Facas, capacetes e chaves que servem para mudar pneus. Na noite de 31 de agosto deste ano, à porta do centro comercial Vasco da Gama, em Lisboa, todos os objetos que estavam à mão de vários estafetas de entrega de comida foram utilizados para agredir outros trabalhadores das plataformas de transporte de refeições. Segundo a PSP, nunca tinha sido registado um caso tão violento de agressões entre estafetas — 14 suspeitos foram identificados esta semana —, mas os desacatos têm acontecido em vários pontos da zona de Lisboa, com relatos de ameaças, pneus furados e motas riscadas. Tudo para afastar a concorrência e para lutar pelo território dos pontos de recolha.
Quando a PSP chegou ao centro comercial Vasco da Gama, entre as 19h e as 20h — período em que o número de pedidos de entrega de comida habitualmente sobe — encontrou várias pessoas feridas. Algumas foram assistidas naquele local e quatro tiveram mesmo de ser transportadas para o hospital. “O cenário não foi grave no quadro final, mas as agressões teriam essa capacidade”, explicou fonte da unidade de investigação da PSP ao Observador, referindo-se às armas brancas utilizadas.
PSP. Estafetas de entrega de comida lutam por território no Parque das Nações
“Há máfias dos pontos de recolha onde há muitos pedidos”
Este episódio de violência que aconteceu na zona do Parque das Nações, praticamente no final do verão, teve como ponto de partida várias ameaças. Um grupo de trabalhadores que estava perto do centro comercial e que esperava pelos alertas dos restaurantes para recolha de pedidos tentou afastar os estafetas que iam chegando ao mesmo sítio, ameaçando-os. Como aqueles que foram ameaçados não quiseram ir embora, acabaram por ser agredidos.
O relato foi feito pelas vítimas à PSP, que conseguiu perceber durante a investigação que esta tinha sido a causa da rixa. Mas este não é caso único. Dos cerca de 50 mil estafetas de entrega de refeições inscritos nas várias aplicações que existem, muitos já viram ou foram alvo de ameaças ou agressões por parte de outros colegas.
Isto acontece, explicaram os estafetas que falaram com o Observador, por causa dos pontos definidos pelos restaurantes nas aplicações para que os estafetas possam ficar disponíveis para receber os pedidos. Ou seja, os trabalhadores têm de ficar parados num sítio específico — muitas vezes a 200 ou 300 metros do restaurante — para que a aplicação, através do acesso que tem à localização de cada estafeta, possa distribuir os pedidos dos restaurantes. Só quem está no sítio definido é que recebe os alertas no seu telemóvel e os pedidos só começam a ser distribuídos por quem está afastado dos tais pontos quando não há nenhum estafeta disponível nesses pontos — ou porque está fora a fazer uma entrega, ou porque não aceitou o pedido, que acontece muitas vezes quando as entregas são de valor muito baixo.
O critério baseado na localização exata e não na proximidade ao restaurante acontece sobretudo com uma das aplicações — a Uber Eats. “Nas outras [plataformas] funciona como os serviços de transporte de passageiros: quando pedimos uma viagem numa aplicação, aparecem os carros que estão mais perto. Aqui [na aplicação da Uber Eats] era como se os carros estivessem todos estacionados num sítio para poderem receber viagens”, explicou um estafeta, que preferiu manter o anonimato, ao Observador.
Esta definição de um ponto exato para distribuição dos pedidos reflete-se naquilo que se tem visto, e vê cada vez mais, pelas ruas da capital: zonas em que se concentram dezenas de estafetas. E isto acontece sobretudo perto de locais como centros comerciais, dark kitchens, ou cozinhas fantasma, que fazem refeições de vários restaurantes e ainda de restaurantes como o KFC e o McDonald’s.
E com a concentração de muitos estafetas no mesmo ponto, começaram a surgir “as máfias dos pontos de recolha”, como definiram vários estafetas ao Observador. Estas “máfias” são, no fundo, grupos que se formam em cada um dos pontos, cujo objetivo é impedir a chegada de novos trabalhadores, para que os pedidos sejam distribuídos sempre pelos mesmos. Quem não consegue entrar nesses grupos fica obrigado a manter-se perto dos pontos e entregue à sorte de nenhum estafeta do ponto querer um pedido. “Há máfias dos pontos de recolha onde há muitos pedidos”, acrescentou um dos estafetas.
