“Ó Luísa, não sabias fugir?”. A jovem de 18 anos já tinha sido resgatada e estava de volta à instituição. Paula, uma das funcionárias, continuava sem conseguir perceber porque é que ela não tinha fugido. Para a jovem, a resposta era óbvia: “Eu tinha tanto medo. Não sabia nada”. Tinha sido obrigada a mendigar em locais públicos, na cidade de Coimbra. A funcionária recorda o desabafo de Luísa (nome fictício): “Tinha tanta vergonha, disse-me ela. Coitadinha!” Sem telemóvel nem documentos, não tinha forma de contactar ninguém nem sequer de se identificar. Era vigiada à distância e controlada à vista pelos pais do marido. Em casa, era obrigada à servidão doméstica. Não era agredida pelos sogros e tinha direito a alimentação. Para todos os efeitos, era a mulher do filho.
Tinha sido levada para o apartamento da família do marido, em Coimbra. Vivia com os sogros, cunhados e primos — “todos com antecedentes criminais e cumprimento de pena de prisão”, revelou fonte da Polícia Judiciária (PJ) do Porto ao Observador. Durante as duas semanas que seguiram o casamento, viveu também com o marido, 12 anos mais velho. No final dessas duas semanas, ele foi recapturado pelas autoridades. Tinha saído da prisão, em licença precária, para passar o Natal com a família e só voltou quando a polícia o foi buscar, no início de janeiro. Mas o Natal fora só um pretexto para executar o plano que já estava em curso: casar com Luísa. Plano esse, pensado pelo pai da noiva, que a raptou para o pôr em prática.
Luísa fora retirada à família quando tinha 16 anos. A mãe tinha fugido, quando a filha ainda era pequena. O pai tinha sido preso por roubo e tráfico de estupefacientes. Vivia com os avós maternos num acampamento na zona de Braga e sofria maus tratos. Foi retirada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e institucionalizada. “Quando cá chegou, não sabia nem ver as horas. Não sabia nada”, recordou a funcionária ao Observador. Dizia que aquela instituição era a sua “casinha”. Lá vivia e estudava. E pretendia continuar. “Agora já não sou cigana. Não quero casar”, costumava dizer.
Tinha até um namorado “branco”. Chegou a enviar uma carta ao pai a pedir-lhe autorização. Na altura, ele disse que sim. Mas a família nunca aceitou verdadeiramente a relação e o afastamento de Luísa da comunidade. Queriam que ela se casasse com alguém de etnia cigana. “A avó chegava volta e meia com um cigano. Chegou a vir com dois ou três. Mas ela foi dando indicação que não queria casar. Aquele ritual de perder a virgindade com o pano branco fazia-lhe confusão”, revelou a funcionária, que chegou a enfrentar a avó: “Ela não falava. Gritava”. Após todas essas tentativas de arranjar um marido para Luísa, as ameaças das funcionárias da instituição resultaram e conseguiram afastar a avó. Até àquele Natal de 2017.
Luísa e três primos — dois meninos de dois e oito anos e uma menina de cinco — que viviam com ela na instituição foram passar a consoada com a família, no acampamento. Foi a própria instituição a levá-los, no dia 24 de dezembro. A condição era regressarem no dia seguinte, até às 17h30. Aproximava-se essa hora e Luísa ligou à instituição a informar que estavam à espera de boleia. Mais tarde, os três primos regressaram e traziam os pertences de Luísa. Mas a jovem não vinha com eles. “Ela estava no carro a chorar. Estava com o pai”, relatou o primo de oito anos. “Sabíamos que alguma coisa se estava a passar. Através das câmaras de vigilância, percebemos o que era”, recordou uma funcionária ao Observador.
Foi o pai de Luísa, que também estava em licença precária para passar o Natal fora da prisão, que deu a tal boleia aos quatro primos. À porta da instituição, não deixou a filha sair do carro. Luísa tentou mas foi agredida e puxada para dentro. O que as imagens da câmara de vigilância não mostravam era que o pai de Luísa tinha-lhe arranjado um noivo e a filha ia casar. “O facto de saberem que ela tinha uma relação séria, estável e com alguém que não era da mesma etnia, acelerou ainda mais a vontade de a reinserir no meio”, explicou a fonte da PJ do Porto. Acelerou de tal maneira que, em dois dias, o pai concretizou o seu desejo de ver a filha casada com um cigano. Num dia saiu da prisão, combinou o casamento com os progenitores do noivo, com quem tinha laços familiares. No outro, impôs o casamento à filha — que aconteceu a tempo de voltar para a prisão antes do fim da licença precária.
