. O início foi muito difícil. Vinha de uma realidade nas modalidades em que tinha as coisas moldadas à minha imagem e de um momento para o outro mudo para o futebol a substituir o Lourenço que tinha 11, 12 ou 13 anos de Benfica. Com o passar do tempo acumulei funções porque fazia muito trabalho de mercado com o presidente e com o Rui [Costa], coisa que os diretores gerais antes não faziam. Num período muito particular também, com a história dos emails, a confusão toda em torno do clube. Tive de crescer muito rápido, ninguém pode dizer que aos 32 anos está preparado para ajudar a levar um barco como aqueles. Depois de uns meses difíceis, as coisas foram correndo bem. Com o Rui, apesar de depois ter construído uma boa relação de amizade com ele, é impossível, mesmo que ele te dê abertura para ires almoçares ou rires. É sempre o Rui Costa. Quando era miúdo, quando jogava naquelas equipas, uma vez o Rui jogou com uma fita branca no joelho devido a umas tendinites e eu fazia o mesmo. Também aí para mim no início não era fácil gerir tudo isto mas olhando para trás me fez crescer muito e as coisas correram relativamente bem.

As infraestruturas no Seixal evoluem tal como se vê agora aqui na Roma, há o projeto do Elite Player Group que dá resultados. Isso é conhecido. Mas como era o resto? Como é que é chegar e lidar com o mercado no futebol, que apesar de tudo é diferente?
O presidente começou a confiar em mim porque fazia o mercado das modalidades. Os valores são obviamente diferentes mas o processo em si, tendo a experiência de fazer no Benfica e na Roma, não muda muito. Os montantes sim, os contratos são diferentes, a complexidade e o mediatismo também, mas sabia que tinha feito um grande trabalho nas modalidades.

Era o Tiago que definia os reforços nas modalidades?
Não, não era assim. O que fazíamos era cada modalidade ter um treinador e um team manager, eu não podia ter a veleidade de achar que percebia tudo de todas as modalidades embora seguisse muito como adepto antes, e fazíamos um trabalho de equipa para tentar colmatar aquilo que se entendiam ser as carências. Cinco modalidades, cinco anos, quantas negociações não fazes? Podia pensar-se que era um bicho de sete cabeças no futebol mas, falando por mim… O meu avô às vezes dizia-me quando via na televisão dez ou 15 milhões era dinheiro que não existia porque 15 milhões em notas não cabem numa sala. Era uma brincadeira mas… Quando o Nicolía veio para o hóquei, não foi assim tão diferente do que o Weigl para o Benfica ou o Tammy [Abraham] para a Roma. Tudo o resto é diferente, valores, impacto, imprensa, mas negociar é sempre igual. No futebol precisei de algum tempo para me adaptar.

Os agentes também são diferentes.
Os agentes são diferentes, as polémicas são diferentes mas a lógica e a dinâmica da negociação, em que é preciso conhecer quem está do outro lado, os mind games, essa parte é toda diferente.

Tiago Pinto admite que teve dois momentos complicados a nível pessoal no Benfica: o processo de entrada e os primeiros meses no futebol

Filipe Amorim / Global Imagens

O que é que gostou mais ou menos dessa passagem pelo futebol do Benfica?
Há três coisas que gostei muito. Uma, que parece incrível, mas com tanta dificuldade e com tantos problemas que tivemos criámos um grupo de pessoas e profissionais que se tornaram os melhores amigos da minha vida. Hoje em dia, quando olho para trás, sei que será muito difícil encontrar um caminho profissional que me dê essa oportunidade de encontrar os melhores amigos e esse foi um lado profissional e pessoal que me enriqueceu, com pessoas mais de bastidores, da estrutura. Depois, a questão dos miúdos da formação que me marcou muito, a possibilidade de sermos campeões com o Bruno Lage com sete, oito, nove jogadores da formação na equipa principal, como Rúben Dias, Ferro, Florentino, João Félix, a serem titulares. Identificava-me muito com aquele processo. Podem chamar-me maluco, que era um romântico, mas era uma coisa que tinha muito significado para mim. Quando vejo o Jota a fazer bem no Celtic ou o Tino que voltou e está a jogar muito bem, a carreira do Rúben e do João. Marcou-me muito. Por fim, construí também grandes relações com os treinadores que ainda hoje mantenho, principalmente com o Bruno [Lage] e com o Rui [Vitória], e são coisas que também levo. Aprendi com eles.

