“People call me a legend and I’m freaky 40 years old. That makes me feel old as fuck, but I’m not that old”, comenta Chris Moneymaker, enquanto se agita na cadeira. É o desabafo do primeiro jogador a vencer o maior torneio de póquer do mundo depois de se ter qualificado na Internet. Na tradução possível seria qualquer coisa como: “As pessoas chamam-me lenda e eu tenho apenas 40 anos. Isso faz-me sentir velho comò caraças, mas não sou assim tão velho”.
Lenda ou não, há um antes e um depois de Moneymaker: em 2003, o contabilista do Tenesse, então com 27 anos, casado com a namorada do liceu e pai de uma menina recém-nascida, precisou apenas de 40 dólares para vencer a World Series of Poker (WSOP), em Las Vegas, levando para casa 2.5 milhões de dólares, qualquer coisa como 2.4 milhões de euros. O mundo do póquer nunca mais seria o mesmo.
Não é de estranhar, por isso, que, no universo do póquer, a repercussão da vitória de um jogador amador e completamente desconhecido na maior competição de póquer do mundo seja conhecida como “Efeito Moneymaker”. Foi o conto de fadas perfeito: um homem normal conseguiu um feito extraordinário, batendo as mentes mais brilhantes do jogo. Hollywood dificilmente faria melhor. Depois da vitória do norte-americano, houve uma explosão do fenómeno em todo mundo e o jogo massificou-se, sobretudo graças ao crescimento extraordinário do póquer online. A competição democratizou-se e mudou radicalmente.
“Quando ganhei a WSOP, em 2003, a média de idades era de 55 anos. A média de peso era de mais de 100 quilos. Toda a gente fumava e bebia álcool. Era um clube de velhos, gordos e brancos a jogar póquer nas traseiras. A minha vitória mudou isso”, assume Chris Moneymaker, em entrevista ao Observador.
Hoje, não podia ser mais diferente. A média de idades baixou consideravelmente, assim como perfil dos melhores jogadores do mundo. Existe um fluxo contínuo de jogadores entre o póquer online e as competições ao vivo e um número crescente de mulheres a jogar. O clube de velhos deu lugar a uma competição à escala mundial.
“Se olhares para o ranking dos melhores jogadores do mundo vês que toda a gente está a fazer dietas nutricionais, a trabalhar com preparadores físicos pessoais, a fazer ioga e meditação, basicamente a tentar manter o corpo nas melhores condições para jogar durante 12 horas. Os jogadores são agora mais atléticos. Além disso, vês muito mais mulheres no jogo, o que é uma coisa nova na competição. Há 15 anos, seria muito raro ver uma mulher sentada numa mesa de póquer. Há 10 anos, podias ver uma de quando em vez. Agora, se olhares pela sala, consegues ver uma mulher em cada mesa”, explica Chris Moneymaker.
Não é difícil conceder que o norte-americano tem razão no raio-x que traça. Além disso, e olhando à volta da gigantesca sala de conferências do Atlantis Resort, onde decorre a primeiríssima edição do PokerStars Championship Bahamas, é possível perceber a dimensão que o fenómeno tomou. Mesmo que ainda não seja consensual descrever o póquer como um desporto, os jogadores são tratados como atletas de alta competição: não há bebidas alcoólicas, nem é permitido fumar no recinto; existe um espaço onde podem comprar todo o tipo de comida, desde fruta a barras energéticas; uma zona de descanso, com dois ecrãs gigantes que transmitem ininterruptamente algumas das melhores competições desportivas do mundo, como a NBA ou Premier League; uma enorme equipa de produção que grava e acompanha vários jogos em simultâneo; e até massagistas que vão circulando por entre as mesas, pondo as mãos à obra sempre que solicitadas.