A instituição não tardou a ligar aos familiares à procura da jovem. Disseram que Luísa tinha fugido. Os funcionários ameaçaram chamar a polícia. “A madrasta ligou aos gritos”, recorda uma funcionária. Ligou para a tia, a mãe dos três primos de Luísa que estavam naquela instituição. “Se não disserem a verdade, não te deixo mais ver os teus filhos”, disse-lhe a funcionária. Acabou por dizer que o irmão tinha levado a filha para Aveiro. Luísa ligou mais tarde para a instituição. “Disse que ia casar com um cigano. Ó Luísa, tu queres mesmo casar com um cigano? Diz-me só: sim ou não? Ela disse que não”, recorda a funcionária. Depois, deixaram de ter contacto com a jovem. O telemóvel estava desligado. No dia seguinte, 26 de dezembro, denunciaram o caso às autoridades. Luísa já estava casada.
A PJ abriu uma investigação de crimes de rapto, casamento forçado e violação. “A primeira violação aconteceu na consumação do casamento mas foi uma prática continuada, pelo menos, nas duas semanas em que Luísa teve de conviver com o marido”, explicou fonte da PJ do Porto ao Observador. Quarenta investigadores estiveram envolvidos em operações e seis buscas domiciliárias que contaram com o apoio logístico da PJ de Coimbra e de Aveiro. A PJ do Porto conseguiu deter mais seis pessoas — todos familiares –, além de interrogar o pai e do marido de Luísa que já estavam presos: os sogros, duas pessoas que “colaboraram de forma direta ou indireta no rapto”, o patriarca e a sua mulher que os acolheram no acampamento em Aveiro e deram “apoio logístico na consumação do casamento”. Os detidos, com idades entre os 30 e 50 anos, “alguns deles com antecedentes criminais”, foram também alvo de interrogatório e aplicação de medidas de coação consideradas adequadas.
Luísa tinha foi resgatada menos de um mês depois da denúncia. Ficou a viver na instituição no mês que se seguiu. Agora, vive com o namorado “branco”, para quem acabou por voltar. “Acredito que se continuasse naquele casamento, ainda lá estava”, lamenta a funcionária.
“Pode casar com branco, com preto. É igual. Chineses e tudo”
Não é a única a lamentar. “Obrigaram-na a casar com um cigano à força! Isto acho mal. Isto de casar as pessoas. Acho mal”. Maria do Sameiro ou apenas Sameiro é irmã de um dos detidos, o tio do noivo. O laço familiar não é suficiente para concordar com o casamento forçado de Luísa: “Eles não tinham nada a ver com isso. Se ela estava com um rapaz, não tinham nada que a obrigar a casar com um cigano”.
Sameiro tinha 11 anos quando casou, mas reconhece que agora “é tudo diferente”. O homem com quem vive no Bairro da Biquinha, em Matosinhos, “não é marido, é companheiro”. Também era viúvo quando se conheceram. O marido de Sameiro foi assassinado num acampamento no Porto, há vários anos. Não se lembra há quantos. Teve o primeiro filho dele com “13 ou 14 anos”. Depois, vieram mais seis. Estão todos em Madrid. “Foram para lá porque casaram. Na altura, eu estava detida porque o meu marido era consumidor”, explicou ao Observador.
Apesar de ter casado nova, casou com quem queria. Ainda assim, defende que se devia casar “só aos 20”. Não vê problema em casamentos com pessoas fora da comunidade cigana. “O meu irmão está casado com uma branca. A minha prima tem um preto. Não há problema. Isso era antes. Agora já não. Pode casar com branco, com preto. É igual. Chineses e tudo”, diz Sameiro às gargalhadas. Só vê um problema. “Antigamente, as mulheres eram mais fiéis para os homens. Agora estão com uns e estão com outros. Perdem a cabeça na internet, com os computadores, com os jogos”, lamenta enquanto acena com a cabeça. “Eu não arranjo amante porque não sei ler nem escrever. Se não perdia também a cabeça”, admite novamente às gargalhadas.