E as coisas negativas?
São as coisas inerentes ao Benfica. Uma derrota no Benfica custa sempre muito. Posso dizer que quando fomos campeões, e obviamente que ser campeão uma vez em três anos é muito pouco independentemente do período em que estávamos, não estava muito feliz, estava aliviado. Quem vive assim, quando ganhas sentes um alívio, quando perdes sentes culpa. A pressão para mim próprio é muito grande e tive dificuldades em gerir. Não termos ganho mais vezes é algo do qual não me consigo libertar mas faz parte do futebol e do desporto. Quando olho para trás, que ganhámos com o Bruno Lage mas depois a seguir perdemos. Acreditava mesmo naquele projeto, podem chamar-me maluco e utópico mas acreditava mesmo que o Benfica tinha a melhor academia do mundo, que tinha imenso talento e que devia fazer tudo para reter mais esse talento. Depois houve a questão dos emails. Pessoalmente ainda é muito difícil falar sobre isso porque desgastou-nos muito como profissionais, como pessoas. Não sabíamos bem de onde vinha, aconteceu muita coisa no meio que desconheço, como aparecem e são divulgados sem ninguém fazer nada. Mexeu tanto connosco que prefiro não falar, mas gerir uma equipa naquele ambiente foi desafiante e desgastante, que também fez crescer e aprender muita coisa, mas que não desejo a ninguém.

Agora é apenas um adepto. Como é que viu esta derrota do Benfica em Braga, a primeira da época, e o arranque com Roger Schmidt onde a equipa esteve quase 30 jogos sem perder?
O Benfica está a fazer uma época extraordinária, está a jogar muito bem. Espero que esta derrota não afete. Toda a gente tem de ter um bocadinho de calma e paciência. Nós no Benfica, como adeptos, somos sempre muito exigentes e às vezes quando as coisas correm mal somos os primeiros a criar um bocadinho de confusão. Todos os que estão, obviamente com treinador e presidente em maior destaque, estão seguramente a fazer um grande trabalho. Os resultados do Benfica no Campeonato e na Champions falam por si. Para além dos resultados, há a qualidade do jogo. Aquilo que eu quero como adepto é que ganhem já o próximo jogo, de resto tenho aqui tanta coisa para me preocupar na Roma.

Foi no verão de 2020 que começou uma versão mais Tiago Pinto diretor desportivo profissional e que estaria aberto a outros desafios?
Sim. Hoje em dia a minha relação com o Benfica é meramente de adepto, vejo os resultados, não consigo seguir jogos pelo que faço e a única coisa que tenho a certeza é que quero que o Benfica ganhe para ter a minha família toda contente. Falo com prazer da minha história como benfiquista, apenas isso. Em tudo na vida, optei sempre por um perfil de pessoa que trabalha muito e fala pouco porque qualquer coisa que pudesse dizer poderia abrir um problema mas que não fosse o caso. Não quero nada disso, nunca. Sobre mim, é claro que quando se começa a ter contacto com outros clubes europeus e mundiais, empresários etc… Comecei a sentir que era algo que queria fazer na minha carreira, sair de Portugal, colocar-me à prova indo para o estrangeiro. Nunca fiz nada para que isso acontecesse, mas claramente estava na minha cabeça seguir uma carreira internacional. Recebi um ou outro contacto antes da Roma, mas quando aparece a situação da Roma e no momento em que surgiu optei por sair. Tinha isso na minha cabeça.

"Comecei a sentir que era algo que queria fazer na minha carreira, sair de Portugal, colocar-me à prova indo para o estrangeiro. Nunca fiz nada para que isso acontecesse mas claramente estava na minha cabeça seguir uma carreira internacional. Recebi um ou outro contacto antes da Roma mas quando aparece a situação da Roma e no momento em que surgiu optei por sair. Tinha isso na minha cabeça."

A Roma aparece depois de uma primeira conversa que se transformam em várias.
Sim, começou com o Charles Gould, dono de uma empresa de head hunting a quem os donos da Roma confiaram a tarefa de ajudar a escolher um diretor desportivo. O trabalho dele era basicamente pôr nomes em cima da mesa e fazer um processo de seleção. Foram muitas conversas, com ele e com os donos. Depois num número que não sei qual era, escolheram-me a mim. Ou os outros todos recusaram. [risos] Não, estou a brincar. Escolheram-me a mim no final e foi importante a forma como tudo aconteceu.

