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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Capitão Fausto e os gloriosos dias do rock tropical de auto-ajuda

"A Invenção do Dia Claro" foi gravado em São Paulo, mas não é um disco brasileiro. Fala do trabalho que dá mantermos quem gostamos por perto. Estivemos num ensaio da banda, uma semana antes da edição.

Alvalade chamou por nós. E bem cedo, pelo menos no campeonato do rock’n’roll. Eram dez da manhã quando nos apresentámos no estúdio dos Capitão Fausto, aquela hora em que por norma ninguém está para grandes conversas, onde pouco mais sobra que o usual “queres café?”. Claro, café, claro que sim.

Nada como dar música à cabeça, para que esta arranque, para a máquina ligar. E isso, neste caso, significa ver a banda de Tomás Wallenstein, Domingos Coimbra, Francisco Ferreira, Manuel Palha e Salvador Seabra a ensaiar. Por entre uma porrada de tapetes e instrumentos e fita adesiva, lá vão eles aquecendo, naquilo que por agora, ao arranque, podia bem ser uma festa jamaicana, ou pelo menos com morada no litoral, numa terra rodeada de água. Afinam tempos e tocam “Lentamente” – uma das oito canções do novíssimo A Invenção do Dia Claro, a sair na próxima sexta, dia 15 de março – uma canção que podia ser de baile dos anos 20, com a atualização necessária, logicamente. Uma canção que questiona: “Qual é que é a guerra que acaba amanhã?”.

[“Faço as Vontades” e a imagem da capa do novo disco, com edição agendada para 15 de março:]

Pergunta para a qual não temos resposta, mesmo agora que os neurónios já proferem mais vocábulos, agora que a cafeína já fez o que tem de fazer. Por entre caixas de pizza, retratos caricatos, montagens do absurdo, posters que sugerem “Eat less bread”, lá nos atrevemos a ligar o gravador e a evidenciar um facto inegável: para quem, em 2016, tinha os dias contados (era esse o título do brilhante álbum que editaram há três anos, lembram-se), os Capitão Fausto estão vivinhos da Silva, airosos e com a certeza de que esse título, dado ao disco anterior, não era mais que ironia. A melancolia de contar os dias, a nostalgia de já não poderem ser rapazes torna-se, pelo menos instrumentalmente, alegria, algo corroborado por Francisco Ferreira: “Acho que sim, se for olhar para as músicas e até para o que dizem algumas das letras, é um disco que tem melodias mais alegres”.

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E é com esta dica que tentamos prestar atenção àquilo que as letras de Tomás Wallenstein sugerem. Há uma nuvem qualquer que também já nos choveu em cima, ou melhor, que sempre vai chovendo. É o que é, toda a gente sabe que volta e meia atravessamos um temporal. Todos nós. Mas também sabemos que eventualmente o céu limpa. Tomás Wallenstein explica, com a devida autoridade de compositor: “Também fomos atrás do nome por isso. Como é que se procura estar bem e como é que as pessoas arranjam maneiras para estar umas com as outras e conseguirem viver umas com as outras? Acho que o tema geral é esse”.

“As pessoas não se relacionam apenas por gostarem de estar umas com as outras, acho que existe trabalho nesse sentido. E se no último disco manifestávamos o facto de ter de existir trabalho e responsabilidade mesmo para as coisas mais divertidas, neste a preocupação principal foi falar sobre o que é preciso para conseguir manter as pessoas de quem gostamos por perto, é aquela ideia do trabalho pessoal, quase uma coisa de auto-ajuda.”
Tomás Wallenstein

E, de facto, está cá a amizade, ou aquela ideia da cedência, do fazer isto por aquela pessoa que sempre faz o que é preciso por nós, essa lamechice boa que existe e que insistimos em guardar, em esconder, para ninguém corar, ou ser obrigado a revelar mais um pedaço de si. A dependência de outrém, a certeza de que dificilmente viveremos sozinhos e sãos está expressa em “Boa Memória”, segunda e maravilhosa faixa do disco, teclas para calçado confortável, uma perfeição sincopada que diz:

“Não é preciso lembrar
tenho amigos com boa memória
os meus amigos contam-me a história
para depois poder contar”

10 fotos

O que, mais uma vez, faz todo o sentido e se aplica na perfeição a estas letras preocupadas com os outros. E isso, para Tomás Wallenstein, não é lazer, é trabalho: “As pessoas não se relacionam apenas por gostarem de estar umas com as outras, acho que existe trabalho nesse sentido. E se no último disco manifestávamos o facto de ter de existir trabalho e responsabilidade mesmo para as coisas mais divertidas, neste a preocupação principal foi falar sobre o que é preciso para conseguir manter as pessoas de quem gostamos por perto, é aquela ideia do trabalho pessoal, quase uma coisa de auto-ajuda”.

Sim, é isso, auto-ajuda. E com esta o estimado leitor provavelmente não contava: os Capitão Fausto em modo auto-ajuda. E isso é uma maravilha, nunca a auto-ajuda tinha sido tão bem utilizada (e tão boa, vá). Quanto ao título do disco, esse é descaradamente e orgulhosamente roubado de um livro de poemas de Almada Negreiros, de 1921, escolhido não apenas pela sua beleza: “Chegámos lá um bocadinho aleatoriamente, estávamos à procura de nomes. Gostámos imediatamente do título e depois apercebemo-nos que já conhecíamos bastante poemas do livro. E além do título, as coisas de que o Almada fala são muito parecidas com isto, estilisticamente não, mas na ideia base sim”, enquadra Tomás.

