Existe uma forma de codificar a informação que permite, a quem a envia e a quem a recebe, saber se está a ser vigiado. Parece uma utopia. Mas comunicar de forma segura já é uma realidade, através da criptografia quântica. Dois palavrões que afinal são uma arte baseada numa propriedade surpreendente. Uma qualidade que muda a forma como olhamos para a informação. Mas vamos por partes.
“A criptografia é a ciência, e se calhar também a arte, de cifrar a informação, de tornar a informação secreta”, começa por explicar Yasser Omar, 40 anos, professor associado no Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico. “A criptografia quântica utiliza os princípios da Física Quântica para oferecer maior privacidade nas comunicações.” Enviar um email, fazer compras na Internet, realizar movimentos na conta do banco ou votar eletronicamente com total privacidade é possível. Pode parecer ficção científica, mas não é. Entramos no domínio da Física Quântica, mas a conversa vai ser sobre partículas de luz, os fotões.
Yasser Omar doutorou-se na Universidade de Oxford (Reino Unido) em 2003, em Física Quântica, a disciplina que tenta explicar o que se passa na natureza a um nível tão pequeno que é invisível. “O que me atraiu mais foi precisamente a relação entre a Física e a informação. E essa ligação é mais interessante ao nível da Física Quântica.” O então estudante de Engenharia Física Tecnológica queria dedicar-se à ciência fundamental. Hoje é físico teórico.
“As leis da chamada Física clássica (como, por exemplo, as leis de Newton) são extremamente gerais, aplicam-se da mesma maneira às moléculas e às galáxias.” Mas na ordem de grandeza dos átomos, “essas leis deixam de ser válidas e as que são válidas são as da chamada Física Quântica.”
A ideia da criptografia quântica é a de usar os princípios da física quântica para codificar a informação de uma forma que a torne mais segura. “A criptografia quântica, em princípio, é inviolável. Ou seja, não seria possível fazer escutas. Ao contrário das comunicações atuais que, como nós bem sabemos, mesmo que sejam cifradas ainda podem ser intercetadas”, diz Yasser Omar.
“A Física Quântica assenta em vários princípios, alguns deles bastante surpreendentes. Um é o princípio da observação.” Isto quer dizer duas coisas: a primeira é que quando se observa um sistema nunca se consegue extrair a informação toda, e a segunda é que a simples observação altera o estado do sistema. Um exemplo prático: “é como eu dizer que quando olho para os ponteiros do meu relógio, o simples facto de olhar para os ponteiros, faria com que eles mudassem de posição.” Parece que estamos no domínio da ficção científica, a descrever uma realidade paralela. Mas estamos no real e, como tantas vezes acontece, a realidade ultrapassa a ficção.
“Isto é tão estranho”, admite Yasser Omar. “Obviamente, isto é extremamente difícil de aceitar porque nós não temos esta experiência. Porque nós somos seres que estamos à escala da Física clássica, não estamos à escala dos átomos.” A natureza tem razões que a própria física, muitas vezes, desconhece.
“Nem nós, os especialistas, compreendemos muito bem porque é que a Física Quântica tem este princípio e é por não o compreendermos que o enunciamos como um princípio,” continua o físico. “Mas se o aceitarmos, temos uma teoria muito poderosa, a teoria quântica, que nos permite descrever e prever o comportamento da matéria à escala atómica, com aplicações e implicações enormes.”
“Este princípio muito difícil de engolir, diria eu, dá-nos uma teoria — a teoria quântica — que funciona muito bem”, conclui. Embora ainda não esteja completamente explicado, é o princípio da observação que permite que a informação seja encriptada de forma segura.
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As comunicações atuais funcionam no chamado regime clássico e são feitas através de um feixe com milhões e milhões de fotões para codificar os bits de informação. No regime quântico, trabalha-se com um fotão individual por cada bit de informação e passa a chamar-se bit quântico.
A um nível mais prático, isto significa que temos um emissor que está a enviar um sinal (ou mensagem) ao recetor, codificado em partículas de luz — os fotões — e quando trabalhamos com elas, uma a uma, estamos no regime quântico.
“E se alguém tentar intercetar a comunicação e tentar fazer uma escuta, o que é que tem que fazer? Tem que intercetar cada uma dessas partículas de luz que eu envio, onde a informação vai codificada. Quem está a fazer a escuta vai querer extrair a informação e, para isso, tem que fazer uma observação do estado daquela partícula de luz,” explica o especialista. Quando se observa cada uma dessas partículas de luz, entra em ação o princípio da observação. O mesmo que diz que quem está à escuta não consegue extrair a informação toda, logo não consegue aceder a toda a mensagem. E depois, escutar (ou observar) faz com que o sistema (ou a mensagem) mude e quem está a comunicar apercebe-se dessas alterações.
