Conferência de imprensa de Jerónimo de Sousa,

no dia em que se despediu publicamente da liderança do PCP

Não vou continuar como deputado. Naturalmente há aqui uma alteração qualitativa das minhas capacidades e tendo em conta a dimensão da nossa bancada, não se compadece com ausências ou uma estadia momentânea. Precisamos de reforçar o grupo parlamentar e acho que posso dizer que estamos em condições de avançar com uma solução capaz de dar mais força e mais dinâmica.

Por alteração qualitativa das capacidades, Jerónimo quer que se entenda saúde. E energia. Sobretudo, num ciclo político tão exigente como o que se avizinha, no contexto de um quadro político a que o PCP ainda se está a tentar ajustar. Com uma maioria absoluta que pode ser um verdadeiro “rolo compressor”, nas palavras de Jerónimo, e que acabou com a influência legislativa do partido, abre-se uma etapa em que o PCP planeia ser mais agressivo e mostrar vitalidade. Tudo na esperança de recuperar força — sobretudo nas ruas — e eleitores. Por tudo isto, o Parlamento não será — porque não pode ser — o palco privilegiado do partido e Jerónimo já não considera ter condições para ser o rosto deste novo ciclo. Para a bancada entrará o jovem ex-deputado Duarte Alves, que ocupa o lugar seguinte das listas por Lisboa, ajudando a reforçar uma estatística de que o PCP se orgulha, até para contrariar a ideia de que é um partido extremamente envelhecido: a baixa idade média do seu grupo parlamentar.

Quero reafirmar que foi por iniciativa própria, depois de uma profunda reflexão tendo em conta a minha intervenção cirúrgica, sequelas, que não se compadecem com o calendário e o programa do secretário-geral. Mantive-me com todas as forças que tinha, mas naturalmente a situação exige outra solução. Tendo em conta que fui eu que tomei a iniciativa junto dos organismos executivos do Comité Central (…).

É um ponto que Jerónimo faz questão de que fique assente: por duas vezes — e nem sequer seriam as últimas — fez questão de dizer que sai pelo próprio pé, porque impôs essa decisão à direção do PCP e a esta restou oferecer-lhe a sua “compreensão”. O líder comunista cessante explicou de todas as formas possíveis que quis garantir que tomava esta decisão quando ainda estava “com cabeça”, “racionalidade e clareza”, liderando o processo. Com isto, acelerou o calendário do próprio partido e espantou uns quantos (muitos) camaradas: a substituição estava a ser preparada, mas foi Jerónimo quem chamou a si a decisão final e apressou o timing de saída, tornando-se o primeiro secretário-geral do PCP em democracia a sair de funções sem esperar por um congresso. Era, de resto, essa a expectativa que reinava no partido: o líder completaria o mandato até 2024 e a transição seria preparada com mais calma, conjeturavam os comunistas. Mas Jerónimo não quis.

Isso não é muito fácil de explicar, é uma componente que não é muito apontada ao PCP, a política dos afetos. Mesmo perante adversários, perante jornalistas incómodos, sempre existiu uma grande franqueza, sendo como sou. Essa dimensão dos afetos, a par de uma solidez ideológica e de uma profunda confiança no futuro… se alguma marca ficou sobre estes aspetos, ainda bem.

É uma referência curiosa e muito rara no PCP — o próprio Jerónimo admite que associar política de afetos e partido comunista na mesma frase não será exatamente costume. Mas o historial de Jerónimo, que se torna assim o último deputado constituinte a sair do Parlamento, conta outra história: é conhecida a relação de grande cordialidade que vai mantendo até com adversários políticos e o ainda secretário-geral faz questão de alimentar essa ideia. Quando foi operado, em janeiro, Jerónimo já tinha feito uma série de declarações emotivas, e raras, onde agradecia as demonstrações de apoio e desejos de melhoras que recebera, incluindo de adversários. A dimensão dos afetos pode não combinar com o PCP, mas Jerónimo quer assegurar-se de que faz parte do seu legado — dentro do partido, havia quem explicasse, ainda há meses, que o fator Jerónimo fazia uma evidente diferença na rua, pela simpatia de que goza. Outra coisa, é claro, é o plano político e o partido que representa — e esse está cada vez mais isolado, no Parlamento como no espetro político português.