Uns fugiram ao ritual de perder a virgindade. Outros dizem que é “o melhor que os ciganos têm”
Ivone e José testemunharam a mudança. Sentados em cadeiras de plástico ao lado um do outro, à porta de casa, recordam que casaram há mais de 50 anos. Tiveram nove filhos e já não sabem quantos netos têm. Casaram numa idade já avançada, tendo em conta as tendências da altura: ela tinha 16 e ele tinha 19. Mas tiveram que fugir para casar. “Conhecemo-nos, fugimos e ficámos juntos”, recorda Ivone. O marido, mais envergonhado, justifica, enquanto encolhe os ombros: “Os nossos pais não queriam que nós ficássemos juntos”. É que o casamento cigano é consumado com um ato sexual e, quando um casal foge, a comunidade parte do princípio que houve uma relação sexual antes. Como com Ivone e José.
A filha, Maria da Conceição, que entretanto se sentou ao pé dos pais à porta de casa, também teve que fugir. Queria casar com um homem que não era cigano, o Augusto. Mas a razão não foi essa. Os pais, Ivone e José, aceitaram a escolha da filha. “Somos todos iguais. Somos todos filhos de Deus. No princípio foi complicado. Tinha medo que as pessoas falassem. Depois foi passando e já está há trinta e tal anos com ele”, conta Ivone. Maria da Conceição queria era fugir ao tal ritual: o arrontamento.
Neste ritual que prova a virgindade da noiva, uma mulher mais velha e respeitada introduz um pano branco na vagina da noiva. Acontece durante a festa do casamento, numa zona reservada só à noiva, às mães dos noivos e às mulheres mais velhas. “O pano com sangue mostra-se aos ciganos e depois dá-se à mãe do noivo. Muitas ainda o têm”, explicou Sameiro ao Observador. “É para mostrar que somos virgem para os homens. Se a gente não for, os noivos não querem a gente”, diz. Depois ri-se e encolhe os ombros: “Às vezes faz-se um corte no dedo de alguém e põe o sangue no pano e está feito.” Sameiro não concorda com o ritual: “Está mal feito. Muitas têm medo.”
Outras têm orgulho. A própria nora de Maria da Conceição é uma delas: “É o melhor que os ciganos têm”. Tem 27 anos. Casou há 12 com Almerindo, que tem 30. Não fugiram. Susana submeteu-se a esse ritual. Não teve medo e sentiu-se orgulhosa. “Não faz sentido ser o marido a tirar a virgindade à mulher. Se é bonito para a tradição…”, defende. “É um orgulho para os pais”, interrompe o marido.
Susana e Almerindo são primos direitos e, por isso, ambos netos de Ivone. Cresceram juntos, apaixonaram-se e casaram. Também não concordam com casamentos forçados e reconhecem que tudo mudou: “Agora já está tudo moderno. Antigamente, era muito fechado. Havia mais regras. Foi bom para os jovens a mudança”. Ainda não têm filhos porque “não têm a vida composta” mas querem ter — não lhes interessa o que a comunidade pensa disso. “Queremos aproveitar a vida!”, diz Susana que trabalha num restaurante de sexta-feira a domingo.
Conseguem perceber o arrontamento mas não percebem porque é que tem de ser a mulher a sair de casa, caso o casal se separe. Se Susana se quisesse divorciar, Almerindo não via problema: “As pessoas falar, falavam. Falam sempre. Mas da minha parte não havia problema”. Já Susana torce o nariz: não seria capaz de arranjar outro marido. “Ela está a falar mas se essa mulher deixasse o meu filho, nem um fio de cabelo dela ficava aqui. Ela não ficava cá. Não a queria aqui”. Maria da Conceição, que tinha aparecido à porta da sala e ouviu a conversa, não resistiu a comentá-la. Acabou por sair. “Ela pensa como os antigos”, diz Susana mal a sogra virou costas. “Nunca mudam”, disse Almerindo, alto o suficiente para a mãe ouvir.
