Será esticado chamar-lhe alta-costura, mas está tudo certo se falarmos de alta-paciência. Fiquemos por uma demi-couture que ganha vida numa discreta cave em Campolide, onde Béhen se instalou em março, rodeada de mãos dedicadas que se desdobram num trabalho silencioso ao longo de horas, apesar de a rádio teimar em fornecer som ambiente, ou de os auscultadores fazerem o devido bloqueio. “Tenho que pedir ajuda à equipa para controlarem o relógio. Porque eu gostava de dizer quantas horas é que as coisas demoraram.”.
O tempo que uma criação original exige até estar concluída é mais do que boa matéria para fun facts: neste acaso ajuda a enquadrar processos, preços e a exclusividade e história por detrás de cada peça. As criações mais recentes serão reveladas logo à noite, quando encerrar os desfiles de sábado na ModaLisboa.
Habituada até aqui a apresentar apenas uma vez por ano, Joana Duarte sentiu que a decisão de antecipar a próxima estação quente se ajustava à estratégia e à ponte com as lojas, se bem que, admite, as fases cada vez mais se cruzam e sobrepõem. “A primeira apresentação foi na Workstation, que é a mais pequenina, duas semanas antes de termos entrado no lockdown. E depois voltámos na apresentação em desfile, que foi na Estufa Fria. E, portanto, não tínhamos feito o verão. É a primeira coleção primavera-verão que estou a fazer desde o nosso primeiro desfile.”, recorda, enquanto manuseia as novas peças, cujo lema saiu de um antigo prato de faiança onde se lia “És má”. Provocação, picardia, frase “muito curiosa” que parece retomar a história de “Não te quero”, o mote da coleção anterior. “Quer dizer, vais oferecer um prato a alguém a dizer És Má?!” O que quer dizer? De que forma foi dito? Foi por aí que começámos”.
Para quebrar azedumes, e aplicar uma generosa camada de açúcar, nada como passar pela Confeitaria Ideal Malveirense, ou outra paragem doce que venda os famosos beijinhos, biscoitos coloridos que também se juntaram ao trabalho de pesquisa, que se estendem até ao convite para o desfile, e que se materializam em mais uma peça-chave. “Reflete-se muito em manipulações têxteis que fizemos. Por exemplo, vou-te mostrar esta camisa. Estão aqui muitas horas. Foi tudo feito à mão através de rendas antigas e restos de corte que tínhamos aqui no estúdio. E depois usámos os elementos para ligar à camisaria. Foram feitos os tais beijinhos.” É bom que a futura compradora seja beijoqueira, porque leva consigo pelo menos 350 beijos. “E esta é de mulher, porque ainda vamos fazer uma maior, de homem, um bocadinho mais comprida.”, o que significa, claro, uma escalada no número de beijinhos.
No pequeno estúdio, três estagiárias ocupam-se numa mesa de pequenos grandes detalhes para que tudo esteja pronto a tempo, num transe de confeção alheado de entrevistas matinais. Entre Santarém, Porto, Coimbra e Loulé, pode ser pura coincidência, mas todas elas nasceram ou cresceram à distância da capital, quem sabe mais próximas de ligações ancestrais às linhas e agulhas. Teresa entretém-se com os tassels, Leonor vai acumulando miniaturas de crochet, Bárbara doma um tecido preto. Ao fundo, Matilde manobra a máquina de costura. Catarina, o braço direito da designer, vai avaliando progressos (e imponderáveis) num vestido. “Esta flor ficou de fora. So cute”.
Para a fornada “És Má” há mais pormenores curiosos. Por um lado, parece sugerir rispidez, mas também é muito feminina. Comprovam-no os laços de lado, ou pormenores com os tais penduricalhos que já vêm da anterior estação, e outros apontamentos que foram buscar a Glória do Ribatejo. Com tanta toalha, não sabiam o que fazer aos guardanapos correspondentes – até que deram origem a uma minissaia. Junte-se a parceria revalidada com a Latoaria Maciel, no que aos acessórios diz respeito, e também o contributo do calçado Penha.
