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Edson Arantes do Nascimento costumava dizer que a sua alcunha, Pelé, não significava nada: “É só uma palavra”, explicava. Mas durante décadas e décadas, no mundo pré-Messi, pré-CR7, essa palavra era tudo para quem gostava de futebol: perguntem ao meu garoto e ele dirá que o melhor jogador de sempre é Messi; perguntem-me a mim e eu responderei Maradona ou Zidane ou Deco – mas se perguntassem ao meu pai ele não tinha a mínima dúvida: nem Di Stefano nem Crujiff, só Pelé.
O que é normal: o meu pai nasceu em 1924 – tinha 34 anos quando Pelé guiou o Brasil à vitória no Mundial de 58 e assistiu à sua ascensão como a maior máquina de fazer golos que o mundo alguma vez conheceu: quando pendurou as botas Pelé tinha 1281 golos em 1363 partidas, isto contando com jogos amigáveis; conquistou três campeonatos do mundo, seis campeonatos brasileiros, duas taças inter-continentais e um sem número de outros troféus menores ou regionais.
Para qualquer pessoa nascida na década de 50 Pelé não é não só uma palavra – é todo o futebol. Edson Arantes do Nascimento faleceu esta quinta-feira, aos 82 anos de idade; com ele não morre o futebol, porque o futebol entretanto tornou-se ubíquo, tão grande quanto o planeta – e para isso muito contribuiu Pelé.
Pensem na Copa de 1970: a primeira coisa que nos ocorre, acerca desse Mundial, é que foi o terceiro que Pelé ganhou, estabelecendo um recorde que dificilmente será batido; mas para quem via os jogos pela televisão há uma imagem ainda mais forte que a do avançado a marcar o primeiro golo do Brasil contra a Itália, na final: falo da imagem Pelé a apertar as chuteiras sempre que podia, porque sabia que as câmaras iam filmá-lo e à marca das botas, a Puma, que o patrocinava.
Pelé pode ou não ter sido o melhor o jogador do mundo – e qualquer vídeo do Youtube demonstra que ele tinha velocidade, força e uma técnica de finta, passe e remate excepcionalmente desenvolvidas para a época; mas do que não há dúvida é que Pelé foi o primeiro jogador-marca do mundo: um inquérito feito na década de 70 revelou que Pelé era a segunda marca mais conhecida dos ocidentais, atrás da Coca-Cola. E tudo isto por vontade divina, como o próprio fazia notar.
O trauma de 1950
Pelé tinha nove anos quando o Brasil perdeu a final da Copa, em casa, contra o Uruguai, no ano de 1950, um evento que até hoje parece ter traumatizado a nação brasileira. O rapaz, que era doido por futebol mas só podia pegar na bola depois de ir à missa, dirigiu-se ao quarto dos pais, onde se encontrava uma gravura de Cristo, com a qual encetou uma conversa – quando saiu do quarto dirigiu-se ao progenitor, que estava na sala: “Um dia vou ganhar uma Copa para você”.
Ou, pelo menos, é o que Pelé gostava de contar – e Pelé adorava criar mitos a seu respeito. De facto, pode-se afirmar que Pelé era pelo menos tão bom a reinventar o seu passado como era a jogar futebol. As estrelas de hoje (Messi, Ronaldo) são exemplos de trabalho e superação; as estrelas de antigamente (Pelé, Maradona) eram exemplos de génio, cosmogonias em si mesmas, mitos.
Uma hipótese mais terrena para os talentos de Pelé é a genética: o pai, Dondinho, fora jogador do Fluminense, de modo que quase se pode dizer que Pelé saiu da barriga da mãe já de chuteiras. Para a família Pelé era Dico; para os colegas da escola tornou-se Pelé quando começou a referir-se a Bilé, guarda-redes do Vasco da Gama, erradamente, pronunciando Pelé; os garotos, cruéis, usaram o erro para alcunha. Isto irritava-o tanto que andou à pancada com os colegas e foi suspenso da escola por dois dias – o que lhe valeu uns valentes tapas da mãe.
Quando Pelé chegou ao mundo estávamos em 1940; quando chegou ao Santos íamos em 1955; nesses 15 anos Dico aprendeu tudo sobre a bola de futebol e, muitas vezes, aprendeu-o sem recurso a uma bola: nascido na região de Bauru, no estado de São Paulo, levava uma vida de pobreza, de modo que, em vez de bola, usava uma laranja ou uma meia recheada com papel de jornal amarrotado para dar toques.