Almerindo pode considerar que “nunca mudam”. Mas as coisas vão mudando. O casamento forçado já é muito pouco comum na comunidade cigana. A maioria dos jovens que casam são maiores de idade e fazem-nos de uma forma consciente, livre e com um projeto de vida. “O casamento forçado acontece em comunidades menos desenvolvidas que, muitas vezes, vivem em acampamentos. Na sociedade, a mulher está mais ativa. Isso também acontece nos ciganos. Apesar de sermos uma cultura, estamos inseridos numa sociedade”, explica Hélia Maia ao Observador.
Hélia tem 27 anos e nunca casou. Deixou a escola muito cedo — “nunca chumbei” –, mas agora está a acabar o ensino secundário. “Acabamos por nos influenciar pela cultura. Não é que os nossos pais não deixem. Quando somos adultos é que pensamos”. E Hélia pensou. Agora, foi convidada para ser mediadora da Associação para o Planeamento e Família (APF). “No fundo, faz aquilo que nós fazemos, só que para ela é mais fácil porque é cigana”, explica o coordenador Nuno Teixeira ao Observador.
No Bairro da Biquinha, a APF têm um espaço onde desenvolve um projeto que apoia a comunidade cigana dali, desde 2004. “Parte de perceber que o casamento forçado é errado é perceber que o papel da mulher não é aquele que lhe é atribuído. Têm de perceber que a mulher tem de ter liberdade para se projetar enquanto profissional, estudante ou mesmo enquanto mãe”, defende Nuno. Para isso, a APF optou por não questionar os padrões culturais mas “introduzir comportamentos protetores”. Dão apoio a vários níveis. Têm até uma parceria com o centro de saúde para poderem ter um gabinete médico ali: “As mulheres não tinham liberdade para ir ao Centro de Saúde nem para tomar a pílula. Agora, os homens têm papel mais ativo: vêm buscar contraceção ou tratam da saúde dos filhos.”
E resultou: Nuno Teixeira garante que, no Bairro da Biquinha, não existem casamentos forçados. E explica: os que existem fora dos limites daquele bairro social de Matosinhos são “situações pontuais” e estão “relacionados com grupos de pessoas que estão mais isoladas. Pessoas que não vão à escola ou pessoas que vivem em acampamentos”. Tratam-se de “casamentos intrafamiliares, com pessoas da relação de confiança e pessoas de dentro que não são vistas como uma ameaça”. O objetivo? “Tornarem mais coesos e impermeáveis.”
Casos estão a diminuir mas existem cifras negras. Quando a PJ se depara com a tradição
Luísa não fugiu. “Genericamente, neste tipo de situações, pergunta-se: ‘porque é que não fugiu ou pediu ajuda?’”. A PJ podia prever a pergunta da funcionária da instituição onde a jovem estava: “Ó Luísa, não sabias fugir?”. Quem investiga casos destes (embora poucos) há vários anos, sabe a resposta a essa pergunta. “As vítimas estão condicionadas. Acabam por se resignar e ter receio das consequências de tentar alguma coisa”, explica fonte da PJ do Porto. Por medo, por desconhecimento ou porque não se sentem vítimas.
São as chamadas cifras negras: casos que nunca chegam a ser participados às autoridades porque as vítimas não se queixam.“As crianças são educadas para determinado projeto de vida, principalmente nas pessoas que estão em acampamentos (são grupos com menor aculturação e menor contacto com o exterior). Portanto, para elas nunca é forçado. É natural porque cresceram naquele padrão”, explica Nuno Teixeira. Carina, grávida do quarto filho, conta que a filha, de 12 anos, costuma dizer que não quer casar cedo. Mas duvida: “Elas dizem que não. Mas depois se aparecer alguém…”
Casos de casamentos forçados dificilmente chegam às autoridades. De acordo com dados fornecidos pela direção nacional da PJ, em 2017, só três chegaram à polícia, e não só da comunidade cigana. No ano anterior, foram dois. Em 2015, apenas um.
