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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
A cobrança de propinas para a frequência do ensino superior é um dos temas mais frequentes no debate político e nas lutas estudantis. Em Portugal, nos anos 1990, serviu de contexto para cargas policiais, discussões acesas, greves estudantis e demissões de ministros. Mais recentemente, estabilizada a sua existência e definido o seu valor de referência, os debates giraram sobretudo à volta do seu congelamento (estudantes e partidos políticos à esquerda procuraram sempre evitar actualizações do valor em função da inflação). Foi precisamente esse o caso, em 2016, quando o primeiro Orçamento do Estado da geringonça congelou as propinas e os reitores protestaram, exigindo uma dotação orçamental superior em compensação. Nessa altura, o ministro Manuel Heitor respondeu de forma categórica: a situação das propinas estava “regulada e estabilizada”. Dois anos depois, em 2018, percebe-se que não é bem assim: o governo decidiu baixar o valor das propinas para 856 euros (reconhecendo a influência dos parceiros do PS nessa decisão) e o ministro estabeleceu como horizonte a abolição de propinas. Uma mudança repentina, portanto.
As propinas são uma importante fonte de receitas para o financiamento das instituições de ensino superior e permitem, por essa via, atenuar o peso orçamental para o Estado da operação das universidades e politécnicos. Essa fonte de receitas é, de resto, cada vez mais importante, com aumentos sucessivos do volume total arrecadado pelas instituições de ensino superior (gráfico 1), que se explica pelas actualizações e pela consolidação do número de estudantes matriculados (gráfico 2). Concretamente, em 2017, os estudantes pagaram 330 milhões de euros em propinas, o que corresponde a cerca de 18% do financiamento das instituições de ensino superior. Com a fixação do valor da propina nos 856 euros (um corte de 212 euros, cerca de 20%), o impacto orçamental esperado para o Estado nos próximos anos é um aumento de despesa de cerca de 65 milhões de euros/ano a partir de 2020 – embora possa ser colmatado por acertos noutras áreas de despesa. Não é insignificante.
A perspectiva de financiamento das instituições é o ângulo habitual do debate, que se foca sobretudo no risco que baixar propinas representa para a sustentabilidade das universidades e politécnicos – quanto mais financiamento estiver dependente do Orçamento do Estado, maior o risco de oscilações no financiamento baseadas nos ciclos políticos. Este ano em particular, também muito se tem discutido a necessidade de investir sobretudo em residências para estudantes. Mas, do ponto de vista das políticas públicas e olhando apenas às propinas, há ainda outras questões interessantes. Duas, em particular. Primeiro: o valor das propinas em Portugal é elevado ou é baixo, comparativamente a outros países europeus – ou seja, faz realmente sentido mexer nesse valor ou não? Segundo: que outras formas (mais eficazes) existem de, através das propinas e do sistema de acção social (bolsas), apoiar os estudantes e garantir mais acesso ao ensino superior? Estas são as questões-chave que neste ensaio serão discutidas. Tudo para concluir que, no campo das hipóteses realistas, mais determinante do que baixar o valor das propinas é definir quais os alunos que as pagam e quais os apoios do Estado aos estudantes.
As propinas em Portugal: como se definiu o valor a cobrar aos estudantes?
Hoje, frequentar uma licenciatura no ensino superior público custa aos estudantes 1063 euros por ano lectivo. Há quem ache muito e há quem ache pouco. Mas, antes de avaliar e proceder a comparações internacionais, vale a pena perceber o que levou à fixação desse valor em Portugal – e perceber como foi um processo exigente, longo e repleto de obstáculos.
