Artigo originalmente publicado em maio de 2019 e atualizado a 15 de fevereiro de 2022, a propósito da estreia da série da Netflix “Inventing Anna”.
Dizia ter uma fortuna avaliada em 60 milhões de dólares e criou hábitos compatíveis com uma conta bancária avultada: morava em hotéis de luxo, frequentava festas exclusivas, vestia roupas de marca e viajava em jatos privados. Anna Delvey — cujo nome real é Anna Sorokin — enganou a elite de Nova Iorque, à qual roubou milhares de dólares num período de apenas 10 meses (entre novembro de 2016 e agosto de 2017). Para surpresa de muitos, a mulher de origem russa — e não alemã, como fazia crer — era, afinal, filha de um ex-camionista e não tinha qualquer riqueza acumulada.
A 26 de abril de 2019, Anna Sorokin foi considerada culpada em tribunal de roubar mais de 200 mil dólares a bancos e amigos. A sentença só foi conhecida esta quinta-feira, 9 de maio, com Sorokin a ser condenada a uma pena de prisão de 4 a 12 anos, sendo que os 561 dias já cumpridos vão ser descontados da sentença. A falsa herdeira vai ainda ter de pagar quase 200 mil dólares em restituição, além de uma multa no valor de 24 mil dólares.
A história é tão intrincada que Shonda Rimes, autora de séries de sucesso como “Anatomia de Grey” e “Scandal”, apostou numa produção para o serviço de streaming Netflix, que acaba de se estrear com o nome “Inventing Anna”, com Julia Garner no papel principal. Pelo caminho, a argumentista Lena Dunham preparou uma adaptação de uma peça da Vanity Fair para a HBO, e um livro chegou aos escaparates: “My friend Anna”, assinado por Rachel DeLoache Williams, ex-amiga que testemunhou em tribunal contra Sorokin. “‘Sexo e a Cidade’ cruza-se com ‘Apanha-me se puderes’ na incrível história real de Anna Delvey, uma jovem trapaceira posando como herdeira alemã em Nova Iorque — contada pela antiga editora de fotografia da Vanity Fair que foi seduzida pela sua amizade e enganada em mais de 62 mil dólares”, lê-se no resumo.
[O trailer da série “Inventing Anna”]
A verdadeira Anna Sorokin nasceu na Rússia em 1991 e mudou-se para a Alemanha em 2007, quando tinha apenas 16 anos. Depois de abandonar os estudos universitários, de acordo com um perfil da New York Magazine, Sorokin trabalhou na área das relações públicas e mudou-se para Paris, onde estagiou na Purple — uma revista francesa de moda, arte e cultura fundada em 1992. Nesta fase adotou o apelido Delvey, ainda os pais suportavam as despesas da filha. Já em Nova Iorque, Anna parecia saber exatamente onde estar e quando estar. Várias pessoas que com ela privaram relataram à publicação já citada estranhos hábitos, como pagar sempre com dinheiro vivo, “esquecer-se” de pagar a renda e pedir empréstimos avultados sem nunca devolver a quantia em dívida.
Agora, aos 31 anos, Anna Sorokin tornou-se personagem em diferentes adaptações televisivas, depois de, entre 2013 e 2017, ter sido rosto frequente nas festas exclusivas da cidade que nunca dorme, depois de ter viajado pelo mundo e depois de, em outubro de 2017, ter sido posta atrás das grandes em Rikers Island, a segunda maior prisão dos EUA, situada numa ilha a nordeste de Manhattan. Uma realidade bastante diferente daquela vivida em quartos de hotéis de luxo, aos quais Sorokin já estava habituada.
Os hotéis de centenas de euros a noite
Os empregados do hotel lutavam entre si para carregar as malas de Anna Delvey escada acima. Quem saísse vencedor sabia o que lhe esperava: uma nota de 100 dólares de mão para mão. Uma gorjeta choruda que parecia pactuar com a atitude de uma jovem mulher que, durante a estadia no hotel 11 Howard, no bairro nova-iorquino de Soho, fazia comentários não racistas, mas classistas. A descrição faz parte de um longo perfil publicado no The Cut, da The New York Magazine, em maio de 2018.
