Não foi surpresa nenhuma: desde o início do processo, já era possível antecipar como iria acabar o impeachment de Donald Trump. A votação desta quarta-feira foi uma formalidade que consumou o inevitável. O Presidente dos EUA foi formalmente absolvido pelo Senado, dominado pelo Partido Republicano, das duas acusações que lhe haviam sido movidas pelo Partido Democrata — abuso de poder e obstrução do Congresso.
Relativamente à primeira acusação, 48 senadores votaram “culpado” e 52 votaram “inocente”. Além dos 47 senadores democratas, a acusação só conseguiu convencer o republicano Mitt Romney a contrariar o sentido de voto do partido de Trump. Apesar de não ter sido suficiente para a condenação (eram necessários dois terços, ou seja, 67 votos), o voto de Mitt Romney já se tornou histórico: pela primeira vez na história dos EUA, um senador votou para destituir um Presidente do seu partido. A decisão de Romney já atraiu todo o tipo de críticas — levando inclusivamente o filho mais velho de Trump, Donald Trump Jr., a pedir a sua expulsão do Partido Republicano.
Já a segunda acusação caiu com os votos perfeitamente alinhados com a divisão partidária do Senado: os 47 democratas consideraram Trump culpado de obstruir o Congresso por impedir funcionários e ex-funcionários da Casa Branca de testemunharem durante a fase de inquérito do impeachment, mas os 53 republicanos — Romney incluído — absolveram-no também dessa acusação. Foi o fim do impeachment.
https://observador.pt/2020/02/05/ultimo-dia-de-impeachment-senadores-debatem-acusacoes-contra-trump-antes-de-votarem-absolvicao/
No final de um processo que começou no ano passado — mas que respondeu a um desejo manifestado pela oposição a Trump desde antes da própria eleição de 2016 —, sobra um Partido Democrata derrotado, um Presidente reforçado na sua popularidade, poder e argumentário, e a perspetiva de uma eleição presidencial de 2020 absolutamente histórica: pela primeira vez, um Presidente alvo de um processo de impeachment recandidata-se ao cargo — e com grandes perspetivas de vitória.
Para trás ficam as acusações de abuso de poder relacionadas, precisamente, com a próxima eleição presidencial. Os democratas acusavam Trump de ter usado o seu poder (nomeadamente a atribuição de ajuda militar norte-americana) para pressionar a Ucrânia a investigar os negócios de Hunter Biden naquele país — com o objetivo de prejudicar a imagem do seu pai, Joe Biden, ex-vice-Presidente dos EUA e um dos principais candidatos democratas às Presidenciais de 2020.
Trump ganhou o impeachment (mas a mancha fica na História)
Uma sondagem publicada nesta terça-feira é o exemplo perfeito de como Trump sai de todo este processo: vitorioso e triunfante. De acordo com o estudo da Gallup divulgado no dia anterior à absolvição, a percentagem de americanos satisfeitos com a prestação de Trump alcançou neste mês os 49%, o valor mais elevado desde a eleição — embora se mantenha como o único Presidente a nunca ter tido uma taxa de aprovação igual ou superior a 50% neste estudo.
Absolvido pelo Senado, Donald Trump ganhou uma série de trunfos argumentativos que lhe serão úteis num ano eleitoral. Aliás, Trump planeia retomar já na próxima semana os comícios eleitorais — e não será de estranhar, como nota a imprensa norte-americana, que entre os argumentos invocados pelo Presidente recandidato surja o tema do impeachment.
Sendo o primeiro Presidente a apresentar-se às urnas após ser julgado no Senado num processo de impeachment, Trump tem agora à sua disposição o maior dos argumentos: foi absolvido porque, poderá dizer, não cometeu nenhuma ilegalidade. Além disso, ganha espaço para reforçar os seus ataques ao Partido Democrata, acusando a oposição de o ter perseguido e de ter inventado acusações contra ele — já que essas acusações acabaram por cair no Senado.
Chief Justice Roberts: "Two-thirds of the senators present not having pronounced him guilty, the Senate adjudges that the respondent Donald John Trump, President of the United States, is not guilty as charged in the first article of impeachment." pic.twitter.com/dc3bJLSq9X
— CSPAN (@cspan) February 5, 2020
Donald Trump sai também de todo este processo com mais poder para voltar a pressionar países estrangeiros no sentido de obter benefícios próprios, como considerou o antigo congressista republicano Mickey Edwards em declarações ao The New York Times.
“Penso que ele terá recebido luz verde (…) e poderá fazer estas coisas novamente, e eles não lhe podem fazer um novo impeachment. Penso que isto lhe vai dar mais poder e permitir-lhe que seja muito ousado. Penso que o vamos ver ainda mais solto”, afirmou Edwards, atualmente professor na Universidade de Princeton.
Outra realidade fica clara após a conclusão deste julgamento: Donald Trump não precisa de se preocupar com o Senado. Através de Mitch McConnell, líder da maioria republicana e seu feroz defensor ao longo de todo o julgamento, o Presidente dos EUA — que já disse que a Constituição lhe permite fazer “o que quiser” — controla com tranquilidade a câmara alta do Congresso.