A história das propinas no Ensino Superior é uma cronologia de avanços e recuos. E arranca, em 1991, com um aviso dos estudantes: “não pagamos”. Enquadre-se o ponto de partida: nessa altura, o valor das propinas tinha ainda como referência o quadro legislativo de 1941, que amarrava o valor anual a cobrar aos estudantes nuns simbólicos 1200 escudos – algo que, convertido a valores actuais na calculadora do Pordata, seria cerca de 12 euros. Ora, nesse ano de 1991, o governo liderado por Cavaco Silva decidiu proceder a uma alteração legislativa, de modo a actualizar de forma substantiva os valores a serem cobrados. O resultado foi pouco eficaz e gerou uma espécie de tumulto político no sector, que envolveu governo, partidos, presidência da república, estudantes e reitores.
A primeira “lei das propinas” foi aprovada no parlamento em 1992, com Couto dos Santos como ministro – Diamantino Durão, o ministro anterior, durara apenas 138 dias no cargo, vítima das contestações dos estudantes pela intenção de mexer nas propinas e devido à Prova Geral de Acesso (PGA). Nessa lei, o valor da propina passa progressivamente de 1200 escudos para um mínimo de 50.000 escudos em 1992/1993, até chegar em 1994/1995 aos 200.000 escudos (cerca de 1650 euros aos valores de hoje). O valor específico para cada curso dependeria de definição pelos senados das universidades e pelo Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP), que decidiriam entre um mínimo (25% do custo do aluno) e um máximo (o dobro do valor mais baixo definido na lei). Nessa altura, nem todos pagariam: o valor a pagar por cada estudante seria calculado em função do IRS do seu agregado familiar, havendo quatro escalões – isenção, 30%, 60% e 100%.
Isso foi o que se escreveu no papel. Na prática, foi tudo bastante diferente, acabando o ano lectivo 92/93 sem ter sido possível cobrança de propinas. Por um lado, os estudantes fizeram todos os possíveis para boicotar a implementação da lei. Começaram por inviabilizar as reuniões dos senados nas universidades – que deveriam fixar o valor das propinas. E, mais tarde, apelaram mesmo ao chamado “boicouto” (sátira com o nome do ministro) às propinas, entupindo os serviços académicos da acção social com pedidos de isenção – e tornando a sua análise morosa e difícil. Por outro lado, os próprios reitores se sentiram desconfortáveis com a responsabilidade atribuída às universidades e evitaram tomar decisões (também por receio da contestação estudantil). E, para complicar tudo, o Presidente da República, Mário Soares, enviou o diploma para o Tribunal Constitucional, com dúvidas sobre a constitucionalidade da progressividade do pagamento das propinas e o carácter tendencialmente gratuito da educação. A tensão era tal que, perto do final do ano de 1993, tudo culminaria numa carga policial sobre os estudantes em frente ao parlamento, numa greve nacional dos estudantes e na demissão do ministro Couto dos Santos.
Em 1994, já com Manuela Ferreira Leite à frente do ministério, surge nova alteração legislativa, que visou atenuar alguns dos efeitos da lei de 1992 e corrigir algumas das suas imperfeições técnicas. Nessa altura, passa a existir uma propina nacional (em vez de valores de propinas por instituição), diminuem-se os escalões para os estudantes para apenas três (isenção, metade do valor e valor integral) e, em vez dos senados das universidades, a responsabilidade pela fixação do valor das propinas passa para o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP). Mas o tumulto político e estudantil não abrandou e, no final, os reitores recusam-se a fixar o valor das propinas. O ministério impôs, então, uma propina que rondou os 80.000 escudos – cerca de 630 euros aos valores de hoje. Durou muito pouco.
Com a vitória eleitoral do PS, em 1995, os estudantes sentiram ter ganho a guerra: logo após a tomada de posse do novo governo, os efeitos das leis de 1992 e 1994 são suspensos e os estudantes voltam a pagar os 1200 escudos estipulados na legislação de 1941. Dois anos mais tarde, em 1997, o PS apresenta uma Lei-Quadro do Financiamento do Ensino Superior Público, na qual define um novo enquadramento jurídico para a cobrança de propinas: o valor fixado seria o equivalente ao salário mínimo nacional vigente no início do ano lectivo. Apesar dos protestos estudantis continuarem, foram progressivamente perdendo força e a implementação da lei fez o seu caminho normal.