Sozinha em Nova Iorque, longe da alegada família abastada, a estadia no hotel 11 Howard prolongou-se de tal forma que Anna Delvey percorria os corredores vestida com leggins transparentes do designer Alexander Wang ou de robe (também ele provavelmente de marca). Rosto em forma de coração, lábios carnudos e olhos a espreitar por detrás de óculos de sol volumosos da griffe Céline. É a descrição que faz Neffatari Davis, a concierge de 25 anos que ficou amiga daquela que pensava ser uma herdeira alemã à espera de receber um riquíssimo fundo de família, o qual seria investido na criação de uma fundação de arte em nome próprio. Anna Delvey era ambiciosa. Sabia circular pelas entranhas da elite de Nova Iorque sem ser detetada. Pagava contas de jantares e de bebidas avultadas, e surgia em fotografias na companhia de caras influentes no meio. Ninguém suspeitou até o inexistente cartão de crédito de Delvey começar a dar problemas e serem os amigos a suportar contas verdadeiramente milionárias.
Após um mês e meio de estadia, Neffatari — a quem Anna fazia questão de pagar vários luxos, de incluir em algumas das suas rotinas e dar descontraída e discretamente notas de 100 dólares — foi incumbida de tentar resolver um assunto delicado. A conta de 30 mil dólares que Anna Delvey devia ao hotel, incluindo faturas do restaurante Le Coucou que ficavam afetas ao número do quarto, continuava por pagar. Porque o 11 Howard era particularmente recente à data em que Anna fez o check-in — e porque estava hospedada mais tempo do que era habitual –, a gerência do hotel, ao invés de pedir um cartão de crédito como segurança, aceitou uma transferência bancária, que demorou a chegar. Mesmo depois de paga, Anna Delvey continuou a acumular dívidas até ao dia em que alteraram o código de acesso ao seu quarto, deixando-a com os respetivos pertences no corredor. Sorokin protestou e mudou-se de armas e bagagens para outras unidades hoteleiras, não sem antes fazer uma paragem em Marraquexe, numa excêntrica viagem pela qual nunca pagou.
Em julho de 2017, o The New York Post escrevia que uma “wannabe socialite” fora detida por acumular milhares de dólares em estadias em dois pequenos hotéis em Manhattan e de ter feito o check-out sem pagar qualquer conta. Anna ficou no hotel Beekman — onde os quartos standard começam nos 369 dólares a noite — entre 7 de junho e 27 de junho desse ano, e acumulou uma conta no valor de 11.518 dólares. Mais tarde, fez check-in no W New York, onde permaneceu duas noites — outros 503.76 dólares que ficaram por pagar. Em abril deste ano foi considerada culpada de quatro acusações de roubo de serviços, três acusações de furto e uma acusação de tentativa de furto.
A excêntrica viagem a Marraquexe
Antes do trabalho do The Cut já a Vanity Fair tinha revelado a história de Anna Sorokin, que “calhou” ficar amiga de Rachel DeLoache Williams, ex-editora de fotografia daquela publicação. Williams testemunhou em tribunal contra a falsa herdeira depois de ter sido obrigada a cobrir o custo de 62 mil euros gastos naquela viagem a Marrocos, com estadia incluída num resort de luxo. “As férias foram ideia da Anna. Ela precisava uma vez mais de sair dos EUA para renovar o visto ESTA, segundo me disse. Em vez de voltar a casa, à Alemanha, sugeriu que fizéssemos uma viagem a um sítio quente. (…) Feliz, concordei em explorar opções, pensando que íamos encontrar tarifas fora de época para a República Dominicana ou para as ilhas Turcas e Caicos. Anna sugeriu Marraquexe, ela sempre quis ir”, escreve Rachel DeLoache Williams no artigo já citado.
Para a estadia em Marraquexe, Anna escolheu o resort de cinco estrelas — considerado um dos melhores no mundo — La Mamounia. O riad privado, com três quartos e piscina, ficou a rondar os 7 mil dólares a noite, despesas significativas para uma editora de fotografia, mas não para uma suposta herdeira milionária que se propôs a pagar tudo. Anna Delvey convidou ainda a personal trainer e um fotógrafo para documentar a viagem (o mesmo que, esta quinta-feira, divulgou imagens inéditas da viagem ao The Guardian). Os quatro ficaram no riad, com Anna e Williams a partilharem o quarto maior. Tanto os bilhetes como a estadia e despesas locais foram forçosamente pagas por Williams quando o cartão de crédito de Anna deixou — como que por magia — de funcionar. Primeiro, falhou quando Anna tentou comprar roupas “caras e de tecido duvidoso” fora do resort, depois, quando chegou a altura de pagar a conta de jantar no restaurante La Sultana. “Também paguei isso, acrescentei à minha ‘conta'”, escreve Williams relutantemente.