Nunca teve receio? Nunca tinha saído de Portugal, de repente recebe um email, um contacto. Teve dúvidas se seria mesmo assim?
No início sim, achei que não era nada. Depois, quando começa o processo, quando há reuniões, encontros, motivou-me só pelo próprio processo. Também te enriquece passar por um processo assim e gostei disso, além de ser o escolhido.

Quantas horas foram de entrevistas?
Ui, não sei, não me lembro. Fizemos umas 12 ou 13 entrevistas, quase tudo por Zoom, só mais tarde no final do processo é que houve uma conversa pessoal com os donos e é aí que sinto que efetivamente poderia ser eu o escolhido.

Há o processo, a Roma, a Serie A. O que é que pesou mais para aceitar este projeto?
Na altura, a forma como chegaram a mim foi algo que me aliciou. Sou um bocadinho por mim, gosto de fazer as coisas por mim mesmo. O facto de ser um processo de recrutamento normal em que alguém mete numa folha Excel 15 ou 20 nomes e depois tenho de fazer o trabalho por mim mesmo foi algo que me motivou. Não ia para um sítio porque não sei quem aconselhou etc., o processo em si motivou-me logo. Quando comecei a falar com os donos, percebi uma visão que me motivava. A Roma era um gigante adormecido, depois termos de conciliar o projeto desportivo com a questão financeira que era difícil, o facto de acharem que era a pessoa certa para colocar a formação no centro do projeto, as ideias que tinham para o clube, a sua própria forma de ser. Os donos da Roma são boas pessoas, que têm boas ideias, que não são do futebol mas querem deixar uma boa marca no clube e na cidade. Fui convencido pelos donos, pelo projeto, pelas ideias e havia também a minha ambição de assumir uma carreira internacional. A principal razão foi o alinhamento com os donos.

Quando chegou, foi tal e qual como tinham falado?
Claro que quando estás fora e começas a imaginar que vais para algum lado, é normal que se subestime as dificuldades e se enalteça as coisas boas. A realidade depois é uma coisa diferente. Tem sido duro o trabalho aqui, a tarefa era grande, depois apanhámos o período Covid que nos debilitou ainda mais em termos financeiros. Do ponto de vista do projeto sim, estamos a fazer as coisas bem. Vou fazer dois anos aqui no dia 4. Se me dissessem a 4 de janeiro de 2021 que tinha feito tudo isto até 2023 tínhamos feito tanta coisa, diria que era impossível. Mas ainda temos muito para fazer.

Ainda no início, pelo que percebo.
Sim, não faltam exemplos disso como o Liverpool do Klopp ou o Manchester City do Guardiola quando começou. É preciso tempo. Há coisas que só mesmo com o tempo ganham forma, nós estamos a construir as bases. Mesmo que estejamos seguros da estratégia, se ao fim de semana não aparecer a vitória as coisas tremem um bocadinho mas, apesar dos nomes, os donos têm ideias claras e estão no caminho certo. Todo o desenvolvimento das instalações, a aposta na formação, o trabalho do ponto de vista financeiro para o clube ser mais sustentável. No futuro vamos ser um clube vencedor.

Temos exemplos diferentes de proprietários noutros clubes. Os donos do Liverpool, por exemplo, sempre quiseram manter a parte mais histórica, os adeptos do Manchester United queixam-se por essa mesma razão. Esta gestão é mais próxima do Liverpool?
Os nossos donos são muito, muito respeitadores do que é o ADN, a imagem e a marca da Roma. A recuperação que eles fizeram do próprio símbolo, o símbolo antigo. Isso é tudo evidente. Não é o típico dono que vem, quer fazer coisas e vende ou o que tem visão mercantilista. Respeitam a história e o ADN do clube.

"Mandei mensagem ao Valdir [Cardoso, que trabalha com Mourinho] meio a brincar depois de ter visto no Twitter que tinha sido despedido do Tottenham, porque achava que não era possível. Daquela mensagem até assinar contrato foram 14 dias, por isso não foi um processo nada complicado. As vontades e os perfis conjugaram-se muito. Se calhar quem está de fora pensa que foi difícil mas o facto de termos abordado logo após a demissão fez sentir que queríamos e foi um processo bastante emocional, rápido, que conseguimos manter em segredo de toda a gente."

A primeira grande decisão desportiva foi a contratação de José Mourinho?
Até hoje, foi a maior decisão. Um treinador e um líder, como ele mudou por completo aquilo que é o nosso projeto, não há dúvidas sobre isso. Foi a decisão mais impactante daquilo que foram estes dois anos aqui.