O enquadramento jurídico de 1997 vigorou até 2003, quando o governo PSD-CDS fez aprovar uma nova Lei de Bases do Financiamento do Ensino Superior e alterou os valores de referência das propinas. O mínimo passaria a ser 1,3 vezes o salário mínimo e o máximo a actualização do valor original de 1941, através da aplicação do índice de preços no consumidor do Instituto Nacional de Estatística (cerca de 852 euros). Apesar de actualizações legislativas desde então, foi este o racional que prevaleceu na fixação do valor da propina para a frequência do ensino superior público – que todos os anos foi actualizado, até atingir os 1063,47 euros em vigor para o ano lectivo 2018/2019.
As propinas em Portugal e na Europa
A história mostra como não foi fácil fixar um valor para as propinas em Portugal. De tal modo que a opção política durante os últimos 20 anos foi manter o valor da propina relacionado com aquele definido em 1941. Faz isso ainda algum sentido? A questão que raramente se coloca é se, de uma perspectiva comparada, esse valor é realmente elevado e se diferencia dos valores praticados nos outros países europeus. É essa a análise que em seguida se faz.
Olhando para os dados dos valores absolutos das propinas (gráfico 3), a resposta não é esclarecedora: dependerá sempre da perspectiva. Por um lado, há alguns países europeus com propinas mais elevadas – Irlanda, Holanda, Hungria, Itália e Espanha – sendo que entre esses estão dois países do sul europeu. Ou seja, visto deste ângulo, as propinas em Portugal não são excessivamente elevadas e poder-se-ia dizer que Portugal está numa posição média-alta da classificação. Acresce ainda assinalar que o novo valor de propina para 2019/2020, os referidos 856 euros, não altera a classificação relativa de Portugal nesta lista de países europeus. Por outro lado, é logo perceptível que um grupo significativo de países europeus optou por não cobrar propinas aos seus estudantes (Rep. Checa, Grécia, Eslovénia, Áustria, Dinamarca, Alemanha, Polónia, Finlândia e Suécia) ou por cobrar apenas um valor simbólico, como se faz em França (propina de 184 euros). Ou seja, a haver um padrão, seria o de não cobrança de propinas.
Se os valores absolutos não permitem uma leitura definitiva, olhe-se então para a percentagem de estudantes que realmente pagam propinas. Esta informação é crucial: se o número de estudantes efectivamente chamados a pagar propinas for diminuto, é pouco relevante que a propina seja elevada – ela só se aplicará aos estudantes com recursos financeiros para a suportar. E, como se pode observar no gráfico 4, são muitos (quase todos) os países que aplicam algum tipo de isenções de propinas aos seus estudantes, com base nos rendimentos do seu agregado familiar. Portugal é um dos dois países onde 100% dos estudantes são chamados a pagar propinas, mesmo que recebam bolsa de estudo.
(Uma nota importante: isenção de propina não é o mesmo do que bolsa de estudo. Em Portugal, não há isenções de pagamento de propinas, mas há bolsas de estudo. Nos países onde há isenções de pagamento de propina também existem geralmente sistemas de bolsas. Ou seja, um não tem de invalidar o outro.)
Para facilitar a comparação, é possível aplicar uma ponderação do valor da propina em função da percentagem de alunos que a vão pagar (gráfico 5) – na prática, indica o esforço financeiro médio dos estudantes para frequentar o ensino superior. E, aí, tudo se torna bastante mais claro. Por exemplo, em Espanha, a propina é ligeiramente mais elevada do que em Portugal, mas apenas 70% dos estudantes pagam propina, quando em Portugal é 100% – e, ponderando isso na comparação, o esforço médio exigido pelo Estado espanhol aos seus estudantes é na verdade inferior (equivalente a 757 euros) em relação ao português (1063 euros). O que este gráfico 5 demonstra, portanto, é que Portugal está mesmo entre os países com propinas mais elevadas, no sentido em que mais esforço exige (em média) aos estudantes – acima só tem Holanda, Irlanda e Itália. Ora, todos estes países apresentam um PIB per capita mais elevado do que Portugal, o que sugere que Portugal exige, efectivamente, um esforço financeiro dos mais elevados no contexto europeu. E o factor decisivo é este: não havendo isenções nas propinas, o valor da propina aplica-se a todos os estudantes, não poupando os jovens mais carenciados desse encargo – algo que, em regra, sucede na grande maioria dos países europeus.