O casamento forçado é punido por lei, desde 2015. Por isso, não é preciso haver violência, rapto ou violação para haver um crime. Se houver um casamento forçado, a PJ pode e deve atuar. “Basta que a situação nos chegue e temos de atuar e participar ao Ministério Público”, explicou fonte da PJ de Coimbra ao Observador.
Mas o crime de casamento forçado “é complicado provar. Não se detetando que a pessoa está ali contra a sua vontade, já não tem nada a ver connosco. A pessoa é livre de decidir o que quer fazer”, defende fonte da PJ de Lisboa e Vale do Tejo, que não se recorda de algum caso desse tipo de crime que tenha chegado àquela diretoria nos últimos anos. “São questões culturais nas quais a Polícia Judiciária não consegue interferir. Não nos podemos esquecer: quando há um choque cultural, tudo é mais difícil”, acrescentou.
Ainda assim, “se a comunidade estiver alertada para isto, pode denunciar”, alerta fonte da PJ do Centro. Uma denúncia de casamento forçado pode levar a que sejam descobertos outros crimes: violação, rapto ou agressões. “É crime. É um crime público e temos de atuar. Embora as pessoas não interpretem o casamento forçado como crime”, acrescentou a mesma fonte, que lamenta: “A Segurança Social, por exemplo, deveria ter obrigação de nos comunicar. Atribuem subsídios. Podiam questionar: ‘Como é que esta criança de 14 anos foi mãe. O que aconteceu ali?’ A partir do momento em que o estado tem conhecimento disto, tem de atuar.” O Observador tentou contactar a Segurança Social para perceber se denunciam casos que lhes chegam, mas não obteve resposta até ao momento de publicação desta reportagem.
Quando a ausência na escola é suspeita de casamento: “Vítimas conseguem libertar-se e não são responsabilizadas”
A família disse que Mariana (nome fictício) estava na casa dos tios. Teria ido para lá durante uns dias “de livre vontade” porque o casal tinha uma filha da mesma idade com quem podia brincar. Quando a PJ de Aveiro contactou os familiares, a menina de 13 anos já tinha casado com um jovem de 16 anos e estava grávida dele. O casamento foi combinado pelo avô do noivo de forma “pacífica” e “sem rapto”. Mariana, que vivia num acampamento em Õia, em Oliveira do Bairro, foi levada para um bairro social em Vila Nova de Gaia, onde vivia a família do futuro marido.
Quando o caso chegou à PJ, os pais de Mariana foram contactados pela CPCJ: “O primeiro que se faz é salvaguardar os interesses da criança”. Em simultâneo, foi aberto um inquérito. Seguiram-se operações de buscas domiciliárias com o apoio da PJ do Porto, em que se apreendeu documentos tratados pela mãe do noivo para acrescentar Mariana ao agregado familiar. Foram detidas cinco pessoas: o marido, os pais dele e os pais de Mariana “por terem consentido o casamento”. “Subjacente ao casamento forçado há sempre abuso sexual de crianças. Os pais, permitindo que isso aconteça, tornam-se coautores do crime”, explicou fonte da PJ de Aveiro.
Foi a escola que Mariana frequentava que deu o alerta depois de se ter apercebido que ela não ia à escola há alguns dias. As escolas assumem um papel importante em dar a conhecer casos como o de Mariana às autoridades. Mas também em prevenir: “Quando confrontadas na escola e garantindo-lhe que serão salvaguardadas, as próprias vítimas admitem. Elas são conscientes mas não tem meios nem capacidade de se opor”, explica fonte da PJ de Aveiro. As escolas permitem que as vítimas sejam libertadas por “intervenção de terceiros”. “Sentem-se aliviadas porque sabem que não foi iniciativa da própria vítima. Isso esvazia a responsabilidade perante a comunidade. Conseguem libertar-se e não são responsabilizadas”, justifica a mesma fonte ao Observador.
