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A notícia de que a Coleção Berardo foi arrestada esta semana em Lisboa a pedido de três bancos – Caixa Geral de Depósitos, BCP e Novo Banco – só pode ter caído como uma bomba junto do empresário madeirense. Há quem diga que José Berardo sempre comprou arte moderna e contemporânea apenas como forma de investimento, à espera da valorização das obras no mercado, para um dia as vender a bom preço. Mas os mais próximos têm outra versão: a coleção e o Museu materializam o melhor que ele conseguiu na vida e garantem-lhe a desejada presença num mundo dominado por intelectuais – precisamente aquilo que ele não é. Versão ainda mais romântica: os quadros são o bem precioso de um pobre com a quarta classe que subiu na vida a pulso.
Seja como for, jamais o empresário imaginou que um dia as obras lhe escapassem como areia por entre os dedos. “A parte cultural é a única coisa que faço que não está relacionada com investimento”, afirmou em 2003 na RTP. “É impossível eu olhar para a coleção como cifrões. Ficaria extremamente triste, porque se pegasse nesse dinheiro podia ter comprado um banco, para ter rentabilidade do meu capital. Nunca vendi um quadro e espero nunca vender.”
O arresto agora decretado, com aparatosa inventariação levada a cabo por funcionários judiciais no próprio Museu Berardo, durante a última quarta-feira, retira a Berardo qualquer ascendente sobre as peças, que estão agora à guarda do Estado até que a justiça portuguesa diga se servem para pagar os quase mil milhões de euros que está a dever à banca.
Bancos conseguem o arresto da coleção de arte, o bem mais valioso de Berardo
Fonte do Museu considera o arresto despropositado, uma vez que o protocolo de cedência das obras ao Estado, assinado em 2006 e renovado em 2016, mais o decreto-lei que estabeleceu os estatutos da instituição, ainda não foram revogados. Logo, as obras nunca poderiam sair do país sem autorização da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), tutelada pelo Ministério da Cultura.
À partida, enquanto o protocolo e os estatutos vigorarem, o Museu Berardo continuará a funcionar e a exibir o acervo agora arrestado. E continuará a ser administrado pela Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Coleção Berardo, criada em agosto de 2006 para gerir a instituição dentro do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
É por isso que ganha agora relevância a história de como o empresário madeirense ali conseguiu instalar um património tão valioso. É uma história rara com quase três décadas. Ele bateu à porta de vários ministros e primeiros-ministros. Quase todos lhe disseram “nim”. “Aprendi que as leis estão lá para se cumprir, mas que também temos de tirar partido das oportunidades”, afirmou o comendador em 2003, três anos antes de conseguir o queria, através de José Sócrates, o antigo chefe de Governo que poderá vir a ser julgado por corrupção e lavagem de dinheiro. Três testemunhas diretas deste percurso, duas das quais exerceram funções políticas entre 1995 e 2015, reconstituíram os pormenores, a pedido do Observador.
Joe descobre as artes
José Manuel Rodrigues Berardo, de 75 anos, acordou para a arte moderna no fim da década de 80, pouco depois de ter recebido a fita tricolor da comenda da Ordem do Infante D. Henrique. Conheceu então o economista Francisco José Capelo Ramos do Rosário, funcionário da Caixa Económica do Funchal (futuro Banif — Banco Internacional do Funchal, insolvente desde 2015). Essa instituição financeira tinha sido comprada por Berardo e Horácio Roque, outro “self-made man” da Madeira. Os dois tinham sido imigrantes na África do Sul e daí vinha a amizade. Berardo chegou a Joanesburgo aos 18 anos com “uma mão atrás e outra à frente”, como uma vez disse. Ali se casou com Carolina Gonçalves, em 1969, sul-africana de pais madeirenses, e ali passou de José a “Joe”.
A fortuna que juntou nesses anos, em compra e venda de minas de ouro desativadas, serviu-lhe no fim daquela década de 80 para a investir em Portugal. E também para começar a comprar arte, o que aparentemente vestia de respeitabilidade uma ascensão obscura que deixava muitos de pé atrás. “Sem ambição continuamos a ser o que nascemos”, disse em 1990 num programa de Joaquim Letria na RTP.
Entretanto, Francisco Capelo foi trabalhar no escritório de Pedro Caldeira, o mais famoso corretor da bolsa de valores em Portugal, e ficou a tratar dos investimentos de Berardo. Eram os anos das privatizações, do dinheiro que jorrava da Europa, da euforia bolsista com cotações irreais a encherem os bolsos a muitos portugueses.