Queria dar uma achega sobre como este partido funciona. (…) Nós, muitas vezes acusados de ser duros e inflexíveis, temos esta vantagem imensa: as vitórias não são de um homem só, as derrotas não são deste ou daquele protagonista. Nas horas boas e más encontramos sempre esse coletivo solidário”.

Na hora da despedida, apesar do tom intimista e até emotivo que imprimiu às declarações, Jerónimo foi também confrontado com outra realidade: a do ciclo de maus resultados a que conduziu, ou pelo menos ajudou a conduzir, o PCP nos últimos anos, deixando a representação parlamentar do partido em mínimos históricos e a implantação autárquica em crise profunda. Mas o comunista, que até chegou a lembrar momentos felizes do seu percurso político, como o bom resultado que obteve enquanto candidato presidencial, chutou para canto: no PCP, vitórias e derrotas são do coletivo, ponto. O que não impede que a estatística fique no currículo de quem liderou o partido durante a série de trambolhões eleitorais do partido.

Quero dizer que houve uma ampla convergência — não quero dizer por unanimidade, que o rigor dos números nesta matéria é importante — em relação à solução e uma profunda compreensão em relação a mim, como secretário-geral, sendo substituído, mas um sentimento fortíssimo de que esta substituição foi normal e natural. Verificou-se uma grande unidade e coesão na direção do partido em relação à solução. (…) Naturalmente, houve alguma surpresa no Comité Central, mas a tal grande convergência manifestou-se de uma forma inequívoca.

Jerónimo revelou, num gesto raro, bastantes informações relevantes sobre a forma como Paulo Raimundo foi escolhido como seu sucessor. A mais relevante será a de que houve “surpresa” até no Comité Central — o que indicia que o processo aconteceu em circuito muito fechado, nos órgãos de topo do partido, e não resultou de um amplo debate interno, como o PCP costuma defender.  A escolha, admitiu Jerónimo, não gozou de unanimidade, embora só na próxima semana, quando o Comité Central votar oficialmente o nome de Raimundo, vá ser possível perceber exatamente qual foi o nível de consenso que o nome recolheu. Segundo Jerónimo, houve uma “ampla convergência” em torno de Raimundo, fator que não se cansou de frisar — mostrando, sem querer entrar em mais pormenores, que teve, no mínimo, um peso decisivo na escolha.

É um camarada estudioso, que conhece os problemas, que tem tido fundamentalmente tarefas de reforço da organização do partido, acompanhando grandes regiões, grandes setores (…) É um homem sensível, que compreende as coisas de forma célere. É um camarada modesto, que ouve muito os outros, que teve responsabilidades de setores sindicais e tem este conjunto de potencialidades. Para falar com franqueza, quando os senhores jornalistas querem, puxam para cima ou puxam para baixo, não é? Não se pode ser conhecido se, naturalmente, não aparecer. Quem não aparece esquece-se. Espero que lembrem o que vou dizer: é uma solução segura, que corresponde às necessidades do partido neste momento.

Se é verdade que a generalidade dos portugueses não faz ideia de quem seja Paulo Raimundo, Jerónimo fez questão de começar a traçar o seu perfil. Com muitos elogios e uma ideia clara: Raimundo será um homem das bases, ligado ao aparelho e a setores fundamentais que o PCP quer reavivar, sobretudo ao nível sindical. Depois há o conjunto de qualidades humanas que Jerómimo e os dirigentes comunistas quiseram valorizar — ser modesto e uma solução segura à cabeça.

É uma experiência que deve ser considerada desde raíz. A direita perdeu, ficou em minoria na Assembleia da República, foi demitida. E num entendimento que existiu – ali numa sala aqui ao lado – considerámos que o PS só não fazia Governo se não quisesse. Embora o PS estivesse sempre muito contrariado e recuado. Ainda assim avançou-se com coisas muito importantes para o povo. Conforme os anos se foram sucedendo, verificámos que o PS tentava ficar para trás e não corresponder. Naturalmente, colocou-se a questão: como é que nós poderíamos continuar a ter compreensão política em relação ao Governo quando no fundamental procurou sempre desvalorizar as nossas propostas? Votámos contra o Orçamento com a consciência de que o PS iria tentar aproveitar-se dessa situação.