O número de casamentos forçados que chegam à PJ de Aveiro têm vindo a diminuir e são cada vez menos. “Depois de o crime do casamento forçado se ter tornado público e de, em 2017, o crime de abuso sexual de crianças passou de semi-público a público, tivemos um aumento de denúncias dessa natureza que resultaram em várias detenções”, explicou fonte da PJ de Aveiro. A comunidade cigana daquela região ficou alerta. Inicialmente “pensavam que a lei não se aplicava a eles” mas depois “começaram a consumar o casamento após os 14 anos”. “Os crimes continuam a existir, as cifras negras é que aumentaram. Há uma preocupação em esconder das outras entidades, escolas etc. passaram a ter mais cuidado na ocultação”, defende a mesma fonte.
Quando a própria comunidade denuncia por “vingança”
Conheceu um rapaz numa festa de carnaval em Alcabideche, em Cascais, há três anos. Por iniciativa dele, começaram a trocar mensagens. Sara, de 13 anos, fugiu. Foi ter com ele, de 20 anos, a Proença-a-Nova. Depois de várias tentativas por parte dos pais de entrar em contacto com a filha, Sara disse-lhes que ia passar umas férias na zona. Mas todos sabiam que a menina ia casar, incluindo ela. A família foi buscá-la.
Mas os factos que chegaram à PJ de Coimbra são bem diferentes. A participação criminal foi feita pelo advogado dos pais de Sara. Nela, acusam os pais do noivo de a ter raptado e levado para um hotel, em Proença-a-Nova. De a terem levado para o quarto 17 e de o já marido a ter violado. De a terem fechado no quarto. De a obrigarem a trabalhar. Sara terá conseguido fugir e ligado aos pais através de uma cabine de telefone. Tinham-lhe tirado o telemóvel.
“Confirmámos que ela [Sara] esteve no tal quarto 17 durante quatro dias. Mas estiveram a festejar o casamento”, revelou fonte da PJ de Coimbra. Os pais do noivo confirmaram que tinha havido uma relação, mas não da forma como estava a ser dito. A menina de 13 anos estava de acordo e tinha tomado a iniciativa. “Diziam que ela fugiu porque não estava habituada à cidade e, em Proença-a-Nova tinha de ir trabalhar para as feiras”, adiantou a mesma fonte.
As versões da história são duas e as contradições são várias. Mas a participação criminal chegou à PJ quase um ano depois dos factos, quando “a família de Proença-a-Nova vai a Alcabideche por causa das ameaças por telefone” da família de Sara, o que levou a um tiroteio. “Quando a denúncia parte da comunidade, muitas vezes, é vingança de uma das partes. Mas temos sempre de fazer um despiste. Acima de tudo, falar com a vítima. Falando com ela, percebemos logo”, explica fonte da PJ de Coimbra, onde só chegaram (poucos) casos “quando há problemas entre eles: dotes que não foram pagos ou desentendimentos que já havia antes e que pensavam que o casamento ia resolver mas não resolveu”. Depois há a vingança: “Vão buscar aquilo que sabem que é crime para que a outra parte seja responsabilizada”.
O marido de Sara está agora acusado de sequestro, violação agravada e abuso sexual de crianças. O julgamento está a decorrer. “Será interessante ver a posição do juiz. Pode ser sensível aos argumentos da defesa, de que faz parte da tradição, de que não há violação”, diz fonte da PJ de Coimbra, não deixando de alertar: “Muitas vezes as testemunhas em tribunal dão o dito como não dito, porque já fizeram um acordo.”
Os casos que chegam à PJ são cada vez menos. Tal não significa que não aconteçam. Mas a comunidade cigana defende que não. “Muita coisa mudou”. Elisa Monteiro é mais uma a defendê-lo. Casou aos 18 anos por que se apaixonou. Teve se passar pelo arrontamento: “Eu queria casar com ele e a única maneira era assim. Não tive medo. Senti-me orgulhosa. Se não as pessoas depois falavam”. Tem dois filhos. O de 15 anos não quer casar porque “as mulheres são chatas”. A mãe conta que “às vezes as pessoas falam porque há meninos de 15 anos que já são pais”. Mas prefere que o filho estude. A filha, de 6 anos, diz que não com a cabeça quando perguntam se quer um marido. “A Paulinha vai casar aos 45 anos. Vai estudar, vai para a faculdade, vai trabalhar“, diz o padrinho, Nuno Teixeira.