Os apoios sociais aos estudantes em Portugal e na Europa
Olhar para os valores fixados e as isenções para as propinas é observar apenas uma parte da equação. Na outra metade, existe um sistema de apoio social aos estudantes, no sentido de providenciar bolsas de estudo ou apoios indirectos e impedir que as dificuldades económicas constituam um entrave determinante à frequência do ensino superior. Isto é na teoria. Na prática, nunca há sistemas perfeitos e a avaliação é muito difícil. Em Portugal, sendo certo que a atribuição de bolsas de estudo em função dos rendimentos do agregado familiar é imprescindível para garantir equidade de acesso ao ensino superior, não se sabe ao certo quantos jovens desistem de frequentar os cursos que desejam por razões económicas – há uns anos, tal levantamento foi encomendado pelo ministério às instituições de ensino superior, mas foi difícil para os serviços académicos obterem essa informação. Ou seja, não se conhece com rigor a dimensão do problema.
Olhe-se, então, ao que se conhece. Em Portugal, no ano de 2017, o Estado apoiou 72 mil bolseiros no ensino superior, cerca de 20% dos matriculados (gráfico 6). Este número de estudantes apoiados é importante de assinalar, porque retoma os níveis do período entre 2007 e 2010, quando houve entre 71 mil e 75 mil estudantes com bolsa de estudo atribuída. E porque, mais recentemente, no período do ajustamento financeiro e da crise económica, estes valores baixaram acentuadamente: 56 mil estudantes apoiados em 2012 (14% dos matriculados), 59 mil em 2013 (16%), 62 mil em 2014 (17%) e 64 mil em 2015 (18%). Ou seja, o sistema de apoio aos estudantes tem actualmente um alcance maior do que nos últimos cinco anos, regressando aos níveis mais altos anteriormente registados. Sem surpresa, se se olhar para a despesa orçamental executada (Acção Social Directa/Bolsas e Indirecta/cantinas, residências, etc) nesses anos, a mesma tendência se verifica: queda no período do ajustamento financeiro e, agora, aproximação aos valores dos anos pré-troika (gráfico 7).
O valor mínimo da bolsa de estudo é o valor da propina. Isto significa que a atribuição da bolsa mínima serve como uma espécie de isenção de propinas. Consequentemente, é expectável que, a partir de 2019/2020, a despesa com bolsas de estudo diminua, face ao novo valor de propina nos 856 euros. Da mesma forma, espera-se que o número de estudantes apoiados com bolsa de estudo diminua e, para além disso, que os valores dos apoios aos estudantes também diminuam. Por duas razões. Primeiro, porque baixando em 20% o valor da propina, valor de referência para o cálculo dos apoios aos estudantes, está-se igualmente a restringir a elegibilidade dos estudantes – haverá entre os bolseiros de hoje alguns que, com uma propina baixada a 856 euros, deixarão de ser bolseiros e passarão a ter de suportar os custos da frequência do ensino superior. Segundo, porque os valores mínimos de apoio passarão a ser os tais 856 euros, reduzindo a despesa do Estado com a Acção Social Directa.
