[O Observador agradece ao Expresso a cedência do texto que segue, tal como foi publicado a 13 de junho de 1981.]
Uma voz rouca de acentos cantantes, oferece-me uma bebida enquanto filtrava através de um olhar azul escuro uma certa curiosidade. (Portugal, onde é?) Com um copo de campari e um bocado de pepino na mão, deixa-se cair numa cadeira: “Estou tão cansada hoje, ensaiei todo o dia…”
A luz dessa tarde bate em todos os vidros da grande casa branca envolvendo de dourado aquele espaço tão particular. Bibi Anderson diz que lhe é indiferente falar em francês, ou em inglês, pergunta-me o que estou ali a fazer na Suécia, encosta-se ainda mais para trás na cadeira, mexe com os dedos nervosos, nos cabelos louros. A actriz tem um charme dourado também e busco na memória imagens e passagens de “Sonhos de uma Noite de Verão” de “Morangos Silvestres”, do “Desconhecido Desejado”…
Pensava ir encontrar uma vedeta, descobri uma mulher com quem falei longamente. Assim.
Comecemos pelo princípio, está de acordo? O seu, foi o teatro ou o cinema?
Acho que foi simultâneo. Embora aqui na Suécia haja uma tradição: ser actriz é antes de tudo fazer teatro. O cinema talvez tenha começado por ser um acaso. Mas a verdade é que eu apareci numa época em que Ingmar Bergman começava a ser conhecido e a ter o seu grupo, a formar uma equipa e a trabalhar com carácter mais profissional.
No cinema ou no teatro?
Nos dois.
Quando?
No fim dos anos cinquenta.
Mas você começou com ele?
Tinha feito os meus estudos na Escola do Teatro Real e depois fiz duas ou três coisas sem importância. Começar, a sério, foi com ele.
Como conheceu Bergman?
Durante uma audição onde ele viu várias candidatas e acabou por me escolher a mim.
Lembra-se se ficou logo deslumbrada pelo universo de Bergman, pela sua fortíssima personalidade, pela arte do realizador ou…
Sim, sim… Recordo que o achei logo fascinante. E muito interessante tudo o que ele estava a fazer com o seu grupo.
Qual foi o primeiro filme que fez com ele?
O “Sétimo Selo”.
[o trailer de “O Sétimo Selo”:]
Que filme deslumbrante! Gostaria de o poder rever agora… E além do “Sétimo Selo”?
“Os Morangos Silvestres”, “O Rosto”, “Sonho de uma Noite de Verão”, “O Amante”, o “Olho do Diabo”, “A Paixão”,”Persona”…
O teatro, o cinema, a TV, foram muito cedo para si uma vocação?
O que é isso, “vocação”? Não sei o que quer dizer?
É quando a gente sente como que uma vontade imperiosa de fazer uma determinada coisa, uma vontade irreversível, um destino…
Tinha um sonho. Queria representar. Só isto.
E o sonho para si era o teatro, onde começou, ou o cinema? quando conheceu Bergman?
Era-me indiferente, indiferente. Quero representar, é tudo. Um “papel” é sempre um “papel” quer seja no cinema, quer no teatro! O que lhe quero explicar é que penso que, para o actor, deve ser o mesmo, estar em cima dum palco ou diante de uma câmara. Mas voltando ao actor, quer se trate de cinema, quer de teatro, o que interessa é que há uma criação daquele instante. E a vida que tem de ser vivida, uma vez mais…
Quantos filmes fez até hoje?
50? 60?
Dentro deles, pensa que os fez com Bergman são os melhores? E qualquer coisa de “à parte” na sua carreira?
Claro que foram filmes muito bons. Diferentes. Mas não é qualquer coisa que eu ponha à parte do resto, não. Fiz outras coisas que me são…
Mais caras?
Mais, não. Tão boas ou tão importantes como com Bergman. Voilá. Sabe? Não gosto de fazer comparações… dessas…
Porque pode limitar as coisas e os próprios sentimentos?