Quando Caldeira estoirou financeiramente, em 1992, num caso mediático que chegou aos tribunais e envolveu acusações de burla e abuso de confiança (caso em que Caldeira seria ilibado), os “credores do jet-set lisboeta”, na expressão da época, ficaram sem vários milhões. Mas Capelo ajudou Berardo a segurar o dinheiro e isso fortaleceu a confiança entre ambos. “Sempre gostei dele, a minha intuição por ele era muito boa”, afirmaria o madeirense em 2003.
Para as elites culturais, Portugal vivia uma situação incomportável, completamente à margem do que tinha sido o século XX em termos de artes plásticas. Não havia uma única coleção pública de arte moderna digna desse nome, porque nem a ditadura nem a democracia tinham criado qualquer projeto cultural nessa área. “Os portugueses estiveram sempre muito distantes da contemporaneidade, porque as coleções não lhes permitiam a aproximação, tirando a coleção de arte moderna da Fundação Gulbenkian, mas são só peças portuguesas”, contextualizou em 2007 a historiadora de arte Simonetta Luz Afonso, antiga diretora do Palácio de Queluz e ex-presidente do Instituto Camões e do Instituto Português dos Museus. “Faltava internacionalização”, acrescentou.
Como Joe Berardo juntou o empréstimo da Caixa, o poder no BCP e a arte moderna
De repente, apareceu Berardo. Tinha o dinheiro e tinha quem lhe emprestasse o gosto – Capelo, precisamente, antigo militante do Partido Comunista que se orgulhava ter mudado a sua visão do mundo à conta de sessões diárias de psicanálise e da descoberta da arte como autodidata. Críticos, curadores e historiadores abriram os olhos de espanto.
O ascendente de Capelo sobre Berardo permitiu que o madeirense se deixasse persuadir para a constituição de uma coleção de arte, à maneira dos grandes capitalistas filantropos. O conselheiro e fiel gestor – “o meu broker”, como dizia Berardo – tirou partido do colapso de preços no mercado da arte do início da década de 90. As primeiras 500 obras custaram 74 milhões de euros atuais. A primeiríssima de todas foi uma tela de Vieira da Silva: “Composition”, de 1948. “O objetivo inicial era constituir uma coleção de arte contemporânea internacional que seguisse os critérios historiográficos e cronológicos tradicionais, assumindo-se como uma ilustração sistemática das diferentes correntes, desde o final da II Guerra Mundial até à atualidade”, descreve o site do comendador.
Naquela época, “se a pessoa tinha a capacidade de olhar, podia comprar o que antes teria custado cinco a dez vezes mais”, contou Capelo em 2007, exemplificando: o principal Picasso da Coleção Berardo, “Fêmme Dans un Fauteuil”, de 1929, estava avaliado entre 2,5 e 3,5 milhões de euros, mas foi adquirido por 2,3 milhões numa licitação por telefone, a partir de Lisboa, na Christie’s de Nova Iorque, em maio de 1997. E a preços de 2007 já valeria 18 milhões.
Um boato sobre Angola
Julho de 1993 está para sempre na memória de Berardo como a data em que a sua coleção de arte começou a granjear estatuto. Foi então inaugurada a primeira exposição das obras, na Galeria Valentim de Carvalho, em Lisboa (dirigida por Maria Nobre Franco, “uma amiga que me ajudou muito”, classificaria Berardo em 2015, quando da morte da galerista.) Viam-se obras de Dubuffet, Fontana, Yves Klein, Rauschenberg, Christo, Barceló. Mas o nome de Berardo não foi divulgado. A exposição intitulava-se “Uma Escolha numa Coleção Particular” e representou “uma tentativa de perceber qual a reação do público em relação à coleção”, diz o site de Berardo.
Ficou depositária das obras a Fundação José Berardo, criada no fim dos anos 80 com alegados fins filantrópicos e considerada pelo Estado como Instituição Particular de Solidariedade Social (com o Número de Identificação Fiscal 511032625). Não existia ainda a Associação Coleção Berardo, com o NIF 506492788, hoje dona das obras, que só aparece em 1996, com Capelo como membro. E também não existia a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Coleção Berardo, com o NIF 507878094, que hoje gere o museu e tem data de 2006.