A coleção retoma a sempre presente questão do upcycling (como as colchas resgatadas do baú), e ainda a exploração de novos materiais. Predominam fibras naturais como o algodão orgânico e o linho, e ainda o denim. “Temos também tido esse trabalho em focar-nos maioritariamente em fibras naturais. Exceto a parte do upcycling que acaba às vezes por ter aqui alguma mistura de fibras.” Da Índia, país de referência no percursos de Béhen, onde começaram as primeiras ideias, vem ainda um tecido que se junta a esta coleção. Uma colcha preta com pequenos espelhos que espantam mau olhado.
“Há esta mistura, peças que são muito trabalhadas e têm muitas horas de trabalho manual, o que nós chamamos de demi-couture, que são muito minuciosas e funcionam sob encomenda. E depois temos outros tecidos, ou estamos a tentar dar esse espaço, que nos permitem outro tipo de produção. Mas isto é um caminho.”
Um dos conjuntos estrela será quase de certeza o casaco/calças em ganga com a aplicação em vidrilhos fiéis ao bordado de Viana do Castelo. Foram ambos bordados pela própria Joana aqui no estúdio – e só as calças levaram um mês, uma empreitada que ainda é difícil de comunicar ao cliente. Mas por regra, o processo segue outros caminhos. “Faço os desenhos aqui, através de arquivos que vou recolhendo diretamente com os artesãos ou da outra pesquisa que faço. E depois é enviado o tecido e os desenhos, tudo marcado, para os locais de origem para bordar.”
A poucos dias do desfile no Pátio da Galé, a coleção ainda está por terminar e se esse suposto atraso é fator de stress também garante margem para incluir à última hora alguma criação menos esperada, que acaba por fazer todo o sentido – e ter um destino fulgurante. Aconteceu por exemplo com uma camisa branca, também com tassells. “Foi um teste que nós fizemos bastante em cima, e foi das peças que mais resultaram. Mesmo para as lojas com que trabalhamos lá fora, enviámos sempre também essa. Depende, realmente. Às vezes são essas ideias que surgem quando estamos sobre o momento da preparação. É quando conseguimos ver tudo junto e percebemos que até faz sentido.”
Nem de propósito, o público masculino, em crescimento, foi dos que mais solicitou a peça. À exceção da primeira mini coleção, Béhen sempre apresentou homem — quanto a idades em geral, a possibilidade de costumizar alarga o espectro. Para “És Má” volta a pensar nos cavalheiros, apesar de contar apenas com cinco dos cerca de 18/19 looks que vão a desfile. “Foi curioso porque não estava à espera disso. Acho que faz sentido continuar a desenvolver essa parte, porque há muitos pedidos”. Em termos de qualidade dos materiais e acabamentos, considera que este é um cliente muito exigente, o que reforça os níveis de ponderação. Até porque quando as luzes se apagam, Joana regressa à realidade de uma estrutura com quatro anos que exige foco. “Trabalhar na área criativa em Portugal não é fácil, até porque não existe uma cultura de moda assim muito desenvolvida, psicologicamente é uma indústria dura. O nosso trabalho não é só a ModaLisboa, é todo o ano. Acho que às vezes aqui em Portugal esquecem-se um bocadinho dessa parte. Isto é uma start up que funciona o ano todo, não só com os desfiles.”
Da casa mãe à Casa Guilhermina
Caixas, tecidos, panos e mais restos decoram este viveiro de caos organizado. “Sou uma acumuladora”, admite, enquanto circulamos entre protótipos que se vão ajustando às alterações necessárias, como uma manga que tem que ser afinada.
Se o projeto se estreou pelo upcycling, rapidamente Joana Duarte percebeu que não podia ser só por aí – as técnicas teriam uma palavra a dizer. “Não tinha propriamente grande ideia de começar a marca e ter o projeto em meu nome. O que eu queria fazer era ter a oportunidade de experimentar estas técnicas e de dar esta continuação ao trabalho da minha avó.”
Os seus já icónicos sacos coloridos de renda, que começaram a ser trabalhados pelas matriarcas, saem hoje como pães quentes (por falar em pão, talvez ainda se lembre de um conjunto de acessórios muito especiais, presentes nas duas anteriores estações). “Começa por ser um trabalho de família portuguesa. A minha avó, hoje em dia, já não me consegue ajudar em muita coisa, mas continua a criticar bastante. Repara em tudo, na qualidade dos materiais, dos bordados, mas já não consegue fazer. Se bem que acho que ela não entende muito bem, às vezes, o que é que eu faço. Ela já não consegue vir aos desfiles, mas vê à distância. Depois mostramos-lhe com calma”.