Claro. E, além disso, é mecânico dizer prefiro este encenador ou este realizador àquele outro… O que me interessa é a minha própria criação no instante em que ela acontece. Ser capaz disso, de uma criação, compreende? Mas voltando a Bergman: é evidente que os filmes com mais sucesso junto do público e aqueles que também mereceram da crítica as melhores referências e elogios foram os que fiz com ele. Mas eu recuso deixar-me aprisionar por isso, porque isso me limita. Houve mais coisas na minha vida, mais acontecimentos… Por exemplo, o trabalho que faço agora com Bo Wiberberg para a televisão, não posso dizer que seja menos importante do que um filme que fiz com Bergman há vinte anos! Porque o “hoje”, o “agora”, é que são importantes. Isso é que conta.
O que está a fazer agora?
Uma peça muito bela de Tenessee Williams, “Um Eléctrico Chamado Desejo”. E para a televisão, mas ainda estamos em ensaios.
E a televisão é, também para si, como me dizia há pouco, uma forma de trabalho como as outras?
Aí trata-se já de uma mistura de teatro e de cinema, é muito interessante. Ensaia-se como no teatro, num determinado espaço e depois há uma câmara a espiar tudo isso. Gosto muito de fazer televisão, fica-se “pequenino” dentro do écrã…
Ontem à noite vi-a na TV a fazer a “Miss Julie” do Strindberg. Achei-a muito bonita e penso que conseguiu uma espantosa criação apesar de, conhecendo a peça, eu não ter percebido uma palavra!
Eu também fiquei muito contente. Estive aqui em casa a ver com a Lenni e gostámos muito as duas. Lembro-me de que quando gravei a “Miss Julie’, há uns meses, não fiquei feliz com o meu trabalho. E ontem disse para mim própria: “Mas o que é que queres mais?” Afinal de contas é um esplêndido papel e não me sal muito mal. A Lenni é que não aguentou até ao fim. Virou-se para mim, cheia de sono, pediu-me desculpa, disse-me: “Mamã tu és muito, muito bela, mas eu tenho sono”… E foi-se deitar!
Qual é a melhor recordação de vinte e tal anos de teatro, cinema e televisão? Apesar de tudo há sempre um preferido não é?
“Persona” está muito próximo de mim. Sabe porquê? Porque foi a primeira vez que senti que era eu, verdadeiramente eu, que criava qualquer coisa. Não foi o realizador, Bergman, que me deu um bom papel ou me mandou fazer desta ou daquela maneira mas eu que criei o papel. Isto é, aquele mesmo papel feito por outra actriz não teria tido nada de comum… “Persona” foi uma criação total! Ah! Detesto, detesto quando não sou livre para fazer exactamente como quero…
Têm-lhe acontecido muitas vezes trabalhar com realizadores muito rígidos que lhe exigem que faça estritamente como eles querem? Ser uma espécie de robot, em suma?
Sim, às vezes eles não têm talento suficiente para deixar os actores agir em liberdade! Têm medo… E há ainda os realizadores com pressa! Os que nos dizem constantemente: “é preciso fazer depressa, depressa…” Ora o que se faz depressa não é quase nunca o melhor! Porque é superficial, primário… Quando eu exijo ser profunda isso não significa profundo no sentido intelectual do termo mas sim no que se refere à vida em geral, as coisas da vida, à maneira como a gente se mexe, como vive… Não, não suporto aqueles que nos gritam constantemente no plateau “vite, vite”… Olhe, por exemplo, há pouco, quando chegou, você disse-me que tinha. ficado impressionada pelo “Viol” um filme que fiz em Paris há muitos anos, com o Doniol Valcrose. Eu não gostei porque tive a sensação, enquanto filmava, que aquela mulhei afinal não morava naquela casa, não tocava em nada, não se mexia. Pareci uma estranha… Era muito belo como enquadramento mas mais nada. O contrário também é mau: aqueles filmes onde há coisas a mais, “trop d’affaires”. Agora, nesta peça que faço com o Wiberberg, constato que estou a fazer uma coisa certa. Porque gosto da sua maneira de trabalhar. Viu algum dos seus filmes? A “Elvira Madigan”, por exemplo?