E como é que foi esse processo? Fácil, à primeira?
Foi uma coisa até bastante emotiva. Mandei mensagem ao Valdir [Cardoso, que trabalha com o técnico] meio a brincar depois de ter visto no Twitter que tinha sido despedido do Tottenham, porque achava que não era possível. Daquela mensagem até assinar contrato foram 14 dias, por isso não foi um processo nada complicado. As vontades e os perfis conjugaram-se muito, ele também é uma pessoa emocional, que compreendeu que aqui ia ter um espaço importante e tem sido uma experiência muito boa para nós enquanto clube e para ele como treinador. Se calhar quem está de fora pensa que foi difícil, mas o facto de o termos abordado logo após a demissão fez sentir que o queríamos e foi um processo bastante emocional, rápido, que conseguimos manter em segredo de toda a gente. Quando fizemos o comunicado às 3h15 do dia 4 de maio foi espectacular porque ninguém estava à espera. Tenho muito orgulho de ter participado nesse processo.

É aquilo que já tinha ouvido falar dele ou é algo mais do que pensava?
Como portugueses sabemos tudo e mais alguma coisa do Mourinho, não sabemos é se é verdade aquilo tudo. Os livros, as reportagens, o que as pessoas dizem. Claro que no início não é fácil estar diariamente com um dos melhores treinadores da história do futebol, mas foi uma surpresa positiva, sinceramente. Apesar de tudo o que se conhece e é público, no dia a dia há um lado pessoal e é uma aprendizagem constante além de surpresa positiva.

Diretor desportivo da Roma admite que contratação de José Mourinho foi o grande "golpe" que teve ao longo de dois anos. "Desde a primeira mensagem após sair do Tottenham a assinar foram 14 dias", diz

Foi mais importante neste trajeto da Roma até aqui acabar a época a ganhar uma Liga Conferência ou ter depois uma pré-temporada com Dybala a juntar milhares adeptos na apresentação além de Wijnaldum, Matic ou Belotti? As pessoas ganharam uma outra esperança sobre aquilo que pode ser a Roma?
Não há dúvidas de que ganhar é mais importante. Durante o mercado conseguimos trazer jogadores importantes, como os que referiu. Apesar das dificuldades económicas que temos para fazer cumprir o settlement agreement que assinámos com a UEFA, acabámos por conseguir esses jogadores importantes, mas obviamente que, no final, o que interessa é se consegues ou não atingir os objetivos. A vitória na Conference League foi uma coisa efetivamente muito bonita. Foi bom, acho que trouxe uma vida nova ao clube. A confiança é outra, ver a cidade como nós vimos. Foi uma coisa espetacular. Mas agora isso já passou, não podemos ficar agarrados ao que fizemos no passado e temos outros objetivos. Há uma segunda parte da época, que será verdadeiramente difícil e desafiante, mas penso que chegaremos àquilo que temos de fazer.

O Tiago ganhou o prémio de Gestor Desportivo do Ano. Dentro do sucesso que acabou por ser o mercado de verão, ou seja gastar pouco e conseguir trazer tanta mais valia ao plantel, acabou por criar um problema para si próprio e para o próprio José Mourinho? Porque não há ninguém que conceba a ideia da Roma ficar fora dos quatro primeiros da Série A.
Não quero parecer desrespeitoso para as pessoas ou para as instituições que me dão os prémios, obviamente que é sempre bom receber, mas digo sempre que o sucesso desportivo de uma equipa, na minha opinião, depende no máximo a 20 ou 30% do mercado e sobretudo 70 ou 80% daquilo que se faz no dia a dia. Por isso, obviamente que se deve fazer os movimentos certos no mercado para melhorar a equipa mas a verdade é que depois o que interessa é aquilo que tu fazes no dia a dia. O treino, as lesões, a comunicação, a relação entre as pessoas, o desenvolvimento. Isso é que vai definir se ganhas ou não. Se fosse só o mercado, no ano em que o PSG contrata o Hakimi, Donarrumma ou Messi devia ter ganho a Liga dos Campeões.