Mantém-se o receio de quem lançou o seu próprio negócio de lavandaria em França, décadas atrás, e de quem sabe que é impossível gerir uma marca com a precisão do bordado. “Há toda uma estrutura para gerir. A minha avó está sempre a questionar isso, se tenho trabalho, se é suficiente.” Os pedidos até podem chover, mas a resposta nem sempre chega ao ritmo pretendido, já que a produção e stock comercial ainda é um desafio. “Não conseguimos produzir em fábrica, porque não temos quantidades suficientes para estar a fazer encomendas. Já estamos a dar algum espaço em direção a materiais que nos vão permitir dar outro tipo de produção. Mas encontrar esse equilíbrio é o que me deixa mais curiosa. Não vou estar a mentir e dizer que é fácil, não é.”, desabafa Joana, com zero formação em folhas de Excell e budgets. “É muito difícil a estrutura aguentar até descobrirmos a fórmula certa, leva muito tempo. Às vezes são anos, até encontrar a equipa certa, encontrar o produto certo, os fits certos, manter os preços”.
Talvez um boost inesperado traga sempre o melhor de dois mundos. Por um lado, um incremento na visibilidade, por outro, lá está, o desafio de concretizar em tempo útil uma criação com carácter artesanal — “Daí o meu problema com o site. São peças muito complexas, demora tudo muito”. Num dos charriots do estúdio, arrumam-se peças que serão vestidas este sábado pelos convidados da marca, já devidamente etiquetadas. Isabela Valadeiro, Carlos Ferra, e “talvez Kelly Bailey” sentar-se-ão na fila da frente do Pátio da Galé, em Lisboa, vestidos por Béhen.
Não falhará também a cantora Ana Moura, com quem começou a estabelecer ponte desde a pandemia. Joana ainda se lembra dos primeiros encontros entre as duas com máscaras no rosto. Depois, viria o guarda-roupa para a tour Casa Guilhermina. E os palcos, com a colaboração com produções de teatro que permitem elevar os níveis de barroco. De fora, ainda, chega o interesse dos nomes grandes da pop, como Leon Bridges, mesmo que nem sempre seja possível apurar se as estrelas chegaram ou não a usar roupa Béhen em algum tipo de ocasião pública – o que também condiciona esse claiming.
Foi através das redes sociais, como “quase tudo hoje chega”, que a equipa de Rosalía encomendou artigos para a cantora espanhola. “Não sabia se iria utilizar as peças mas depois publicou uma foto. É preciso ter muita sorte para receber a prova”.
Com a fasquia elevada, Joana não esquece outra visita de sonho em estúdio. Neste caso há dois anos, na pequena área de trabalho que mantinha em baixo da casa dos pais, em Santarém, onde apareceu de propósito a cantora M.I.A. para comprar calças Béhen, e não só.
O quartel-general da equipa seguiria depois para Lisboa. Joana instalou-se uns tempos na Rua Poiais de São Bento, voltou para o Ribatejo, fixou-se no Intendente, e depois então neste mesmo espaço em Campolide, por onde há pouquíssimo tempo passou a brasileira Ludmilla. “Estarmos em Portugal já não nos distancia do que se passa e dos artistas pelo mundo fora. Constantemente enviamos coisas para Los Angeles, para fittings, para shoots, para muitos artistas destes conhecidos. Às vezes são usadas, outras não. É preciso um bocadinho de sorte à mistura.”
Sorte e milagrosos pós brancos. Não podemos despedir-nos sem conselhos práticos, que é como quem diz informação útil para quem compra peças delicadas como estas, partindo de materiais claros e antigos que dificilmente cedem ao tom amarelo. “Bicabornato e pecabornato de sódio”, recomenda Joana, que não esconde um desejo muito concreto para uma eventual próxima etapa. “Num futuro estúdio gostava de ter espaço para um lavandaria. É uma parte essencial para o processo”