Aliás, no dizer de Capelo, as obras apresentadas em 1993 eram suas, não de Berardo, e só foram parar às mãos do comendador quando ambos criaram a Associação Coleção Berardo. É a versão que consta numa carta que Capelo enviou há poucas semanas à Assembleia da República, no âmbito da segunda comissão de inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos.
No mesmo documento, Capelo, hoje desavindo com Berardo, afirmou que a Fundação José Berardo foi apenas “uma fachada para beneficiar de privilégios fiscais, sobretudo da isenção de pagamentos de mais-valias nos investimentos financeiros”. Disse mais: que o dinheiro para comprar obras de arte veio dos lucros em bolsa da Investec, empresa criada pelo próprio Capelo, que detinha 5% do capital, e dominada por Berardo, que detinha 95%. Um representante do comendador considerou que aquela carta contém “aleivosias” e ameaçou processar o economista.
Mas voltemos ao início da década de 90, mais precisamente a 1994. Provavelmente insatisfeito com a repercussão da exposição na Galeria Valentim de Carvalho – chegou a dizer-se que as obras ali expostas eram falsificações, tal a incredulidade dos visitantes –, Capelo terá ido à procura de legitimação junto de especialistas, alguns dos quais chegaram a deslocar-se a Camarate para verem uma grande fatia das peças com os próprios olhos. Foi o suficiente para se aperceberem da inacreditável qualidade do conjunto. E assim surgiu, no restrito círculo de entendidos, a ideia de levar a Coleção Berardo para o CCB. Só que o então primeiro-ministro Cavaco Silva nunca quis.
316 ou mil milhões? Fazem-se apostas
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O acervo de arte moderna e contemporânea que Berardo cedeu ao Estado em 2006 era composto por 862 obras, conforme indica o protocolo então assinado com e que levou à criação da fundação que gere o Museu Coleção Berardo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. A coleção cresceu a partir de então e conta hoje mais de 900 obras, compradas até 2009 com dinheiro dos contribuintes e do próprio empresário madeirense. Jean-François Chougnet, primeiro diretor do Museu Berardo, disse em 2008 e reafirmou há poucas semanas ao Observador, que a Coleção Berardo pode ser vista como um conjunto de três coleções: a coleção do protocolo, a coleção que o museu entretanto comprou (conhecida como coleção Estado-Berardo) e ainda a coleção privada do empresário, que continuou a comprar obras e a depositá-las no CCB.
Entre 2006 e 2009, Berardo entregou dois milhões de euros ao museu para aquisição de novas obras, exatamente o mesmo valor transferido pelo Ministério da Cultura, através do Fundo de Fomento Cultural. Uma conhecida escultura de Joana Vasconcelos, feita de ferro e garrafas de vinho, intitulada “Néctar”, é exemplo das peças incorporadas já depois de o museu ter sido inaugurado, em junho de 2007. A partir de 2010 e até hoje, segundo os sucessivos relatórios anuais do museu, o Governo deixou de atribuir verbas para novas aquisições, presumivelmente devido ao contexto de crise económica e financeira, e Berardo fez o mesmo.
As obras foram oficialmente avaliadas em 2006 pela leiloeira Christie’s, que indicou um preço de mercado de 316 milhões de euros. Terá existido uma outra avaliação em 2009, pedida por Berardo ao galerista americano Gary Nader, que apontou 509,5 milhões de euros. Especialistas em arte contemporânea consultados pelo Observador nas últimas semanas entendem que a valorização do acervo corresponderá hoje a valores na ordem dos 700 milhões de euros ou até mesmo mil milhões.
“Sugeri que havia uma coleção e que havia a disponibilidade. Nessa altura, o local óbvio era o CCB, mas, infelizmente, à área política que estava no poder faltava-lhe sensibilidade cultural”, disse Capelo em 1997 numa entrevista ao Expresso. “Simonetta Luz Afonso manifestou oportunamente o interesse do Instituto Português dos Museus pela vinda da coleção para o país, sem, contudo, ter encontrado ao nível do Governo o apoio necessário para assegurar as contrapartidas correspondentes”, escreveu Alexandre Pomar em 1996, no mesmo jornal.