[o trailer de “Persona”:]
Vi, vi…
Bem, ele analisa os textos de uma forma diferente. Ao princípio eu não compreendia onde ele queria chegar, estive um mês a olhar para ele sem compreender e, depois, percebi que subitamente as coisas começavam a mexer, que nós, actores, começávamos a existir de facto ali dentro. Era a vida!
Trabalhou na Suécia, nos Estados Unidos, em Paris, em…
Filmei na União Soviética, fiz “une petite chose” na Alemanha de Leste mas não me pergunte o nome em alemão porque já o esqueci… Trabalhei também nos Estados Unidos e em Itália, mas, a minha experiência no estrangeiro terminou porque prefiro trabalhar na minha língua, com a minha gente, com ó meu grupo.
É uma questão de maturidade artística ou mesmo de maturidade “tout court”?
Procuro hoje aquilo que me pode dar prazer, quero apenas fazer trabalhos que me agradem totalmente. Porque vive-se também quando se representa…
É-lhe difícil falar de si própria?
Não. Só se você me fizesse perguntas muito indiscretas mas a essas eu não lhe responderia porque não teria o menor interesse. Penso que sou uma mulher normal, vivi os acontecimentos e as coisas de todas as mulheres. Tenho uma filha, fui casada duas vezes… No fundo fiz o mesmo percurso que as mulheres da minha geração aqui na Suécia. Isto é, nos anos cinquenta tive os mesmos sonhos, enganei-me do mesmo modo e, a certa altura, acordei e perguntei a mim própria: “O que fiz durante estes anos todos?”. Os movimentos de libertação da mulher, os movimentos feministas, tudo isso me preocupava principalmente porque eu imaginava que já era uma mulher livre e… Não era, afinal. Enganei-me totalmente. Ninguém é livre na nossa sociedade. Somos todos mais ou menos vítimas. Da sociedade, do sistema, mas principalmente de nós próprios.
Mesmo aqui na Suécia?
Mentalmente é melhor, mas há problemas, angústias, prisões interiores.
E hoje, depois de ter acordado como diz, de se ter interrogado, que mulher é?
Hoje, mudei, sem dúvida. Leio muito, tento aprender e desenvolver a minha cabeça e as minhas ideias, porque mergulhei cedo demais na minha profissão, tinha 16 anos apenas. E como tal, houve muitas etapas queimadas. Mas hoje estou interessada na minha própria identidade porque tive a impressão de que a minha maneira de representar era antes de tudo uma forma de eu me procurar através dos papéis que representava. E depois havia esta espécie de conflito: tentava ser autêntica a representar mas não sabia quem eu era… Comecei então a ser curiosa a meu próprio respeito… E o que descobri nem sempre foi bom… Mas o que conta é que eu sou hoje muito mais feliz do que antes, mesmo com todos os problemas que tenha ou que possam surgir. Comecei a escrever para mim…
Uma espécie de diário?
Sim e não me saio mal, porque adoro escrever, e escrevo muito: desde cartas a notas pessoais… E é como uma análise, eu descubro-me através do que escrevo. Isso ajudou a minha própria libertação. Já posso dizer que hoje ninguém me toma de qualquer maneira. Isto é, estou disponível para trabalhar desde que seja a pensar pela minha própria cabeça, e em equipa, em conjunto. Em resumo: sou finalmente livre, e já ninguém me mete ideias na cabeça.
Quem lhe metia ideias na cabeça?