A influência paulista

A Invenção do Dia Claro, quarto disco do conjunto lisboeta, foi parcialmente gravado em São Paulo, nos estúdios da Red Bull. Uma semana a ir a pé do sítio onde ficaram hospedados para o estúdio, o que não é exatamente o quotidiano comum do casa-trabalho-trabalho-casa. É trabalho, claro que é, que ninguém pense o contrário, mas o caminho tem outras distrações, há coisas que nunca se tinham visto, é uma vontade talvez maior de trabalhar: uma mudança de contexto pode ser o pontapé de saída para uma nova ordem.

[“Sempre Bem”:]

Durante o dia gravavam e ao final de tarde/noite absorviam São Paulo. Mas não se pense que essas vivências estão evidentes no disco, até porque os Capitão Fausto fizeram o trabalho de casa antes de rumar a São Paulo: “Fomos para lá já com tudo decidido, mas a nossa ida afetou as nossas decisões. Muito cedo começámos a fazer as músicas, de alguma maneira idealizámos o disco naquele sítio, chamámos músicos de lá. E pensámos que seria uma boa oportunidade para nos deixarmos influenciar minimamente por uma cultura que não é a nossa. E também tentámos que não fosse algo radical, não nos interessava sair de lá com uma sonoridade completamente nova só porque fomos gravar ao Brasil, ou seja, acabámos por integrar a ideia que tínhamos do Brasil, ideia tida aqui, em Lisboa, uma ideia muito europeia e portuguesa”, diz Tomás Wallenstein.

Há, em "A Invenção do Dia Claro", uma latinidade inevitável, uma respiração tropical, uns pandeiros, uns cavaquinhos, uns metais que bailam mais com o chorinho. Isso está lá, ao de leve, como quem não quer ser muito imponente.

Portanto, quem disser que os Capitão Fausto fizeram um disco de samba-rock vai incorrer numa contra-ordenação relativamente grave: “Nunca foi nosso intuito fazer com que o disco soasse ultra-brasileiro”, avisa Manuel Palha. Tomás Wallenstein quer entrar neste painel e trata de acrescentar: “Até porque isso seria uma caricatura”. Atenção, isto não significa, contudo, que não emane uma latinidade inevitável, uma respiração tropical, uns pandeiros, uns cavaquinhos, uns metais que bailam mais com o chorinho. Isso está lá, ao de leve, como quem não quer ser muito imponente. Oiça-se o final de “Certeza” para que não sobrem dúvidas, aquelas viagens instrumentais tão próprias dos Capitão Fausto, agora com uma percussão menos comum por estas bandas – quase que apostamos que são tucanos, mas temos vergonha de perguntar.

Mas afinal: alguém alguma vez muda?

Se há coisa presente neste disco é a impossibilidade de ser diferente, de não ser aquilo que somos, apenas isso. Essa ideia está em vários cantos de A Invenção do Dia Claro e Tomás Wallenstein, apesar de concordar, assegura que essa ideia não é uma referência a um acontecimento factual e específico. “As pessoas conseguem mudar, mas ao longo de um grande período de tempo. Vão conseguindo mudar um detalhezinho e há um dia em que de repente se deixa de fumar. É um trabalho constante, voltamos à história da auto-ajuda”, insiste.

8 fotos

Até se pode deixar de fumar, até se podem fazer resoluções de ano novo, mas o que parece não mudar mesmo é a forma de escrever de Tomás, que Domingos Coimbra classifica como “um fatalismo positivo”. O conceito é a seguir desenvolvido por Manuel Palha: “Esta dualidade de saber o que é que é certo ou pelo menos falar disso recorrentemente, mas saber que não se segue sempre por essa linha. A vontade de seguir o que em princípio é correto bate sempre com o realismo. E sabendo que nem sempre se vai conseguir, toda a gente age um pouco da mesma maneira: impõe uns princípios ou objetivos e depois vai tentando ser fiel”. Nós avisámos que havia por aqui auto-ajuda. Aproveitem, não se queixem.

E já agora, por falar em fidelidade, sobra ainda a certeza de que há um enredo a percorrer este novo material. O fim de uma relação ou um amor que está a acabar, ainda que os intervenientes pareçam não querer romper, pareçam querer construir: “Na verdade, todas as músicas contam uma história específica de duas pessoas que estão a tentar ficar juntas e que não conseguem. Apesar de os finais serem coisas tristes, não quer dizer que isso tenha que ser assim sempre, a tal fatalidade, às vezes, devia ser mais assumida, temos de estar mais prontos para lidar com o nosso fado do que normalmente estamos e perceber que isso não é uma coisa negativa e as pessoas não são más umas para as outras por não conseguirem viver umas com as outras. Esta ideia de fim é uma tentativa de encontrar justificações para um final que é inevitável”, afirma Tomás.

[“Amor, a Nossa Vida”:]

E, dizemos nós, até esse final inevitável pode ser colocado em causa, podemos tentar dar mais uma volta, bora lá, a gente consegue. Será? Nada como esperar que o dia se torna mais claro, que este disco auto-ajude gente em situações deste género. E que estejamos todos juntos, a saber estar – e se não estivermos não é por mal, não esquecer – dia 4 de abril na Casa da Música, no Porto e dia 6 no Capitólio, em Lisboa. Salas escolhidas nada ao acaso: “Escolhemos estas duas salas porque queremos dar um boost cénico/sónico, e isso também será um nível de espectacularidade mais alto, não quero já pôr o pedal a fundo, mas será um boost no visual, estamos a trabalhar para ser um espectáculo bonito, com luzes que nunca tivemos, por exemplo”, esclarece Francisco Ferreira.

Para finalizar, um apelo de Tomás Wallenstein, que até se curvou para falar mais perto do gravador: “Queremos dizer aos nossos leitores que temos ensaiado muito e que podem esperar um produto de qualidade em troca do bilhete”. Se assim não for, não nos responsabilizamos.

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