Tiago Pinto recebeu na última edição do Football Summit em Itália o prémio de Gestor do Ano pela atuação no mercado de transferências do verão

E o Wijnaldum e tantos outros mas acabou por ficar nos oitavos. 
É por isso que acho sinceramente que nós no mercado… Por exemplo, criámos um grande entusiasmo com a vinda do Wijnaldum, mas passado uma semana lesiona-se, ainda está a recuperar. Ou seja, mais uma vez: é bom receber prémios e ver o nosso trabalho reconhecido mas a mim aquilo não me coloca pressão nenhuma no sentido em que sei perfeitamente que posso fazer o melhor mercado do mundo que depois o que vai determinar o nosso sucesso é o trabalho que fazemos durante todo o ano. Não são aqueles dois, três meses de mercado que vão definir. Senão, não valia a pena jogar, fazia-se o mercado e não se jogava mais…

Mas não sentem isso? Os adeptos ficaram de tal maneira entusiasmados. Ganham a Liga Conferência, começam a jogar, reforços. O Dybala surge como cereja no topo do bolo.
É verdade que se criou um certo entusiasmo porque ganhámos e depois chega o Matic, o Dybala, o Wijnaldum. Depois o Belotti. Criou-se uma grande expectativa mas isso é fruto deste ambiente todo que se vive no futebol, muito mediatizado. Temos perfeita consciência de que devemos estar concentrados no nosso trabalho e isso depois… A mim deram-me aquele prémio, passados dois meses. Se os resultados não andam bem, como em certas alturas não andaram, aí se fores à imprensa já está toda a gente a falar mal. [risos]

Como é que é a relação com a imprensa em Roma? Costuma dizer-se que a imprensa em Portugal e em Itália são diferentes.
Tive alguma dificuldade. Vinha de uma realidade em que nunca tive relação nenhuma com jornalistas porque no Benfica era muito protegido em relação a isso, fazia o meu trabalhinho na sombra e depois as pessoas que davam a cara eram o presidente ou o Rui Costa. Tive sempre na minha cabeça que as relações diretas com jornalistas não eram positivas porque a certo ponto começas a defender-te a ti em vez de defenderes o clube. Como a minha relação com o Benfica era uma coisa muito pura, não queria estragar isso. Queria sempre que o interesse do Benfica estivesse sempre acima de outras coisas. Aqui tentei fazer o mesmo, mas aqui é uma realidade em que efetivamente estão habituados a que os diretores desportivos tenham uma relação direta com jornalistas. Eu não a tenho e por isso acabei por pagar um bocadinho a fatura mas tenho um gabinete de imprensa com pessoas que são verdadeiramente profissionais.

É neste momento que Tiago Pinto faz uma interrupção a fala com Luca Pietrafesa, diretor de comunicação do clube, questionando se o que está a dizer está tudo correto, perguntando se foram mais jornalistas de Portugal ou de Itália a tentar saber mais quando saíram as notícias do alegado interesse da Federação em contratar José Mourinho para a Seleção e elogiando a forma como o departamento de comunicação se reinventou para se enquadrar com a maneira de pensar diferente para um diretor desportivo em Itália.

Foi por isso que começaram a fazer as conferências sempre no final de todos os mercados?
Sim. Procuramos equilibrar o facto de não manter essa relação que eles aqui estão habituados a ter com jornalistas com outros períodos de comunicação em que tento explicar as coisas. Fazemos essas conferências de imprensa sempre no final de cada mercado, falo pontualmente antes de alguns jogos.

Tiago Pinto tentou minimizar o choque cultural de ser diretor desportivo em Itália com a realização de uma conferência de imprensa sempre que acaba uma janela de transferências

Tem feito também visitas ao sócio número 1, encontros de adeptos antes dos dérbis com a Lazio.
Sim, sim. Mas isso são tudo ideias deles. Se há departamento aqui na Roma que funciona muito bem é o departamento de comunicação. E também foi um desafio para eles trabalhar com um diretor que não quer alimentar essa relação direta com a imprensa. Por isso, eles também se têm reinventado, digamos assim, para conseguir um equilíbrio.

Dois anos depois, continua a achar exatamente o mesmo em relação a esse tema?
Tem a ver com a nossa personalidade. Acho que nós quando falamos diretamente com jornalistas, nós diretores desportivos, obviamente que como qualquer ser humano temos tendência a defender-nos. Dos resultados, da relação com o treinador, das relações com os jogadores. Acho que manter essas relações, mesmo que seja para veicular a verdade, é sempre a minha verdade. E isso vai alimentar mais confusão, na minha maneira de ver. Ou seja, se estou a negociar a renovação de um jogador e sei que o empresário fala todos os dias com os jornalistas e passa só a versão do jogador, é legítimo que as pessoas vão dizer ‘Ah mas se tu falares vais passar a tua versão’. É mas vou aumentar a confusão.