Toda a gente: a família, os amigos, a gente do cinema, os realizadores sobretudo. E eu, como não estava certa de nada, pedia conselhos a toda a gente! E quando se começa a pedir conselhos acaba-se na confusão total. Sobretudo com a voracidade com que os outros estão sempre disponíveis para nos dar conselhos não é?
Pensa então que está a atravessar a fase mais interessante da sua vida de mulher e de actriz? Mais amadurecida? Lúcida?
Sim, sim. O que não quer dizer que não tenha problemas…. As coisas vão, vêm, é a vida…
Falar de felicidade, de ser feliz, tem um sentido para si?
No que toca a minha vida pessoal, tive sempre a sensação de que para se ser feliz é necessário estar-se apaixonado. “Heureux, amoureux…” é a mesma coisa… mas afinal hoje sei que não é bem a mesma coisa! Estive casada dois anos e, aí, acreditei sinceramente que podia fazer qualquer coisa com tudo o que sabia, tudo o que tinha aprendido até hoje. E dizia: “Agora sou uma adulta, vou-me casar…” Foi um desastre!
Com alguém do teatro ou do cinema?
Não! Com um homem. Mas o que lhe queria explicar é que a vida não se decide assim, a gente não diz “agora estou pronta”.
Está apaixonada, neste momento?
Não. É um pouco triste não é? Porque o estar-se apaixonado dá uma cor extra… Mas enfim, vivo a minha vida tal como sou, com alegrias e tristezas, com problemas e com sucessos… Tomo a vida tal como ela me aparece todos os dias e vivo-a. E o principal é que já não me sinto angustiada. É muito importante, tão importante que isso para mim é a felicidade. Sabe que de vez em quando sou jornalista?
Escreve para os jornais? Sobre o quê?
Para jornais diferentes e sempre que tenho algo a dizer. Sempre que alguma coisa me interessa particularmente, escrevo. Esta entrevista que você me está a fazer, eu não me importo porque é para outro país. Se fosse para a Suécia, não consentiria. Porquê responder através das perguntas dos outros, se posso exprimir-me, se sei exprimir-me, se sei o que quero dizer e se sei escrevê-lo?
Gosta muito de escrever?
Muito, muito… mas às vezes tenho dúvidas. Começo a pensar: “Vale a pena pegar nisto? Será interessante debruçar-me sobre este assunto?” E aflijo-me: “Toda a gente diz isto muito melhor do que tu!” Mas depois, lá vou eu. E muitos jornais têm publicado coisas minhas… [Levanta-se, o seu charme dourado continua a funcionar, mexe nos cabelos, abre uma gaveta, tira uma pilha de papéis e mostra-me. São recortes de coisas escritas por ela, publicados em jornais e revistas suecas.]
Voltando atrás e a si. Como mulher, Bergman teve importância para si? Muita? Você viveu com ele…
Como mulher, é o que quer saber?
Sim, como mulher que viveu com ele durante alguns anos.
Tinha vinte anos na altura… Provavelmente foi importante. Mas o que é que se sabe, de verdade, após tantos anos sobre o peso das coisas? Como saber o que foi ou não importante? Há sempre um rasto que fica, qualquer coisa… Nem que sejam restos! Em si, de Bergman, não ficou nada? Não foi como homem que ele marcou, mas sim como personalidade. Marcou-me pela sua educação moral, pelas suas ideias, que nem sempre eram as minhas… Mas havia sempre um diálogo muito forte, emocionalmente e intelectualmente… Era a escola da jovem menina… Mas já foi há tanto tempo…
Continua a vê-lo hoje?
É um velho, hoje… Não, não escreva isso. É um amigo… Mas Bergman tem hoje 65 anos, não é que seja um velho, mas enfim, Bergman é Bergman e eu gosto muito dele. Mas quando vivi com ele, não me apercebi da influência que ele estava a ter em mim. Foi muito mais tarde que nos tornámos amigos e isso facilitou as coisas. Antes disso era sempre o pai que agarrava a minha pequena mão para me guiar pela vida… Mas nem sequer era por culpa dele, era eu que permitia que isso acontecesse: estava sempre a perguntar-lhe coisas, a saber como deveria fazer, agir… “Eu sou muito pequenina”.