Importa agora olhar para o caso português no contexto europeu – só assim dá para perceber se, por exemplo, a percentagem de estudantes apoiados está alinhada com o padrão europeu. Ora, olhando para as comparações europeias (gráfico 8), Portugal fica sensivelmente no meio da tabela. Mas há mais pontos de relevo que importa destacar. O primeiro é que, no cimo da classificação, estão três países do norte da Europa – Dinamarca (89% de bolseiros), Suécia (88%) e Finlândia (69%) – que nem sequer cobram propinas aos seus estudantes. Ou seja, nessa zona da Europa (mais rica e com índices de formação mais elevados), não só a frequência do ensino superior não acarreta custos para os estudantes como há ainda uma grande maioria dos jovens a receber bolsas de estudo para financiar os seus custos de vida. Do ponto de vista orçamental, este é um esforço muito grande e que dificilmente poderá ser reproduzido (de forma realista) noutros países europeus, muito menos em Portugal.
O segundo ponto a destacar é que, sem contar com os países nórdicos, os Estados europeus que apresentam uma percentagem de bolseiros superior à de Portugal não cobram também propinas a todos os seus estudantes. Na Alemanha e na Eslovénia, onde a percentagem de bolseiros é sensivelmente idêntica à de Portugal, os estudantes não pagam propinas de todo. Em França, onde há 33% de bolseiros entre os estudantes matriculados, as propinas são simbólicas (184 euros). Na Irlanda, onde as propinas são altas, só 57% dos estudantes as pagam e 43% dos estudantes matriculados são bolseiros. Na Hungria, há 24% de bolseiros e, para além disso, apenas 32% dos estudantes pagam propinas. Em Portugal, todos pagam propinas e, apesar de 24% dos matriculados serem bolseiros, alguns recebem apenas o valor mínimo, que cobre exclusivamente o valor da propina – isto é, são tratados como bolseiros, mas na prática só têm acesso uma espécie de isenção de propina. Se esses estudantes forem descontados destas contas, o real número de bolseiros (para comparação europeia) é inferior, colocando o caso português numa posição comparativa mais negativa.
Explicando por outras palavras: visto por este ângulo, tendo em conta que Portugal cobra propinas a todos os estudantes, o caso português é mais desfavorável para os estudantes do que aparenta ser à primeira vista – na maior parte dos países, os estudantes podem ter isenção de propinas e bolsa, em Portugal só podem ter bolsa (que, no mínimo, suporta os custos da propina). Consequentemente, o valor médio anual da bolsa de estudo, supostamente de 1753 euros (2017), é efectivamente de apenas 690 euros/ano, após se descontar o valor da propina.
Apoiar os estudantes: que outros caminhos nas políticas públicas?
Quando se acompanha debates que cobrem o tema deste ensaio, há uma pergunta que surge com frequência: afinal, se a educação deve ser tendencialmente gratuita, será legítimo cobrar propinas? A questão é um ponto de partida importante e parece sugerir que um sistema justo seria aquele que não cobrasse aos estudantes. Ora, não é bem assim. Sem pretender entrar no debate constitucional, nem apontar caminhos certos e errados, há um conjunto de evidências empíricas que importa não perder de vista neste debate.
A primeira é que a formação no ensino superior é muito compensatória financeiramente. Um indivíduo com formação superior terá uma maior probabilidade de obter salários mais elevados em relação a um outro indivíduo sem formação superior. O mesmo raciocínio se aplica em relação à obtenção de emprego (mais fácil para quem tenha formação superior) e à passagem pelo desemprego (mais curta para quem tenha formação superior). O que este ponto obriga a ter em conta é que o custo associado às propinas (que cobre apenas uma pequena parte do custo por aluno) é rapidamente recuperado quando o estudante entrar no mercado de trabalho. A segunda evidência é que não há uma relação estabelecida entre existência de propinas e menor frequência do ensino superior. Isso é particularmente claro no caso português, quando a introdução de propinas na década de 1990 não significou menor acesso aos cursos superiores – pelo contrário, até entraram mais estudantes. Em contrapartida, nos anos da troika diminuiu acentuadamente o número de estudantes matriculados, sugerindo que, mais do que o valor da propina, a situação económica dos agregados familiares é mais determinante para a decisão de frequentar o ensino superior. A terceira evidência é que as propinas e a acção social fazem parte de um equilíbrio delicado no financiamento das instituições de ensino superior. Como tal, o desafio das políticas públicas é, na medida do possível, preservar esse equilíbrio e melhorar as condições de acesso ao ensino superior por parte dos estudantes. Se esse equilíbrio se romper, por exemplo acabando com a cobrança de propinas, o financiamento para as instituições de ensino superior terá de vir do Estado (que, por seu lado, terá de o retirar de outra rubrica do Orçamento do Estado). Ou seja, há opções que só se podem discutir quando os recursos existem: puxar a corda para um lado sem aliviar do outro poderá levar à ruptura do sistema.