"Quando nós [diretores desportivos] falamos diretamente com jornalistas, obviamente que como qualquer ser humano temos tendência a defender-nos. Dos resultados, da relação com o treinador, das relações com os jogadores. Acho que manter essas relações, mesmo que seja para veicular a verdade, é sempre a minha verdade. E isso vai alimentar mais confusão, na minha maneira de ver."

Mas, por exemplo, o Tiago nessa resposta já está a acrescentar algo que foi aprendendo com o tempo, que já está a perceber quando é que aquilo que sai são as versões de agentes.
Isso sou suficientemente inteligente para perceber de onde é que as coisas vêm. Sei muito bem aquilo que acontece, também tenho pessoas na comunicação que me ajudam muito nesse aspeto. Mas por um lado acho que devo continuar a manter esta independência. E por outro lado muitas vezes as pessoas dizem: ‘Eu leio as coisas, mas não me afeta.’ Eu não acredito que isso seja possível e eu não sou assim. Por isso, prefiro efetivamente não ler. Vivo um bocadinho à parte desta realidade. Em Roma, por exemplo, há sete ou oito rádios que acompanham a Roma e eu nunca ouvi um minuto de rádio. Nem sei o que é que acontece lá.

E com as redes sociais, também é igual?
Vejo muito pouco. Temos uma linha e uma estratégia. A realidade está aqui: o treinador, os jogadores, a estrutura. Essa realidade, a realidade, eu conheço. É verdade que no futebol a realidade bate muitas vezes com a perceção da realidade, que é aquilo que vocês veem lá de fora. Compreendo que muitas vezes as pessoas têm razão, que dizem que se eu não falar, se não disser, é a perceção da realidade que conta, mas é a minha maneira de ver as coisas. Estou aqui, sou pago para trabalhar e fazer as coisas acontecerem. Não sou pago para me defenderem, para vincular a minha ideia sobre as coisas, porque nem sempre a minha ideia sobre as coisas é a melhor. Por isso, aquilo que nós procuramos é, sempre que há um problema, situações no dia a dia que temos de resolver, o gabinete de imprensa fala com os jornalistas. Se tivermos uma situação muito séria em que me aconselham ‘Diretor, agora temos de fazer uma chamada para explicar esta situação’, eu faço. Quando eles me dizem, faço. Por minha iniciativa, manter relação com jornalistas não. Gosto do meu trabalho mas o meu trabalho é muito difícil. Temos a imprensa, os treinadores, os jogadores, os agentes, milhões e milhões de euros a circular. Todas as decisões que tomamos, se pensarmos bem, têm um impacto enorme. Se perco o meu tempo e a minha energia com aquilo que se diz e se escreve sobre mim, numa cidade como Roma, não posso fazer o meu trabalho…

E a seguir ao Campeonato do Mundo, quando se começou a falar de José Mourinho para a Seleção, houve algum contacto do género ‘Temos um problema’ ou passou ao lado?
Sim. Sou português mas é normal quando tens um treinador como ele que estas coisas possam acontecer. Mas sinceramente, internamente, não teve o impacto que se calhar teve externamente. Só teve para o Luca [Pietrafesa, diretor de comunicação], ele é que teve de falar muito com os jornalistas… [risos]

Na perspetiva do Tiago, é mais provável ouvir o José Mourinho nos próximos tempos a chateá-lo por reforços do que propriamente com a hipótese de ir para a Seleção?
Ele é um treinador exigente, é mesmo [risos] . Isso é uma coisa gira, no sentido em que ele é uma pessoa que vai fazer 60 anos. Já ganhou 25 títulos, já trabalhou nos maiores clubes do mundo, já passou por tanta coisa. Se calhar o mais fácil ou expectável era que ele estivesse sentado à sombra da bananeira e gerisse a carreira dele até ao fim. Em vez disso, ele é uma pessoa exigente todos os dias. Quer que todas as pessoas à volta dele melhorem e por isso é uma coisa que, a mim, como diretor, é um desafio. Quem sou eu para estar a falar em nome dele, mas de tudo aquilo que ele diz, ele está contente de estar aqui. A cidade adora-o, as pessoas no clube adoram-no. Ele tem aqui um papel muito importante no clube.