É uma mulher frágil?
Não, frágil não. Era, isso sim, muito influenciável porque não tinha confiança em mim. Mas, por outro lado, trata-se de uma característica muito feminina não acha?
O que é hoje importante para si?
Tudo. Isto é, o mundo e tudo o que está à parte de mim porque eu sou , pequenina…
O mundo, disse você. Pensa que na sua qualidade de actriz e de mulher a viver no mundo de hoje, há como que uma obrigação de se interessar de forma mais activa pela política, dar o seu nome para abaixo-assinados a favor de coisas que considera importantes, de…
Não, não procuro deliberadamente nada disso. Não tenho ambição carreirista. Limito-me a ajudar, a intervir onde sinto que isso pode ser útil. Se é necessário escrever sobre qualquer coisa, pois bem, escrevo, se é necessária a minha assinatura a favor de uma causa sobre a qual estou informada e também de acordo, assino. Mas não procuro nada, não me imponho. As coisas acontecem. O que me interessa é encontrar grupos de pessoas que pensem, que reflictam, que se juntem para ajudar, verdadeiramente, os outros. E que não tenham nada a ver com o poder, embora no poder e na política aqui, haja por vezes, ao lado de gente mais velha e que pensa “velho”, gente jovem e qualificada para poder incentivar movimentos que partam de facto da base. Mudar a Suécia pode ser mais fácil do que outros países: porque não tivemos guerra, porque não sofremos muito nos últimos 50 anos. O que temos é problemas de excesso de segurança, donde resulta que há gente que tem medo… Isto não é a melhor maneira de viver a vida. E penso que começamos a compreender isso.
Gosta da sua casa? Sente-se bem aqui dentro? Segura?
Gosto muito. Comprei-a há quase vinte anos e fiz muitas obras aqui dentro, gastei muito dinheiro. Mas às vezes esta casa transforma-se numa espécie de prisão porque como é muito grande há sempre qualquer coisa a arranjar, a melhorar… E então, como tenho um apartamento em Nova Iorque, vou até lá porque adoro essa cidade. Tenho um apartamento com dois quartos em frente ao Parque. É uma espécie de sonho! Comprei-o quando lá estive com a Lenni há uns anos a representar uma peça na Broadway. Não, não vale a pena falar nisso. “Ça n’a pas marché…”
Era capaz de lá viver? Em Nova Iorque?
Sou muito agarrada às coisas daqui, à minha família e, além disso, apesar de adorar New York, penso que o trabalho que lá posso fazer é muito menos importante do que aquele que faço ou farei aqui, no meu país. Por isso, fico por cá, e de vez em quando viajo até lá. A Liv Ullmann, que é a minha melhor amiga, tem um apartamento no mesmo prédio e às vezes encontramo-nos, é óptimo. Na realidade vimo-nos pouco porque ela habitualmente — vive em Oslo mas estamos muito em contacto uma com a outra. Um filme como realizadora.
O que vai fazer a seguir à peça de Tennessee Williams?
Talvez… fazer um filme como realizadora! Interessa-me fazer um filme sobre as estruturas do cinema que são afinal as mesmas que as sociais: o realizador, mais as vedetas, mais o resto das pessoas. Isto é, a esquizofrenia total. Eu não tenho nenhum poder, nenhum direito… plantam-me no meio do cenário e enchem-me de ideias sobre o que eu hei-de fazer, dizer… As grandes vítimas são as vedetas, é infernal! E depois há os agentes que sem cessar te dizem o que tens de fazer, o que é bom para a carreira, o que é mau, o que é proibido… Tudo isto acaba por nos esvaziar… Por ser neurótico!