“O emissor e o recetor podem enviar uma série de “bits quânticos” (ou seja, bits — literalmente, pedaços — de informação codificada no regime quântico) que não contêm segredo nenhum só para testar se alguém está à escuta. Podem previamente combinar ou falar paralelamente por um canal não seguro, a dizer que estão a enviar informação que não tem segredo. Combinam o que é enviado e verificam o que é recebido. E através desta combinação, o recetor vai observando os bits quânticos e vê se está a receber o que era suposto ou algo diferente, porque a ação da escuta alterou a informação. O emissor e o recetor conseguem detetar que alguém está a interferir ou está potencialmente à escuta e, a partir desse momento, param de comunicar. É essa a segurança que a criptografia quântica oferece.”
“A criptografia quântica neste momento já é uma realidade comercial, já é possível comprar esta tecnologia, existem três ou quatro empresas no Mundo que a vendem”, explica Yasser Omar. A ciência que está por detrás desta tecnologia é complexa, mas chega ao comum dos mortais através de um interface (hardware) que se liga ao computador e que basta ligar (plug and play). Parece simples, demasiado simples para ser verdade. Afinal, como funciona?
“Nós escrevemos o nosso email normalmente e, antes de a informação ser enviada pela fibra ótica, passa pelo aparelho de distribuição de chave criptográfica quântica. E o que o aparelho faz é transformar todos os bits clássicos da minha mensagem em bits quânticos. Emite-os um a um, como partículas individuais de luz, fotões.” A parte complicada acontece dentro do tal aparelho, “o hardware que emite fotões únicos, o que é difícil.”
De resto, a informação passa pela fibra ótica, um canal habitual de transmissão de informação que já existe. O sistema foi desenvolvido para as fibras óticas já disponíveis. “A ideia, que me parece razoável, foi a seguinte: não vamos desenvolver uma tecnologia para a qual se tivéssemos fibras especiais de corrida funcionaria melhor porque é insustentável estar a mudar toda a infraestrutura. A coisa foi otimizada para as fibras já existentes.”
A simplicidade de utilização do aparelho — que torna a tecnologia acessível — contrasta com o preço atual que o torna inacessível ao utilizador comum.
“É um interface que custa à volta de 100 mil euros. Não é algo que seja acessível a uma pessoa a título particular, mas para uma grande empresa, para um banco, não é nada de especial. Não se pode dizer que seja uma tecnologia cara.” Para além do preço, esta forma de codificar a informação tem outra grande limitação, que é a distância a que funciona. “Neste momento, por fibras óticas convencionais, funciona até 300 quilómetros, mais coisa menos coisa. Mais do que isso, não se consegue.”
A limitação da tecnologia tem a ver com aquilo que a torna única, ou seja, a possibilidade de perceber se estamos a ser escutados. Yasser Omar explica o porquê com este exemplo: “Como é que um leitor em Timor consegue ler o Observador? Qualquer sinal se degrada ao longo da distância e do tempo, mas para as comunicações clássicas, temos os chamados amplificadores ou retransmissores. E a partir do momento em que a comunicação atinge um raio em que a qualidade do sinal se está a degradar, põe-se um retransmissor ou amplificador que reforça o sinal até à próxima estação e por aí fora, até conseguirmos dar a volta ao globo ou até comunicações fora da Terra [por satélite].” Então porque é que não existe um amplificador quântico?
“Porque amplificar ou retransmitir, implica ler. Um retransmissor é uma espécie de máquina que fotocopia. E o mesmo princípio que me dá a segurança da criptografia quântica, impede-me que eu amplifique o sinal. Porque para retransmitir o sinal, eu tenho que o ler mas ao lê-lo, estou a adulterá-lo,” respondeu.
“Os 300 quilómetros são uma limitação para comunicações à escala global, mas pode ser um raio muito útil para muitos governos ou empresas. Se pensarmos na segurança de transações financeiras na City ou em Wall Street, ou para comunicações entre a Casa Branca e o Pentágono, 300 quilómetros até é um raio maior do que o necessário.”