Para quem vê de perto e pela primeira vez um torneio desta dimensão este é talvez o detalhe mais disruptivo: uma dezena de massagistas (talvez mais), todas com o mesmo uniforme — t-shirt vermelha e leggins pretas –, a responder sempre que solicitadas, levando atrás de si toda a parafernália de óleos de massagem. Muitas acompanham os torneios que vão acontecendo em todo mundo como trabalho a tempo inteiro. É o caso de Tatiana Diaz, colombiana que se fixou em South Florida e que acompanha torneios há três anos. “As minhas amigas trabalhavam num casino, começaram a acompanhar torneios e desafiaram-me a experimentar”, explica. Precisou de tirar uma licença de massagista para trabalhar — sem ela, não o poderia fazer nos Estados Unidos –, mas parece ter compensado: num dia ideal consegue ganhar 500 dólares, cerca de 470 euros. E gosta do que faz, garante.
“Não percebo muito de póquer, mas sempre posso viajar, sou bem paga e consigo ter algum tempo para mim”, diz, timidamente. Ainda assim, a pergunta impõe-se: o póquer pode ter mudado radicalmente, mas continua a ser um universo predominantemente dominado por homens; alguma vez houve alguma situação constrangedora? Tatiana encolhe os ombros. “A maioria dos jogadores é profissional”, remata.
Não é o único detalhe a reter na fotografia. Dias antes da conversa com Chris Moneymaker, Lee Jones, uma espécie de Willy Wonka do admirável mundo do PokerStars Championship Bahamas — ou “o evangelista do póquer”, como se descreveu — mostrou os cantos do templo, onde, durante os últimos seis dias, centenas de jogadores de todo o mundo têm disputado mais de 90 eventos e dezenas de milhões de dólares.
Durante a visita guiada, Lee Jones, autor, comentador e jogador de póquer respeitado, não disfarça o entusiasmo, elevando a voz acima do som que vem do remexer de centenas de fichas, um estranha e ao mesmo tempo comtagiante sinfonia que atravessa a sala toda. “Há cerca de 90 a 100 pessoas a trabalhar em simultâneo aqui. E tudo começou a ser preparado no início de dezembro”. À medida que avança sala adentro e vai dissertando sobre a evolução do mundo do póquer, o cicerone queda-se para explicar o papel ingrato dos dealers. “Não é uma vida fácil”, assume. “Se acertam, ninguém repara. Se erram está tudo estragado”.
John, de 64 anos, dealer há 14 anos, reconhece que é assim, mas desdramatiza. “Todos cometemos erros, mas vamos tentando errar o menos possível. Precisamos de ter capacidade de encaixe, ser razoáveis com números e prestáveis. O resto vem com treino”. Ele sabe do que fala. Começou no póquer em 2003, depois de se ter divorciado. Era diretor de marketing na indústria da alimentação, mas estava à procura de uma nova carreira e de uma nova vida. Como sempre gostou de póquer, decidiu frequentar uma escola para dealers, na California. E nunca mais parou. Neste momento trabalha a tempo inteiro num casino de Las Vegas, onde ganha 30 dólares por hora, cerca de 28 euros. Mas faz questão de trabalhar no torneio que a PokerStars organiza nas Bahamas. “É o melhor trabalho que já tive”, garante.
Um jogo em constante evolução
Ainda que hoje esta função esteja relativizada, o dealer funciona como uma espécie de garante de credibilidade de um jogo visto durante muitos séculos como o jogo dos trapaceiros. Os westerns ajudaram, de resto, a alimentar esse mito, com cenas épicas entre cowboys à volta de uma mesa de jogo nos velhos saloons do Old Wild West.
Em parte, existe algum rigor histórico na associação: embora ninguém consiga apontar com rigor a origem do póquer — as duas principais correntes dividem-se entre a Dinastia Sung, na China do século X, outros apontam para uma ligação a um jogo persa chamado “As Nas”, do século XVI –, a relação embrionária com o Oeste dos Estados Unidos existe. Acredita-se que uma versão mais próxima da contemporânea tenha sido levada por colonos e marinheiros franceses para a cidade de New Orleans, percorrendo depois a rota do rio Mississipi e popularizando-se entre os primeiros exploradores de ouro que chegaram ao Velho Oeste.