Apesar de tudo deve ter trabalhado com realizadores onde todo esse horrível mundo que me descreve não acontecia assim…
Muito raramente, desculpe lá! Os realizadores querem sempre algo mais… Eu procuro aquele realizador que nada mais quer se não deixar livres os seus actores. Deixar correr o talento… Mas o que acontece é, como eu lhe dizia há pouco, que eles são pessoalmente impotentes como criadores, tomam-se por deuses, e querem mandar, mandar…
Tem a sensação de que foi muitas vezes devorada pelo seu “métier”? Utilizada? Usada?
Sim, por vezes. Principalmente quando era eu que procurava qualquer coisa lá dentro, quando fazia coisas pela minha “carreira”. Acabava sempre mal. Em contrapartida, quando nada mais procurava senão uma criação artística, — dizer isto é um pouco”naif”, não é?
É difícil, para si, ser uma vedeta? Em que é que isso se traduz na vida de todos os dias?
Mas eu não sou uma grande vedeta!
Sim, claro que é. Malgré vous même, se quiser, mas é!
Então, é malgré moi même, pronto. Não é o meu problema, eu sou o que sou. Repare, se se é uma advogada, ou qualquer outra coisa foi porque se estudou, porque se conhece alguma coisa… Uma actriz não sabe nada. Uma actriz apenas tem como capital a sua voz, a sua pele, o seu talento…
E o que é o talento?
O talento? Talvez saber ser um instrumento. E pegar num texto e ser capaz de deixar vir ao de cima a ilusão, a emoção, e dar, dar… Mas o talento é também não insistir muito, não se deixar devorar, não forçar.
Voltando ao seu projecto de fazer um filme…
Já tenho um script, escrito por mim, — tenho até duas versões, — tenho algum dinheiro, e as possibilidades de poder fazê-lo. Mas não pode ser um filme qualquer. Já fiz 50, fazer mais um… Por isso, se chegar à conclusão de que posso, de que sei, de que sou capaz de dizer alguma coisa, fá-lo-ei.
Tem tempo para tudo o que gosta de fazer? Estar aqui em casa com a Lenni, ler, escrever o que gosta, ouvir aqueles discos que estão ali…
Não. Nunca se tem tempo para tudo. Não posso estar a trabalhar e ao mesmo tempo estar com a minha filha, ir ao teatro, ouvir música. Não, não tenho esse tempo.
Com quem gostava de filmar? Com quem seria bom, para si, fazer um filme?
Não tenho sonhos nesse domínio.
Não há ninguém?
Ninguém.
Mas há, apesar de tudo da sua parte, uma certa disponibilidade para o que aparecer ou… nem isso?
O que quero — e para isso estou disponível — são as histórias que me interessam, os assuntos que me apaixonam na vida.
O realizador é secundário?
Je m’en fous. O que quero de um realizador é que ele saiba onde colocar a sua câmara de filmar e que seja capaz de me explicar porque é que aquela história lhe interessa em particular. E se ele quer trabalhar comigo, OK, é porque me respeita e porque pensa que em conjunto vamos ser capazes de criar qualquer coisa. Mas ter o sonho de encontrar alguém que tal como Deus, venha com o papel ideal, para mim isso, nunca mais!!
Considera o seu pais, devido ao clima, à raça nórdica um pouco introvertida, e um pouco especial, também, um país triste? E difícil viver aqui?
Acontece-me, no inverno, andar deprimida por causa do clima. Mas um dia como o de hoje, perdoa tudo! Reconheço no entanto que é preciso ser muito forte para viver em Novembro ou Dezembro aqui na Suécia.
Onde vai passar o seu verão?
Não sei. Não faço projectos. Tomo as coisas corno elas me aparecem, como vão acontecendo… Mas este verão talvez viaje um pouco com a minha filha… ela está com vontade disso, e é preciso ir até junto do sol. Au Portugal, porquoi pas?