A técnica necessária para dominar uma laranja é infinitamente mais complexa que a necessária para dominar uma bola – o que talvez tenha ajudado a que rapidamente Pelé se tenha tornado a estrela dos miúdos do Bauru; além do futebol de 11 Pelé jogava também futebol de 5, um jogo mais rápido, em que se toca mais na bola – Pelé acredita que foi o futebol de salão que o ensinou a pensar e executar depressa.
Aos 13, Pelé entra para as camadas jovens do Bauru na dupla condição de jogador jovem e engraxador das botas dos séniores – o seu primeiro emprego; bastaram dois anos para que Waldemar de Brito, o seu treinador dos juniores do Bauru, o levasse ao Santos, apresentando-o como o melhor jogador da história do futebol; um ano depois Pelé já usava a camisola amarela da canarinha.
A ascensão de Pelé é meteórica: marca no seu primeiro jogo, a 7 de setembro de 1956, com 15 anos, contra o Corinthians de Santo André, torna-se titular e, no intervalo de um ano, guia o Santos ao Campeonato Paulista e torna-se melhor marcador da competição, com 58 golos, um recorde que dura até hoje.
Nessa altura, Pelé já estava muito longe do rapaz que chegou de Bauru, cinco horas de viagem de comboio até São Paulo, seguidas de duas horas de viagem de autocarro até às instalações do Santos. Quando lá chegou quis ver o mar pela primeira vez, meteu a mão na água, levou-a à boca e achou que devia haver algo de errado com o mar, porque sabia a sal. Ainda era um garoto e já tinha a mítica 10 nas costas.
Quando pousou aos botas Pelé acumulara 10 campeonatos Paulistas, entre 1958 e 1973; seis campeonatos brasileiros, entre 1961 e 1968; duas Taças de Libertadores da América (a Champions da América), em 1962 e 1963, três campeonatos do Mundo (1958, 1962 e 1970) e sete Ballons D’Or (entre 1958 e 1970).
Para o mundo, Pelé nasceu na Copa de 1958, quando, com apenas 17 anos, irrompeu nas meias-finais contra França para marcar um hat-trick que deixou o planeta de boca aberta: quem era aquele garoto velocíssimo? Na final marcou dois dos cinco golos com que o Brasil bateu a Suécia, que jogava em casa.
1958 não é 2019: na altura o futebol não era esquadrinhado dia e noite, não havia batalhões de comentadores que nos explicavam que o jogador X tinha um pé esquerdo assim e só fintava para a direita e comera cereais ao pequeno-almoço; nada disso: o Mundial era a forma que o fã comum de futebol tinha de descobrir o futebol de paragens distantes; as transmissões em directo eram raras – e tudo isto era propício a mitos.
Pelé ou Garrincha, a construção do mito
Aos 17 anos Pelé era um mito. Um mito que confirmou o seu talento, mas um mito. Excepto, talvez, para os brasileiros – ainda hoje é mais fácil ouvir um brasileiro dizer que o melhor jogador de sempre do Brasil foi Garrincha do que defender Pelé. (um facto pouco conhecido mas divertido: Pelé e Garrincha nunca perderam um jogo pela canarinha sempre que jogaram ao mesmo tempo.)
Há razões para isto, que se podem resumir assim: há quem defenda que Pelé empola os seus feitos e que o mundo do futebol o permitiu porque comercialmente ele era o herói que o desporto precisava: negro, pobre, bem comportado e religioso – a história de superação que o povo gosta.
Em 1958, dizem os detractores, o melhor jogador da Copa foi Didi (não é uma opinião, é um facto: foi Didi quem recebeu o prémio de melhor jogador do torneio); em 1962 Pelé quase não jogou, porque se lesionou no seu segundo jogo e só retroactivamente a FIFA lhe atribuiu a medalha de vencedor, tornando-o, assim, o único jogador com três Mundiais; em 1970 a equipa do Brasil era tão extraordinária que qualquer um dos 11 podia ter sido o melhor da Copa (em particular Tostão ou Jairzinho).
Quem se der ao trabalho de procurar o que a imprensa brasileira escreveu em 1958, por exemplo, descobrirá que o herói do povo era Garrincha, esse génio da finta cheia de samba que acabou em desgraça devido à sua vertigem pelo álcool. Com o tempo, porém, começa a emergir na imprensa mundial o mito do rapaz que, vindo de nenhures, devolveu a grandeza ao Brasil, que ainda vivia em choque com a derrota de 1950 – houve uma espécie de revisionismo, acerca desse mundial de 1958, simplesmente porque o mundo gosta de histórias e a ideia de um rapaz humilde e crente que um dia dissera ao seu pai que iria devolver a Copa ao Brasil encaixava na perfeição.