Estes pontos enquadram o desafio: haver propinas não é forçosamente um problema, mas umas formas são mais eficazes do que outras para as introduzir no sistema, garantindo financiamento às instituições de ensino e protegendo os estudantes de contextos sociais mais desfavorecidos. Obviamente, na prática da maior parte dos casos, as diferenças de país para país medem-se sobretudo através de oscilações nos valores das propinas, no grau de isenção de alguns estudantes e nas percentagens de atribuição de bolsas de estudo. Existem, contudo, muitas outras formas de olhar para estes mecanismos de financiamento do ensino superior e para as soluções na satisfação das necessidades dos estudantes – sendo que nenhuma é perfeita e todas têm riscos. Dois exemplos de práticas diferenciadas no contexto europeu.
A Estónia, onde o mérito determina a isenção de propinas. Os estudantes na Estónia estão isentos do pagamento de propinas. No entanto, esta isenção vem com um compromisso: os estudantes têm de ter aproveitamento académico. Caso não obtenham aprovação em todas as disciplinas, os estudantes têm de pagar um valor de 40 a 45 euros por cada crédito académico deixado para trás. Este sistema garante que a gratuitidade da frequência do ensino superior vem com reforçada responsabilidade dos estudantes e previne má utilização de recursos públicos. Mas tem um problema: uma taxa de desistência dos estudantes razoavelmente elevada. Por exemplo, no ano lectivo 2017/2018, dos 46 mil estudantes matriculados no ensino superior, 8 mil desistiram – ou seja, 17% dos estudantes.
O Reino Unido, onde existe um sistema de empréstimos bastante eficaz. As bolsas de estudo financiadas pelo Estado são o mecanismo de apoio mais frequente no contexto europeu, embora em alguns países se façam empréstimos aos estudantes. O exemplo mais emblemático é o Reino Unido, onde se fazem empréstimos em grande escala, através dos quais os estudantes se comprometem a devolver, num prazo de tempo alargado, o valor que lhes foi emprestado para frequentar o ensino superior. O pressuposto aqui é o de que a formação superior garante níveis de rendimentos futuros acima da média – permitindo, portanto, a devolução dos valores em causa. No entanto, para atenuar o risco para os estudantes, a devolução dos empréstimos só se aplica aos jovens que, após completar o ensino superior, obtenham rendimentos acima de um valor pré-definido – protegendo, assim, os estudantes que, por uma razão ou por outra, não consigam vingar no mercado de trabalho. Este sistema tem sido muito elogiado pela OCDE, nomeadamente porque conseguiu proporcionar uma maior equidade no acesso ao ensino superior. Mas tem um inconveniente: a dívida dos estudantes para com o Estado não pára de aumentar. Cada ano, 16 mil milhões de libras são emprestadas a cerca de um milhão de estudantes e, em Março de 2018, a dívida total rondava os 105 mil milhões de libras – um valor que, para se ter noção, é superior ao Orçamento do Estado de Portugal. Estima-se que, em 2050, a dívida possa alcançar os 450 mil milhões de libras e que apenas 30% dos estudantes consigam pagar os seus empréstimos integralmente.