De entre todas as modalidades de póquer que existem — e são muitas –, o Texas Hold’em acabou por se tornar a mais popular. Em linhas gerais, nesta modalidade, cada jogador tem à sua disposição duas cartas. Na mesa, existem cinco comunitárias. O jogador que tiver a melhor combinação possível entre as cartas de que dispõe e as que são colocadas no tapete verde vence. Nota: não é tão simples quanto parece. Longe disso. Muito longe disso. Exige, entre outras qualidades, conhecimentos avançados de probabilidade, uma grande capacidade de leitura e análise e uma boa dose de sangue frio.
E mesmo dentro da mesma modalidade, há várias formas de enfrentar um jogo de póquer: os torneios padrão, em que o vencedor é aquele que conseguir reunir todas as fichas em jogo; os cash games, em que as fichas correspondem exatamente ao dinheiro que está em jogo; e os sit and gos, em que os jogadores podem deixar a mesa (real ou virtual) assim que o entenderem.
A diversidade que existe dentro do jogo também contribuiu para que o póquer percorresse um longo caminho de evolução até se tornar no que é nos dias de hoje: um fenómeno à escala mundial, com centenas de milhões de dólares envolvidos, imprensa especializada, jogadores profissionais, coachers (ou, numa tradução pouco rigorosa, treinadores), patrocinadores e competições seguidas por milhões de pessoas em todo mundo.
Se é absolutamente consensual que o “Efeito Moneymaker” desempenhou um papel absolutamente central no boom do póquer, a introdução da Hole Cam (uma câmara que mostra as cartas que os jogadores têm à disposição e a que apenas o público tem acesso), foi determinante para elevar as emissões televisivas para outro patamar, no ínicio dos anos 2000. O filme Rounders (1998), protagonizado por Matt Damon e Edward Norton, e o surgimento das primeiras plataformas de póquer online fizeram o resto: transformaram o póquer “num fenómeno da cultura pop”, como explica o jornalista Eric Raskin, no livro The Moneymaker Effect.
Outro fator que ajuda a explicar a popularidade do jogo é a crescente democratização do póquer. Ou seja, a possibilidade de qualquer um poder enfrentar os melhores jogadores do mundo, assim se consiga apurar a partir de um torneio satélite ou decida pagar a entrada num determinado torneio. Foi assim que Morris Dadoun, um canadiano de 84 anos, que se apurou a partir de um torneio de solidariedade no Canadá sem saber que o prémio final era uma entrada direta para o PokerStars Championship Bahamas, chegou a Nassau, para se cruzar com jogadores consagrados como Jason Mercier, considerado, em 2016, o jogador do ano da WSOP, Daniel Negreanu, o jogador que mais dinheiro arrecadou na história do póquer, ou o próprio Chris Moneymaker.
E como em qualquer fenómeno da cultura pop, o que não faltam são lendas ou ídolos no póquer. Além dos já referidos, há ainda Antonio Esfandiari, por exemplo, o iraniano que ocupa um lugar na história do póquer como o jogador que mais dinheiro conseguiu arrecadar num único torneio — mais de 18 milhões de dólares, cerca de 17 milhões de euros. Existe também Phill Hellmuth, o jogador mais premiado na história do WSOP. Ou ainda Phil Ivey, como o jogador mais novo de sempre a conquistar aos dez eventos durante o WSOP.
Atualmente, e segundo o ranking oficial Global Poker Index, os cinco melhores jogadores do mundo são David Peters (EUA), Nick Petrangelo (EUA), Alan Ari “Ari” Engel (Canadá), Adrian Mateos (Espanha) e Bryn Kenney (USA). Não há ninguém neste grupo da frente que tenha menos de 3 milhões arrecados com torneios de póquer, sendo que em aguns casos esse valor chega a mais de 10 milhões de dólares.
Estes cinco estão num patamar que os jogadores portugueses ainda não atingiram, apesar dos resultados positivos que vão somando. O primeiro português no ranking é João Vieira, 150º na lista. Miguel Silva é, neste momento, o segundo jogador com mais pontos em Portugal, mas é apenas 592º no ranking global. Pedro Oliveira é terceiro na lista nacional e 769º no mundo. Para a história do póquer nacional ficou ainda João Barbosa, o primeiro português a conquistar uma etapa do maior circuito europeu de póquer, o European Poker Tour (EPT), na Polónia.