Porém, a mancha do impeachment é impossível de limpar. Independentemente do resultado do julgamento, Donald Trump já se juntou a um clube muito exclusivo, ao tornar-se o quarto Presidente dos EUA a ser alvo de acusações de crimes contra a nação pelo Congresso — e o terceiro a ser julgado pelo Senado, uma vez que Richard Nixon se demitiu antes do julgamento.
Embora os defensores de Trump já tenham puxado do slogan “absolvido para a vida“, a presidente da Câmara dos Representantes assegurou que o impeachment fica “para sempre”.
Há um outro ponto relevante: a defesa de Trump nunca negou que o Presidente tenha pressionado a Ucrânia para investigar os Bidens. Os seus advogados focaram-se apenas em sustentar que não houve nenhum quid pro quo nas ações do Presidente.
Aliás, em muitos momentos do julgamento os advogados de defesa de Donald Trump admitiram de facto as pressões sobre a Ucrânia, mas dedicaram-se a argumentar que aqueles atos não deviam ser punidos com a destituição — uma vez que não constituíam nenhum crime punido por lei. Numa das sessões do julgamento, um dos advogados de Trump afirmou mesmo que, “se um Presidente faz alguma coisa que acredita que o vai ajudar a ser eleito pelo interesse público, isso não pode ser o tipo de quid pro quo que resulta em destituição“.
Nem dentro do Partido Republicano o resultado do julgamento se traduz na ideia de que Trump teve uma conduta exemplar. Isso mesmo referiu esta quarta-feira o senador republicano Lamar Alexander, do Tennessee, quando justificou porque é que iria votar a favor da inocência de Donald Trump.
Aos repórteres norte-americanos presentes no Capitólio, Alexander, um dos republicanos que chegaram a ponderar votar ao lado dos democratas para convocar novas testemunhas, afirmou que votaria contra a condenação porque considera que o Presidente não pode ser destituído “apenas por ações que são inapropriadas”. “Foi inapropriado que o Presidente tenha pedido a um líder estrangeiro que investigasse o seu rival político e bloqueasse ajuda norte-americana para encorajar esta investigação“, admitiu Alexander, sublinhando que “a questão não é se o Presidente o fez”.
Como Alexander, muitos dentro do Partido Republicano que se opuseram à destituição de Trump saem deste impeachment convencidos de que o Presidente dos EUA tentou, efetivamente, pressionar a Ucrânia de forma a influenciar as eleições norte-americanas.
Democratas perderam julgamento, mas ganharam alguns pontos na opinião pública
Ainda Donald Trump não tinha sido sequer escolhido como o candidato republicano às eleições presidenciais de 2016 e já a palavra impeachment surgia no debate político norte-americano. “Poderá Trump ser destituído pouco tempo depois de tomar posse?”, questionava um artigo do Politico em abril de 2016.
Com efeito, desde a eleição de Donald Trump que a oposição democrata tem procurado destituir o Presidente. As revelações sobre os contactos entre a administração Trump e a Ucrânia a propósito da investigação à família de Joe Biden forneceram o contexto perfeito para avançar com um processo formal de impeachment, com a acusação de abuso de poder no centro da investigação.
Os democratas acabariam, porém, por perder duas vezes. No início do julgamento no Senado, quando tentaram chamar novas testemunhas para depor perante os senadores, não conseguiram convencer um número suficiente de republicanos a votar com eles a convocatória de testemunhas. E agora novamente na votação final, cujo resultado era mais do que previsível.
Desde o princípio, mesmo com o veredicto praticamente definido, o Partido Democrata abraçou o impeachment de Trump como a sua missão prioritária, de modo a ser associado a uma espécie de guardião de uma democracia que não poderia tolerar uma interferência eleitoral de outro país — muito menos a pedido do próprio Presidente.
Isso ficou claro até do ponto de vista processual. Durante o julgamento, mesmo sabendo qual seria o resultado, o Partido Democrata gastou praticamente todos os minutos de que dispôs para apresentar argumentos e provas. Na primeira sessão, o líder da minoria democrata apresentou onze emendas à proposta para as regras do julgamento, fazendo prolongar a sessão por mais de 13 horas. Uma por uma, todas as propostas democratas para chamar novas testemunhas e requisitar novos documentos à Casa Branca foram chumbadas pelos republicanos.
Os democratas ganharam alguns pontos na opinião pública. Uma sondagem publicada na semana passada revelou que 75% dos eleitores norte-americanos queriam que o julgamento de Donald Trump tivesse contado com o depoimento de novas testemunhas — incluindo 49% de republicanos.
Essa batalha continua. Esta quarta-feira, um dos congressistas democratas responsáveis pela acusação, Jerry Nadler, confirmou que a Câmara dos Representantes pondera chamar o ex-conselheiro de segurança nacional John Bolton a testemunhar perante o Congresso, numa investigação a ser retomada após a absolvição de Trump.
Do lado derrotado do impeachment fica também a ideia de um partido unido na luta contra Trump: pela primeira vez na história todos os senadores do partido da oposição votaram a favor da destituição do Presidente a ser julgado.