Esta limitação não tem impedido que diversas instituições recorram a esta forma de comunicar. Quantas não se sabe ao certo, porque as empresas que vendem este tipo de tecnologia “não gostam muito de revelar os clientes”. Segundo a opinião de Yasser Omar, que também lidera o grupo de Física da Informação, no Instituto das Telecomunicações, um dos países que mais recorre a esta tecnologia é a Suíça.
E concretiza: “Eu suspeito que é muito usada, em particular na indústria financeira e bancária. Num país onde esta indústria é extremamente importante.” Para além da banca e dos mercados financeiros, o país também utiliza a criptografia quântica para apurar os resultados eleitorais.
“Houve algumas demonstrações públicas para chamar à atenção para esta tecnologia e sei que na Suíça, que é um país que faz muitos referendos e votações, é usado um canal de criptografia quântica para transmitir os dados de uma mesa de voto até à comissão nacional de eleições suíça. É usada de forma recorrente”, contou Yasser Omar.
Para além da Suíça, outros países têm investido — e muito — nas tecnologias quânticas. “Vários governos, como o britânico ou o holandês estão a apostar, enquanto visão estratégica, nas tecnologias quânticas. Por exemplo, o governo britânico tem um programa de 2015 a 2020, salvo erro de 360 ou 380 milhões de euros dedicados ao desenvolvimento das tecnologias quânticas no Reino Unido. Segundo me disseram, nunca tinha havido um orçamento tão grande para uma área específica. É um programa do governo que quer promover muito a participação industrial, as aplicações. E claramente por razões estratégicas, de soberania.”
Outro país que está investir em força nesta área é a China. O país detém o recorde, em termos de distância, de comunicações realizadas através de criptografia quântica. É um canal de comunicação que se apoia em retransmissões repetidoras clássicas, que comprometem a segurança. Ou seja, durante 300 quilómetros há um canal perfeitamente seguro, mas ao fim desses 300 quilómetros está um recetor que lê a mensagem clássica e volta a retransmitir de forma quântica.
“Se eu confiar nesses pontos, se for um governo que tem confiança nos agentes que estão a trabalhar ali, é uma forma de chegar a longas distâncias. Neste momento, existe uma ligação dessas entre Pequim e Xangai, que distam dois mil quilómetros, mas não são contínuos. Porque eles têm uma série de estações repetidoras, que consideram seguras. Claro que na prática, ninguém pode garantir essa segurança. Se tivéssemos um repetidor quântico, aí estávamos mais descansados”, refere Yasser Omar.
Esse repetidor ainda não existe, mas é uma das coisas em que os físicos continuam a trabalhar. Outra é a de usar satélites. “Se o meu repetidor clássico estiver num satélite é muito improvável que consiga ir lá um agente inimigo empoleirar-se no satélite e fazer a escuta. Não é garantido, mas é mais difícil do que se estiver na Terra, não é? Há uma espécie de corrida espacial quântica, para ver quem são os primeiros que conseguem fazer essas comunicações com satélites. Isso seria a forma de levar as comunicações quânticas seguras à escala global.” E atualmente, quem “está mais à frente na corrida para levar as comunicações quânticas para o Espaço até são os nossos colegas chineses.”
Mas falamos de uma corrida de quantos anos? Embora a previsão seja muito incerta, para as a comunicações quânticas via satélite a nível comercial, “pode ser no espaço de uma década”. Mas para eliminar a limitação ao raio de 300 quilómetros, eventualmente mais cedo do que isso.
Quando Yasser Omar começou o doutoramento, em 1999, “conseguíamos fazer um quilómetro, dez quilómetros e neste momento conseguimos 300 quilómetros. E espero desenvolvimentos bastante positivos para esta tecnologia a curto prazo porque a motivação é muito forte.”
A área da Física Quântica é um domínio da investigação relativamente recente, as primeiras ideias surgiram nos anos 1980. Na altura, a comunidade científica “não levou muito a sério porque achavam isto uma ligação estranha”. Agora, tudo mudou. “Nos últimos dois anos tenho estado a notar um reinvestimento muito forte. Quando temos países como a Inglaterra, ou a Holanda a pôr centenas de milhões de euros nestas áreas, algo vai sair daí. Quando temos empresas como a Google ou a IBM, ou a Microsoft a pôr dezenas e dezenas de milhões de dólares nesta área, alguma coisa vai sair daí, não é? E nós não podemos ficar para trás.”
Yasser Omar está otimista. Na sua opinião, estamos a caminho da “sociedade de informação quântica”, porque “as tecnologias da informação quântica podem mudar a sociedade de informação, a maneira como comunicamos, como transmitimos e processamos informação.”