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Até àquela viagem a Marraquexe Anna pagava tudo. O estilo de vida “cheio de conveniência” e o “materialismo fácil” eram sedutores. “Ela começou a ver uma personal trainer e convidou-me a juntar. As sessões eram sua oferta , já que ela insistiu generosamente que fazer exercício era mais divertido com uma amiga”, conta Williams, que também usufruía gratuitamente de jantares dispendiosos, entre outros luxos que pareciam ajudar a contar a história de uma amizade particular. Finda a viagem a Marraquexe e já em Nova Iorque, os diversos pedidos de reembolso que Williams fez a Anna transformaram-se “num trabalho a tempo inteiro”. “O stress consumiu o meu sono e alimentou os meus dias. Os meus colegas viram-me definhar. Eu chegava ao escritório pálida e desfeita.”
A ex-editora de fotografia da Vanity Fair viria a descobrir, mais tarde, informações surpreendentemente opostas à sua versão dos factos: um alemão que também emprestara dinheiro à falsa herdeira contou-lhe que, após semanas de insistência, a dívida só foi saldada sob ameaça de envolvimento das autoridades. Mais: o pai de Anna ou era um bilionário russo no ramo petrolífero ou na área da energia solar. “Ele contou que a Anna disse-lhe que recebia cerca de 30 mil dólares no começo de cada mês e que o gastava. E que ela estava para herdar 10 milhões de dólares no seu 26º aniversário, em janeiro último, mas que, por ser desorganizada, o pai fez com que a herança fosse adiada até setembro do mesmo ano, apenas a alguns meses de distância. Eu sabia que algo não estava certo. Tentei chegar à fala com os pais da Anna, mas não consegui encontrar nenhuma forma de o fazer”, escreve Williams.
De acordo com o Ministério Público de Nova Iorque, os 62 mil dólares nunca chegaram, nem mesmo depois de Williams testemunhar em tribunal contra a ex-amiga. Em lágrimas, relatou a sua versão: “Esta foi a coisa mais traumática pela qual já passei. Desejava nunca ter conhecido a Anna. Se pudesse voltar atrás no tempo para não estar onde estou hoje, voltaria atrás”, disse, citada pelo New York Post.
Também em tribunal, o advogado de defesa de Anna Sorokin questionou a antiga editora da Vanity Fair sobre o negócio de 600 mil dólares correspondentes ao livro que Williams vai publicar a 23 de julho e também sobre a venda dos direitos da peça que assinou na publicação onde trabalhava para a produção de um formato televisivo para a HBO. No final de abril, Sorokin foi acusada de várias das queixas apresentadas contra ela, esta não incluída, tal como não foi condenada pela tentativa de adquirir um empréstimo no valor de 22 milhões de dólares para assegurar a fundação de arte em nome próprio.
A fundação de arte e os extratos bancários falsos
Inserida nos círculos nova-iorquinos de arte e moda, Anna Delvey estava determinada em criar o seu clube de artes, de nome algo narcisista “Anna Delvey Foundation” — ou ADF, para simplificar. O edifício perfeito para acomodar este sonho estava no coração de Manhattan, ocupava 45 mil metros quadrados distribuídos por seis andares, no cruzamento entre a Park Avenue e a 22ª. O epicentro do clube seria, segundo o The Cut, “um centro dinâmico de artes visuais” com lojas pop up com a curadoria de artistas como Urs Fischer, Damien Hirst, Jeff Koons e Tracey Emin.
De acordo com a acusação do Ministério Público de Nova Iorque, a 21 de novembro de 2016, numa tentativa de assegurar um empréstimo no valor de 22 milhões de dólares para abrir um clube privado, Anna Sorokin forneceu a um funcionário do City National Bank documentos falsos oriundos de outros bancos que mostravam contas bancárias no estrangeiro com um saldo total de aproximadamente 60 milhões de dólares. Quando, umas semanas mais tarde, o City National Bank recusou o empréstimo, a falsa herdeira mostrou os mesmos documentos a um representante do Fortress Investment Group, que afirmou ponderar o empréstimo caso Sorokin providenciasse 100 mil dólares para despesas legais. “A 12 de janeiro, Sorokin assegurou um empréstimo de 100 mil dólares do City National Bank e convenceu um representante a deixá-la desembolsar dinheiro da sua conta. Sorokin assegurou os representantes do City National Bank que ia transferir os fundos em breve para cobrir o levantamento, mas nunca recompensou o dinheiro em falta”, lê-se na acusação do Ministério Público.