Portanto, admite que até ao final da época é uma não questão.
Nunca foi…

Surpreendeu-o que aquele José Mourinho que há 20 anos começou a ser campeão europeu de repente faça tatuagens e vá para o Instagram mostrar como vive as coisas?
Isso só demonstra que ele tem a capacidade, digamos assim, de se adaptar à realidade. De vez em quando falamos sobre isso. Estamos a falar de uma pessoa que, só como treinador principal, já fez mais de mil jogos. Ou seja, se pensarmos nele como adjunto, do FC Porto, do Sporting, do Barcelona. Imagine há quantos anos ele anda nisto. Ele fala muitas vezes dessas diferenças, do tipo de jogador que havia ou que ele tinha há 20 ou 30 anos e que tem agora. A comunicação com o próprio jogador é completamente diferente. Ele depois também tem os filhos que acabaram se calhar por ajudar a compreender esta realidade. Mas eu sinceramente acho que essas coisas só demonstram que ele compreende tudo perfeitamente. É uma pessoa que não ficou presa no tempo, que foi acompanhando aquilo que são as tendências, a forma de comunicar. Hoje em dia, tens de ter Instagram, redes sociais, tens de saber comunicar. Faz as coisas à maneira dele, inclusive no Instagram é mesmo ele que gere e é muito genuíno, mas isso demonstra que é uma pessoa que conseguiu estar no top tantos anos mesmo que as mentalidades, as culturas e os jogadores sejam diferentes.

"Se pensar daqui a dez anos... Espero experimentar outros campeonatos, viver noutros países, mas para já não tenho, honestamente, previsões ou projetos. Hoje em dia temos todas as condições para continuarmos este projeto na Roma, para conseguirmos concretizar as ideias e a visão dos donos."

O Tiago já tem dez anos de direção de projetos desportivos, seja nas modalidades, seja no futebol. Uma das coisas que José Mourinho fala muito é da diferença entre a dificuldade que é criar hoje um grupo porque, como ele dizia, nos estágios era muito mais fácil por não haver telemóveis, nada. Sente isso em relação aos grupos, que é muito mais complicado construir grupos do que era por exemplo há dez anos?
Hoje é um desafio diferente. Por um lado, isso é verdade, mas por outro lado a nossa comunicação também é muito mais fácil. Hoje em dia, a questão das línguas se calhar é muito mais fácil. Há muito mais gente que fala inglês, outras línguas. A questão das novas tecnologias são piores para uma coisa, mas melhores para outras. Aquilo que temos de fazer é adaptar-nos à realidade que temos. É verdade que, não só no futebol, mas o futebol é um espelho da nossa sociedade. Acho que hoje em dia, como culturas e como sociedade, caminhamos um bocadinho na lógica do egoísmo e não tanto na lógica da equipa. Sendo o futebol um desporto tão mediático, tantas vezes precisamos de compreender que cada jogador é quase uma instituição em si mesmo. Tem uma equipa que trabalha para ele, uma imagem a gerir, contratos, um futuro, objetivos de carreira. Depois nós, aqui dentro, temos de conjugar aquilo tudo em prol de uma equipa. Obviamente que o papel de treinador é, de longe, o mais difícil, o mais complicado para conseguir gerir isto tudo. Mas nesse sentido sim, é mais difícil porque evoluiu muito em termos de futebol e dos próprios valores envolvidos.

O Tiago faz agora dois anos de Roma. Como é que olha para o futuro, da mesma maneira que se calhar há dez anos não imaginaria que estivesse aqui? Como imagina os próximos dez anos?
Aprendi a não imaginar… [risos] Aconteceram tantas coisas na minha vida por acaso que hoje em dia aquilo que procuro é apenas dar o meu melhor no dia a dia. Nós aqui temos um projeto inacabado. Como disse, para tudo aquilo que tínhamos imaginado, continuamos a precisar de tempo para continuar a concretizar as coisas. Mas sim, seguramente que não sou velho, tenho 38 anos. Se pensar daqui a dez anos… Espero experimentar outros campeonatos, viver noutros países. É impossível não estar atento à Liga inglesa, que é fascinante, mas para já estou focado na Roma. Hoje em dia temos todas as condições para continuarmos este projeto, para conseguirmos concretizar as ideias e a visão dos donos.