Os detractores assinalam ainda que uma boa parte dos milhentos jogos em que Pelé marcou valiam pouco: eram jogos de exibição que o Santos fazia para encaixar dinheiro e fazia muitos: em 1959 Pelé jogou mais de 100 jogos num ano e passou semanas na Europa em amigáveis pagos a ouro.
Ainda hoje em dia clubes ricos como o Barcelona fazem jogos, na pré-época, apenas para encaixar dinheiro e toda esta discussão diz-nos mais sobre nós do que sobre Pelé: nenhum jogador, seja Pelé, Maradona, Messi ou Ronaldo, ganha sozinho ou é, em todos os jogos, o melhor em campo. Temos dificuldade em aceitar que qualquer grande jogador só o é no contexto de uma equipa, de um tipo de futebol que durante um período limitado se impõe a outros futebóis.
O simples facto de Pelé ter pertencido a estas equipas – fossem as selecções vencedoras do Brasil ou as equipas conquistadoras do Santos – e tido um papel fundamental em tantas vitórias, durante tantos anos, diz-nos algo que é muito óbvio para qualquer garoto que se dirija ao Youtube: Pelé era um jogador de eleição. Tão de eleição que em 1961 o governo do Brasil declarou-o ” tesouro nacional oficial”, de modo a impedir que fosse vendido para os clubes ricos do nosso continente.
As duas despedidas, com a passagem pelo Cosmos
Pelé retirou-se duas vezes do futebol: em 1974 despediu-se do Santos, mas continuou a jogar a ocasional partida amigável; em 1975 assinou pelo clube americano Cosmos onde, apesar da idade, contribui para a expansão do futebol naquele país. Encerrou a carreira em outubro de 1977, num jogo entre Santos e Cosmos.
Durante anos e anos Pelé fora um encanto como avançado móvel: razoavelmente baixo (1m73), vivia da combinação de velocidade e técnica, que lhe permitia ultrapassar adversários com facilidade – mas também tinha visão de jogo e um bom passe, o que lhe permitia combinar e desmarcar. Agora tinha 37 anos e o que fazer? Pelé teve sorte: se tivesse nascido 20 anos antes não haveria imagens vídeo dos seus feitos – mas nascera em 1940 e era uma estrela mundial: podia refazer a sua vida.
Foi o que ele fez. De 1970 para a frente Pelé tornou-se numa extraordinária marca comercial: de marcas de relógio a comprimidos para a disfunção eréctil, Pelé fez publicidade a tudo, na qualidade de primeira estrela global do futebol. Pode pensar-se que com o tempo esta vertente diminuiu, mas não: ainda em 2018 a Mastercard criou um cartão Pelé, com uma imagem de um famoso pontapé de bicicleta de Pelé.
Pelé tinha consciência do seu lugar enquanto marca viva e ainda recentemente assinalava que Pelé havia inundado quase todos os aspectos da vida de Edson. Pelé sabe do que está a falar: ele viu Maradona tomar conta de Diego Armando a um ponto em que talvez já não haja retorno para o rapaz inocente que num bairro pobre dos subúrbios de Buenos Aires começou a dar toques numa bola para esquecer a pobreza.
E talvez seja esse o grande mérito de Pelé, o que lhe permitiu manter uma carreira tão longa, fazer parte de tantas grandes equipas, lutar entre os centrais apesar de ser pequeno, criar assistências em barda apesar de não ser o melhor passador, fintar adversários apesar de não ser Garrincha: Pelé tinha os pés bem assentes na terra.
Em 2016, num texto escrito para a Player’s Tribune, no penúltimo parágrafo pode ler-se, na carta que Edson escreve para o seu younger self: “Nunca deixes de ser o Edson”. Mais acima, no início do texto, ele lembra as meias de jornal a fazer de bola, recorda como o pai o atazanava sempre que ele falhava um passe e conta uma história sobre um dia em que chegou a casa com uma manga. A mãe perguntou:
“Dico, onde arranjaste essa manga?”
“Da senhora Maria, ali do outro lado da rua.”
“Mas pediste-lhe?”
“Sim.”
“Então vamos lá perguntar-lhe se lhe pediste”.
Dico não pedira – roubara. E o que há-de bonito na história de Pelé é que, apesar de tudo, ao longo da vida, Edson nunca esqueceu a lição que a mãe deu a Dico nesse dia: todos queremos ser estrelas de futebol, todos queremos ter coisas boas, mas não podemos nunca faltar ao respeito aos outros.
Adeus então a Dico, um moleque que tendo ou não sido o melhor futebolista de todos os tempos, fez algo muito mais importante: ouviu a sua mãe.