Número limite de estafetas por pontos, motas riscadas e pneus furados
Apesar de este cenário se multiplicar pela grande Lisboa, os grupos, explicou também quem trabalha todos os dias nas entregas de refeições, não estão relacionados uns com os outros. Não há uma “máfia” centralizada, mas sim uma “máfia” que nasce em cada um dos pontos de recolha, motivada pela necessidade de afastar a concorrência. E também não é uma “máfia” relacionada com uma nacionalidade: “Há grupos de portugueses, grupos de brasileiros, grupos de paquistaneses, depende do sítio.”
Certo é que, ainda que sem relação entre si, as regras que impõem acabam por ser muito semelhantes. “Cada ponto tem as suas regras e as suas leis. Se não cumprir, corre o risco de apanhar muito”, sublinhou um dos estafetas. Uma das regras apontadas é precisamente a de vedar a entrada a novos estafetas e acontece em vários pontos existir um número limite de estafetas. “No McDonald’s das Mercês e de Mem Martins, só podem estar 18 estafetas, não deixam entrar mais no ponto”, acrescentou o mesmo trabalhador. Caso alguém queira entregar refeições destes dois restaurantes e fique impedido de entrar no ponto, tem de ficar mais afastado.
“Quando uma pessoa quer ir para o ponto, eles intimidam. Se a pessoa não tiver respeito, eles partem para a agressão“, disse outro estafeta, que garantiu já ter sido ameaçado várias vezes e ter visto agressões entre trabalhadores. Se alguém não cumprir as regras definidas por quem já conseguiu dominar o território de determinado ponto, as hipóteses são várias e repetem-se pelos pontos: “Já vi motas partidas, motas riscadas, pneus furados, tudo para afastar as pessoas”.
E outro estafeta acrescentou: “Já me partiram o vidro da frente do carro, porque às vezes uso carro. Já vi amassarem as motas. As pessoas transformam-se em leões famintos.”
PSP viu matrículas das motas nas câmaras de vigilância e seguiu estafetas até casa
Esta “máfia dos pontos de recolha” ficou visível para quem não conhece esta realidade com o caso do Parque das Nações e serviu também para ficar no radar das autoridades, que agora têm já registo da existência destes grupos e noção da violência que pode resultar. Aliás, a investigação da PSP começou por aqui, ao perceber que se tratava de uma rixa e quais os motivos, que foram adiantados pelas várias vítimas.
Como os suspeitos fugiram do local, a PSP não conseguiu identificá-los logo e, por isso, teve consultar as câmaras de videovigilância para recuperar o momento dos desacatos. Nas imagens, os agentes conseguiram identificar os agressores, ver as matrículas das motas de cada um deles e chegar às respetivas identidades.
Depois desta identificação, começou o trabalho no terreno, através do acompanhamento de todos os passos destes suspeitos. Um dos trajetos que a unidade de investigação da PSP acompanhou foi o caminho até casa, o que permitiu pedir ao Ministério Público a emissão de dois mandados de busca, que foram cumpridos na passada segunda-feira.
As buscas resultaram na identificação de 14 suspeitos, mas há ainda outro ponto que foi descoberto pelos agentes quando entraram nas casas dos suspeitos e que é, afinal, o reflexo das condições em que vivem muitos estafetas de entrega de comida: a sobrelotação. “Percebemos que a residência tinha uma tipologia que foi alterada e que não suportava o número de pessoas que estaria naquela casa“, explicou fonte ligada à investigação, que acrescentou ainda que estas informações foram enviadas para as entidades competentes — juntas de freguesia e câmaras municipais.
Até agora, as agressões que aconteceram no Parque das Nações são o único caso grave relacionado com “as máfias dos pontos de recolha”, havendo registo de “casos pontuais” em vários pontos da Grande Lisboa. “Mas nunca com estas dimensões”, sublinhou a PSP.
O inquérito aberto por ofensas à integridade física continua a decorrer e, ao Observador, fonte oficial da Uber referiu apenas, em resposta às várias questões relacionadas com os grupos que existem nos pontos de recolha, que condena “veemente qualquer violação da lei”. “Sempre que algum utilizador incorre no incumprimento da lei, ao pôr em causa a segurança e ordem públicas, colaboramos prontamente com as autoridades em todas as investigações e tomamos as devidas diligências relativamente às contas destes utilizadores, sejam de estafetas, motoristas, parceiros ou consumidores”, acrescentou.