Em fevereiro de 2017, o Fortress Investment Bank já tinha usado aproximadamente 45 mil dólares dos 100 mil de Sorokin em diligências legais e honorários, e continuava a verificar os bens de Sorokin quando esta alegou já não precisar do empréstimo. Ainda assim, Sorokin terá, segundo a acusação, ficado com o restante montante do empréstimo concedido pelo City National Bank, o que correspondia a aproximadamente 55 mil dólares, um valor que foi usado em “despesas pessoais”, incluindo sessões com uma personal trainer, a estadia no hotel 11 Howard e compras diversas.
“Entre 7 e 11 de abril, a ré depositou 160 mil dólares através de cheques sem garantia na sua conta no Citibank e transferiu 70 mil dólares da conta antes que os cheques fossem devolvidos. Ela usou aproximadamente 30 mil dólares para cobrir a conta no hotel 11 Howard, onde estava a viver. Em maio, a ré fretou um avião particular para a Assembleia Nacional de Acionistas da Berkshire Hathaway em Omaha. Ela nunca pagou os 35 mil dólares devidos à empresa, Blade, após a conclusão dos voos de ida e volta”.
Uma das queixas que o Ministério Público avançou contra Anna Sorokin dizia precisamente respeito à tentativa de empréstimo no valor de 22 milhões de euros para a abertura de um clube privado. Era, efetivamente, a queixa mais grave enfrentada pela russa, da qual ficou ilibada em abril último, findo o julgamento que durou sensivelmente um mês e que fez correr muita tinta por ter funcionado, para Sorokin, como uma espécie de passerelle.
As audições e a “moda de tribunal”
“Fake until you make it.” A frase popularmente conhecida foi usada em tribunal pelo advogado de defesa de Anna Sorokin já em fase de argumentos finais. Todd Spodek, o advogado da falsa herdeira, comparou-a ao cantor Frank Sinatra, cuja agência de comunicação chegou, no início da carreira do músico, a pagar para que mulheres aparecessem nos seus espetáculos e “desmaiassem” a seus pés, escreveu o New York Post.
O julgamento de Anna Sorokin, no Supremo Tribunal de Manhattan, durou aproximadamente um mês e, apesar da história invulgar protagonizada pela ré, foram as escolhas de outfit da falsa herdeira que mais deram que falar. Anna Sorokin estava tão preocupada com a sua imagem que contratou uma estilista, Anastasia Walker, para fazer a curadoria dos looks a usar em tribunal — algo que também aconteceu com Winona Ryder, que foi “estilizada” por Marc Jacobs quando foi a tribunal (em 2001, a atriz foi detida por furtar peças de roupa). As escolhas de Sorokin — que incluíram várias peças de design, da camisa preta transparente da Yves Saint Laurent ao vestido preto de Michael Kors e às calças de Victoria Beckham — fizeram com que muitos meios de comunicação se questionassem: ela está num tribunal ou num evento de passadeira vermelha?
Os looks não só cativaram a atenção da imprensa como dos internautas, sendo que chegaram a ser criadas contas de Instagram unicamente dedicadas à roupa de Sorokin em tribunal. O comportamento da falsa herdeira deixou a juíza Diane Kiesel furiosa por diversas vezes, precisamente por esta tratar o julgamento como um desfile de moda. A completar a imagem de “socialite”, Anna mostrou-se várias vezes em tribunal como estando “aborrecida” e continuou a insistir — sem nunca explicar como — que pagaria tudo o que devia.
Quase três anos depois, ao The New York Times, em vésperas da estreia de “Inventing Anna”, comentava o formato e falou da vida depois de Riker’s — quando ainda se encontrava detida, Sorokin recebeu 320 mil dólares pela série da Netflix inspirada na sua história pessoal, um valor que terá sido usado para custear advogados, restituições e outros gastos.
Condenada em maio de 2019 a uma pena compreendida entre os 4 e os 12 anos, acabou por sair em liberdade condicional em 11 de fevereiro de 2021, meses depois de ter perdido desculpas durante uma audiência. Em março, no entanto, ficaria sob custódia do Departamento de Imigração (ICE), já que o visto de Anna, que lhe permitia permanecer nos EUA, expirara em 2020. Colocada numa unidade de dentenção em New Jersey, Sorokin haveria de ser transferida para a Cadeia de Orange County, em Nova Iorque, onde aguarda data de deportação até hoje.