Não é uma novidade que os vários protagonistas da geringonça já gastaram muito tempo a tentar controlar a narrativa e escrever a história dessa solução — e, sobretudo, do fim dela. Aqui, Jerónimo ensaia um duplo exercício: primeiro, lembrando que foi o PCP que abriu a porta à geringonça, com uma declaração pública de Jerónimo a desafiar o PS a formar Governo (e esta parte da história só é questionada pelo Bloco de Esquerda); depois, atribuir ao PCP todos os méritos e avanços e garantir que a corda só se partiu por vontade do PS, que já congeminava a conquista da maioria absoluta. Feitas as contas, o PCP não se arrepende — “estivemos certos”, garantiu o líder que está de saída — mas Jerónimo recusa terminantemente que a “nova fase da vida política nacional” seja o principal legado do seu percurso: “Não, de todo”, respondeu. Mesmo que tenha sido uma solução inédita em democracia, que mudou a forma como as alianças e os cenários de governabilidade são discutidos e concretizados em Portugal, e particularmente espantosa dado o envolvimento do PCP, inimigo histórico do PS.

A proposta do camarada Paulo Raimundo foi o tal ato natural e normal que referi, não estou a inventar. Já agora, uma inconfidência, porque me dá um sentimento de satisfação profundo: ontem, o Comité Central resolveu concordar comigo em termos de substituição da tarefa, aplaudindo quatro minutos de pé. Este desfecho, este desenvolvimento a que estamos a assistir… Quero dizer que sabe mesmo muito bem sentir o abraço solidário e coletivo dos meus camaradas da direção, tal como os militantes, amigos do partido e muitas vezes até adversários.

Jerónimo não conseguiu esconder o orgulho, protagonizando outro um momento raro numa conferência de imprensa dos comunistas: quis abrir mais uma exceção e fazer mais uma inconfidência, desta vez adiantando outro pormenor sobre a forma como o Comité Central reagiu à sua decisão — não deixando claro se falava apenas da sua saída ou também da proposta para que Raimundo o substituísse. Seja como for, Jerónimo fez questão de frisar que acabou por ser aplaudido de pé durante quatro minutos pelos camaradas, num “abraço solidário e coletivo” que lhe agradou. Foi mais uma forma de dizer, como insistiu por várias vezes, que sai “de cabeça erguida” e de bem com o trabalho que deixou feito — incluindo a forma como conseguiu condicionar o timing da saída e até a escolha do líder que se segue.

É preocupante essa ideia peregrina de criar uma federação sem sindicatos ou trabalhadores. Não pode ser; por lei não pode ser. A direita fala disso porquê? Porque naturalmente quer conquistar a rua. Naturalmente quer capitalizar o descontentamento profundo que esta política de direita permite. O reforço do movimento sindical unitário, consubstanciado na CGTP, é um elemento de grande importância para os trabalhadores portugueses (…) Como é que se sindicaliza alguém que hoje está num serviço de administração pública e amanhã numa grande superfície? Com todas as dificuldades de organização e sindicalização, é um desafio a que a CTGP tem de responder e a inteligência dos trabalhadores portugueses é suficientemente forte para considerar que isto… não é sindicalismo que querem, é outra coisa.

A “ideia peregrina” que Jerónimo comentava, já na fase final da conferência, era o anúncio do Chega de que quer criar uma estrutura sindical associada ao partido, para entrar no campeonato pela contestação social nas ruas, sobretudo em tempos de dificuldades económicas, e tentar roubar essa narrativa à esquerda. E aqui, já de olhos postos no futuro e nas dificuldades que se seguem, Jerónimo fez questão de marcar território. Primeiro, lembrando que um partido não pode criar um sindicato — mesmo que depois haja uma ligação clara entre os dois, como acontece entre PCP e CGTP. Depois, questionando as reais motivações do Chega e a genuinidade da dita estrutura sindical, num partido que não tem esse trabalho feito junto das bases sindicais e dos trabalhadores. E, por fim, colocando uma questão ao próprio PCP e à CGTP: para completar o puzzle, e mesmo relativizando a concorrência do Chega, falta perceber como se revitalizam os sindicatos, num momento em que são cada vez menos representativos — mesmo que tenham motivos de contestação para agarrar.