So what? Cinco pontos-chave sobre as propinas no ensino superior (e o recente anúncio de revisão do seu valor)
Primeiro ponto: Portugal vai baixar o valor das propinas em 2019 por razões políticas, e não por esta ser uma decisão ponderada no âmbito das políticas públicas. Isso significa que muitos dos riscos associados (e descritos neste ensaio) não foram ponderados, da mesma forma que não foram avaliadas melhores utilizações do investimento que a medida implicará para o Estado. Aliás, nem sequer foram medidos os efeitos que a medida terá nos estudantes, nomeadamente a previsível diminuição do número de bolseiros. Nesse sentido, olhando ao procedimento, foi uma decisão irresponsável – foi a primeira vez que se alterou o valor de referência das propinas sem um amplo debate sobre o tema. E a decisão terá efeitos de longo prazo, porque a história mostra como é difícil fixar valores de referência para as propinas, em particular quando é para os aumentar.
Segundo ponto: o mais eficaz para fins de equidade é definir os critérios de isenções de propinas (em vez de mexer no valor da propina) – isto é, determinar quais são os estudantes que realmente têm de pagar propinas e quais ficam isentos. No contexto europeu, o valor actual da propina em Portugal não se destaca por ser particularmente elevado. Onde Portugal se destaca (pela negativa) é pelo facto de todos os seus estudantes terem de pagar propina, isto é, pelo facto de não haver isenções em função dos rendimentos dos agregados familiares dos estudantes – quase todos os países aplicam alguma forma de isenção. São as isenções que fazem efectivamente a diferença, porque agem de forma benéfica e direccionada para os estudantes mais carenciados. Pelo contrário, mexer no valor das propinas é alterar algo para todos, tanto para os que poderiam pagar como para os que têm maiores dificuldades financeiras (que, em vez de estar isentos, continuam a ter de suportar despesas).
Terceiro ponto: o sistema de acção social português está alinhado com o padrão europeu em número de beneficiários. Além disso, a despesa executada em acção social directa e indirecta está consolidada em valores que rondam os 300 milhões de euros por ano (inclui bolsas, cantinas e residências). O único problema é o mesmo do acima referido: na medida em que os estudantes não têm isenções de propinas, uma grande parte da bolsa de estudo dos estudantes bolseiros serve meramente para pagar a propina, e não tanto para apoiar financeiramente os estudantes nos custos de vida associados à frequência do ensino superior. Além disso, como já foi sugerido pelos estudantes, se um dos seus maiores problemas é a falta de residências universitárias, problema que as bolsas não ajudam a resolver, talvez uma aposta do Estado nessa área fosse prioritária (em detrimento de baixar o valor da propina – e bastaria fazer tal investimento uma única vez (ou seja, a despesa não se repetiria anualmente).
Quarto ponto: a diminuição do valor das propinas vai ter consequências na atribuição das bolsas de estudo aos estudantes mais desfavorecidos. O raciocínio é simples de retomar: o cálculo das bolsas tem em conta o referencial do valor da propina, pelo que baixar o valor da propina vai excluir de bolsas os jovens que estavam mais próximos do limiar de elegibilidade. Para esses estudantes, a opção de baixar as propinas, em vez de introduzir isenções ou reforçar a acção social, vai ser muito penalizadora: antes, com propinas a 1063 euros, tinham bolsa que cobria as propinas; em 2019, com propinas a 856, esses jovens já não serão elegíveis para bolsa e terão de pagar uma despesa que anteriormente não tinham.
Quinto ponto: as experiências internacionais mostram que é possível compatibilizar maiores níveis de equidade no acesso ao ensino superior com promoção do mérito académico (caso da Estónia) ou através de empréstimos ao Estado (Reino Unido). Obviamente, se pensarmos nos cenários ideais, os países escandinavos podem entusiasmar – porque têm isenção total de propinas e apoios sociais de grande alcance – mas esse modelo é extremamente caro e irrealista para o caso português. Talvez a maior aprendizagem a retirar das comparações internacionais seja mesmo essa: o financiamento do ensino superior vive de equilíbrios entre a promoção da competitividade das instituições e os apoios aos estudantes para garantir equidade no acesso. As fórmulas bem-sucedidas são aquelas que promovem um lado sem prejudicar o outro.