E neste projeto que tem atualmente, a médio e longo prazo, o objetivo é voltar a ser campeão italiano? É o ponto máximo do projeto?
A ideia é conseguirmos construir as bases para que no futuro a equipa seja o mais competitiva possível e, sendo o mais competitiva possível, poder lutar pelo scudetto. Não podemos é esquecer-nos de que as outras equipas que estão no top 6 ou top 7 são equipas que têm projetos muito mais antigos do que o nosso. Se olharmos para o Nápoles por exemplo, é uma equipa que nos últimos 10/15 anos tem tido. O próprio AC Milan, que está agora a fazer muito bem, mas as pessoas que lá estão, estão há cinco ou seis anos. Ou seja, nunca nos podemos esquecer de que estas coisas levam tempo e o nosso projeto não é um projeto de chegar aqui, despejar milhões e as coisas vão acontecer. Não, os donos desde o início sempre nos passaram a ideia de que é importante criar essa sustentabilidade financeira e criar um projeto sustentável para ser verdadeiramente sólido e não andar ao sabor dos investimentos ano a ano. Por isso, acho que a Roma no futuro vai estar nesse patamar. Para chegarmos lá, temos de dar os passos certos. De qualquer forma, uma taçazinha já ganhámos. [risos]

Enquanto diretor, qual foi o jogador que lhe deu mais gozo contratar no futebol? E qual foi o jogador que mais lhe custou perder também enquanto diretor desportivo?
Contratar? O Dybala e o Tammy [Abraham]. É difícil para mim escolher um, foram dois processos muito exigentes que me levaram um bocadinho ao limite. Perder? Perder… Sem dúvida, o João Félix.

Tiago Pinto tem dificuldade em escolher apenas uma grande contratação enquanto diretor desportivo, juntando Dybala a Tammy Abraham

E uma contratação falhada?
Não me lembro de muitas. [risos] Às vezes é difícil porque começas uma negociação mas a um determinado momento quando sabes ou achas que não vais conseguir, não se considera falhada porque se vira o volante e vai para outro lado. Claro que me lembro de muitos jogadores de que estávamos a falar. No Benfica, por exemplo, falámos deste defesa central agora que está no Red Bull Salzburgo, o Pavlovic, um esquerdino. Na altura, falámos sobre ele, depois acabámos por não contratar e está a fazer bem. Mesmo aqui na Roma, já houve jogadores de que falámos mas depois por uma razão ou por outra não pudemos contratar. É mesmo complicado encontrar algum caso de ‘Pá, falhei esta contratação’ porque se percebe antes.

Nunca teve aqueles casos de Roma e Lazio ou Benfica e FC Porto, os dois a correr ao mesmo tempo?
Não, de que me lembre nunca tive uma dessas situações em que estão os dois e o jogador quase que faz uma escolha de um e não de outro ao photo finish.

"Mourinho na Seleção? Quem sou eu para estar a falar em nome dele, mas de tudo aquilo que diz, ele está contente de estar aqui. A cidade adora-o, as pessoas no clube adoram-no... Ele tem aqui um papel muito importante no clube. Não questão até ao final da época? Nunca foi... Ronaldo foi hipótese? Não, não... Nunca foi."

Quem é o próximo português a vir para a Roma?
Não sei. Já trouxemos o Rui [Patrício], o Sérgio [Oliveira] no ano passado por empréstimo. Não sei. Aqueles que eu gosto mais não temos dinheiro. [risos]

Ronaldo alguma vez foi hipótese?
Não, não. Nunca foi.

Mas não lhe faz confusão? Há um pouco a perceção de que o Ronaldo ir jogar para o Al-Nassr é sinal de não ter alternativas na Europa, daí rumar à Arábia Saudita. Não lhe fez confusão nenhum clube europeu nunca ter dito ‘Anda, queremos-te aqui, acreditamos em ti’?
Obviamente não conheço a história, aquilo que sei é que ele é um dos melhores jogadores da história. Depois, cada jogador e a sua entourage acabam por decidir aquilo que é melhor para a sua carreira. Temos situações como por exemplo o Zidane, que acaba a carreira aos 34 anos porque queria terminar no Real Madrid. Depois temos jogadores como o Buffon, que decide jogar até aos 44 e vai para o Parma. Ou outras situações. O Cristiano decidiu aquilo que ele acha que é melhor para a carreira dele. Nós também temos um bocadinho a veleidade de dizer que deviam fazer isto ou aquilo. Isso é ele que decide, é a carreira dele. O resto não podemos esquecer que a idade no futebol acaba por tocar a todos.

Mas ele chegou a ser muito associado também à Roma, sobretudo no verão.
Sim, mas não há jogador nenhum que não tenha sido associado à Roma. Aqui o mercado é uma loucura, todos os dias temos não sei quantos jogadores associados à Roma. Mas efetivamente Ronaldo nunca foi uma hipótese porque não tínhamos a mínima capacidade para pensar nisso.

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