No meio cultural passou a circular uma explicação, sob a forma boato, ainda hoje na memória de várias pessoas: que Cavaco teria rejeitado a hipótese de prestigiar Berardo com o CCB para não perturbar as relações diplomáticas com Angola. Depois dos Acordos de Bicesse, assinados em 1990 entre o MPLA e a UNITA, com mediação do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Durão Barroso, Portugal continuava empenhado no cessar-fogo angolano, através do Protocolo de Lusaka. Berardo era muito próximo de Horácio Roque e da mulher deste, Fátima Moura Roque, dirigente da UNITA e deputada angolana – e se o Estado acolhesse a coleção do empresário madeirense isso poderia ser interpretado como um apoio de Lisboa a uma das partes em conflito.
Acontece que o cavaquismo estava a chegar ao fim e já todos pensavam no dia seguinte. Através da organização dos Estados Gerais, o Partido Socialista liderado por António Guterres ganhava fôlego para as legislativas de 1 de outubro daquele ano. Em inícios de 1995, parte da elite cultural voltou a insistir na ideia. Realizou-se uma reunião em segredo na escola de artes visuais Ar.Co, então situada na Rua de Santiago, perto do Castelo de São Jorge, em Lisboa. Alguns dos críticos e curadores mais relevantes da época discutiram aí o destino e a importância da Coleção Berardo. Entendiam que um futuro governo socialista teria sensibilidade para levar as obras para o CCB, até porque o consideravam mal aproveitado e à deriva no que a política expositiva dizia respeito. “O Museu de Serralves nunca mais avançava e esta era a grande oportunidade de dar ao país uma coleção de arte moderna a sério”, diz hoje uma das testemunhas daquela fase.
De resto, as conclusões dos Estados Gerais do PS, base do programa eleitoral que o partido apresentou em 95, referiam explicitamente que CCB “deverá contar com um Museu-Centro de Arte Contemporânea”, mas tal projeto não pode impedir a organização de outras exposições temporárias. Os interesses de Berardo eram a pouco e pouco acolhidos na esfera política, porém, como logo a seguir se verá, ele queria mais – e acabará por ter, depois de longa espera. “Governo após Governo, ministro após ministro, a coleção continuava sem morada certa”, relata o site de Berardo. “O colecionador persistiu com os diversos governantes durante uma década. Sabia o que queria e conseguiu-o.”
Guterres não quis, Sócrates aceitou
António Guterres ganhou as eleições, Manuel Maria Carrilho tornou-se ministro da Cultura e as pessoas que o aconselhavam pediam-lhe que abrisse as portas do CCB a Berardo. “O problema foi que Carrilho percebeu que Berardo queria a área de exposições do CCB por inteiro e não aceitou, porque achava que o país tinha de receber exposições temporárias internacionais naquele espaço”, conta um antigo funcionário do Ministério da Cultura. “Nos idos de 1992, 93, [Berardo] começou a falar da sua coleção, oferecendo-a ano Estado e dizendo ‘não quero gastar dinheiro em edifícios, vou gastar dinheiro na coleção’, lembro-me perfeitamente destas palavras”, recordará em 2007 Simonetta Luz Afonso.
O empresário virou-se então para Edite Estrela, presidente da Câmara de Sintra desde 1994, e chegou a acordo com ela. Em maio de 1997 foi inaugurado no antigo casino da vila o Sintra Museu de Arte Moderna Coleção Berardo, onde cerca de um terço do total de obras passou a ser exibido. A diretora escolhida foi Maria Nobre Franco, a galerista por detrás da primeira aparição pública das obras, em 1993.
Para o empresário, a solução era temporária, um improviso até que chegasse a vez de alcançar a zona de Belém. “Durante muito tempo, infelizmente, não existiu consciência da relevância cultural da Coleção Berardo”, justifica hoje um porta-voz do empresário.
Berardo: o que é e quanto vale a coleção de arte mais polémica do país?
Ainda em 1997, Carrilho aceitou que as restantes peças da coleção que não estavam em Sintra ficassem em depósito nas reservas do CCB, para ocasionalmente serem usadas nas exposições temporárias. E assim aconteceu logo em setembro, com a mostra “The Pop 60s”.