Até agora, durante os cerca de oito meses que passam em média entre torneios, os jogadores que se quisessem distinguir no mundo do póquer teriam de passar necessariamente por algumas das competições mais exigentes do mundo. No póquer online, onde os prémios estão ainda longe dos atribuídos nas mesas físicas, o World Championship of Online Poker e o torneio Sunday Million são competição incontornável. Juntos, os três jogadores que mais dinheiro conseguiram em toda a carreira no póquer online, Chris “moorman 1” Moorman, Bryan “bparis” Paris e Nicolas “PokerKaiser” Fierro, acumulam ganhos na carreira superiores aos 30 milhões de euros.
No póquer ao vivo, a WSOP é, naturalmente, o evento mais prestigiante, mas existiam ainda, por exemplo, as provas organizadas pela World Poker Tour ou pela PokerStars, como a EPT e as suas congéneres asiática (APPT) e da América Latina (LAPT).
Mas isso mudou. O PokerStars Championship Bahamas veio substituir o PokerStars Caribbean Adventure (PCA), como parte de uma estratégia de consolidação da marca. Será a primeira etapa de um circuito mundial de póquer que deverá passar pelo Panama, Macau, Montecarlo e Barcelona, por exemplo, acabando com a EPT, a APPT e a LAPT. Os torneios mais pequenos que antes integravam os circuitos extintos vão ser integrados no novo PokerStars Festival. O objetivo é levar o póquer para um outro nível, garantem os responsáveis.
“Durante os últimos 15 anos, o jogo não fez nada senão mudar
Voltando a Chris Moneymaker. Se há alguma certeza em relação ao fenómeno do póquer é que ele continuará sempre a evoluir e a adaptar-se aos novos jogadores e às novas tecnologias, sugere o norte-americano. Tem sido assim desde 2003 e será assim daqui em diante.
“Durante os últimos 15 anos, o jogo não fez nada senão mudar. Havia jogadores que eram incríveis em 2008 e que agora estão retirados do póquer porque não conseguiram acompanhar as mudanças ou porque achavam que sabiam tudo do jogo”.
Além disso, explica, o póquer é e será sempre um “jogo imperfeito”, onde “a sorte entra sempre na equação”. “Os jogadores recreativos ou novatos não percebem, de facto, a quantidade de técnica que está envolvida num jogo de póquer. Dito isto, há uma percentagem do jogo que não consegues controlar. Mesmo que tomes as decisões certas, que jogues de forma perfeita, podes perder”.
A derrota é, também por isso, uma parte importante do mundo do póquer. E há que saber lidar com ela. “Para seres um bom jogador de póquer é preciso muita disciplina, tens de ser capaz de gerir a tua banca, tens de ser capaz de escolher quando deves jogar e ter equilíbrio. Ao mesmo tempo, tens de ter uma certa dose de insanidade, para conseguires lidar com a derrota. Matematicamente, se jogares vários torneios de póquer não vais conseguir qualquer lucro em mais de 50% das vezes. Em 85% dos casos, a derrota é parte deste jogo. É preciso ter uma força mental considerável e ser uma pessoa com capacidade de reagir. É uma combinação difícil de conseguir: ser prático e ao mesmo tempo ter a tal dose de insanidade”, explica.
A única forma de tentar reduzir a margem de insucesso é estudar o jogo e “é isso que as pessoas não entendem”, repara Chris Moneymaker. “As pessoas veem os torneios na televisão, os milhões de dólares, veem a diversão, a atividade nas redes sociais… mas não veem a quantidade de trabalho que pomos nas mesas. As horas passadas a tentar perceber o jogo, a tentar melhorar, a tentar analisar cenários e a tentar perceber de que forma o jogo vai evoluir e para onde”. E nem todos estão em condições de o fazer.
Apesar de todos os mitos associados ao universo do póquer, o mundo da alta competição está longe de ser um conto de fadas. Chris Moneymaker e outros depois dele conseguiram. Mais virão a conseguir. Mas às vezes a aposta é demasiado alta para fazer call.
*O Observador viajou a convite da PokerStars.