Entretanto, deu-se o corte de relações entre o mentor da coleção e o capitalista. Segundo Capelo, na recém-enviada carta à comissão parlamentar, as obras de Berardo “não tinham inicialmente um destino físico, um espaço de apresentação e guarda”, o que “só ocorre com o protocolo estabelecido com a Câmara de Sintra”. E havia ainda este grande detalhe: “As obras foram adquiridas com o endereço de uma zona franca na Suíça”, escreveu Capelo. Para as domiciliar definitivamente em Portugal, Berardo teria de pagar IVA no valor de cerca de 7,5 milhões de euros. Terá sido esse o ponto da discórdia entre os dois. Capelo insistiria com Berardo para que acertasse contas com o Estado; Berardo torcia o nariz, com receio de que o Ministério da Cultura iniciasse um processo de classificação do acervo, o que impediria uma futura venda (Capelo sustenta a tese de que Berardo sempre quis fazer negócio com as obras e não tem qualquer paixão por arte).
Zangaram-se até hoje. As novas aquisições passaram a ser feitas ao gosto de Berardo. A informação do IVA chegou aos ouvidos do Governo. Capelo iniciou negociações com o Ministério da Cultura para criar no CCB um Museu do Design, com centenas de peças de que era proprietário. Logo em 1999, o museu abriu. Ali esteve até 2006, se bem que logo em 2002 essas peças foram vendidas à Câmara de Lisboa por 10 milhões de euros, dando origem ao atual Museu do Design e da Moda (MUDE), com sede na Rua Augusta e a aguardar reabertura após demoradas obras de reabilitação do edifício.
Quem acompanhou o caso à época diz que Berardo ficou simplesmente furioso ao saber que o antigo conselheiro, com que se tinha incompatibilizado, brilhava então no CCB, ao passo que ele, ao fim de tantos anos de tentativas, tinha de se conformar com Sintra. “A Coleção Berardo foi feita com a ambição de ser o Museu de Arte Moderna de Portugal, por isso, a localização definitiva tinha que ser em Lisboa”, sublinha agora um porta-voz de Berardo.
A história acelerou-se. O comendador passou a namorar o Governo com uma postura considerada mais branda. Esboçou-se ainda no tempo de Guterres a ideia de colocar a coleção no Museu de Arte Popular, que poderia ficar ligado ao CCB por um passadiço. O engenheiro deixou a chefia do Governo em 2001, Durão Barroso entrou em cena e as negociações com Berardo foram retomadas. Em 2004 o primeiro-ministro do PSD chegou a garantir ao “Público” que mantinha contactos com o comendador. Mas nada aconteceu.
Em fins de 2005, poucos meses depois de Sócrates ganhar as eleições legislativas pela primeira vez, e com Isabel Pires de Lima no cargo de ministra da Cultura, António Mega Fereira foi sondado para suceder a Fraústo da Silva na presidência do CCB. Sabe-se hoje que já então era mais que certo que Berardo ia conseguir o pretendido. “Quando a ministra da Cultura me convidou, perguntou-me o que é que eu pensava da Coleção Berardo no CCB. Eu disse-lhe que era favorável, dentro de determinados parâmetros”, afirmou Mega Ferreira em 2008, com esta ressalva: “A nossa proposta era de coexistência entre a instalação permanente da Coleção Berardo e a continuação de uma atividade de exposições temporárias por parte do CCB”. Ou seja, mantinha-se para ele, em 2005, a ideia saída dos Estados Gerais do PS uma década antes.
Ora, quando finalmente o acordo de comodato é firmado, em abril de 2006, não foi aquela a solução encontrada. O Museu Berardo, com inauguração no ano seguinte, tomou por completo o Centro de Exposições do CCB, também conhecido como módulo III, e o Estado passou a assegurar os custos de manutenção do museu.
“Logo que o Governo português soube que o Estado francês tinha desafiado o comendador Berardo a instalar a coleção em Paris, teve início a negociação do protocolo de comodato”, alega um porta-voz de Berardo, para tentar demonstrar que não foram outros os motivos de Sócrates e do empresário que não os de enriquecerem o país em termos artísticos. “O primeiro-ministro seguiu sempre as negociações, Alexandre Melo só esteve na primeira reunião na residência do primeiro-ministro. As negociações decorreram diretamente com a equipa da ministra e do então chefe de gabinete de Sócrates”, Luís Patrão, que já tinha trabalhado no Governo Guterres, pormenoriza o porta-voz.
A odisseia chegava ao fim. A coleção ficou em Belém até hoje, com renovação de protocolo em 2016. Desde esta semana, as peças estão arrestadas e o destino é muito incerto.
[Fotografia principal deste artigo: Gonçalo Villaverde / Global Imagens]