Há uma janela escancarada, com vista para o que se passa nesta Casa Guilhermina, onde se desencanta um fado de raízes, mas também um manifesto para o futuro. “Sejam bem-vindos a esta casa de portas abertas, para quem dela quiser usufruir”, diz Ana Moura. Aos 43 anos e depois de seis álbuns lançados, o novo disco da artista, que é editado esta sexta-feira, dia 11 de novembro, é um abrir de portas para sonoridades e estéticas que não deixam de fora o fado. Pelo contrário.
Nesta casa procura-se uma harmonia constante, sinal de que não há limites definidos nem divisões fechadas, mesmo perante uma tradição musical noutros tempos aparentemente intocável. É assim que começa este disco íntimo, mas facilmente transmissível, claramente a pedir que quem lhe dê ouvidos se aventure pelo meio das várias linguagens que reúne. A música portuguesa é, cada vez mais, mapeada de camadas, cores e texturas que não cabem num lugar feito apenas da tradição. Vive-se entre passado e presente e ensaiam-se novos caminhos. Um espaço de vitalidade e de frescura no reencontro com Ana Moura.
Nos versos do primeiro tema, “Janela Escancarada”, escuta-se “neste fado dispenso normalidades”. De peito aberto e sem filtros, o registo evoca uma história familiar onde se mistura o fado e o semba, a morna e a kizomba, o samba e o choro, o morro e a pista. Verdadeiro arraial, com a dolência do fado e o ritmo do folclore português, mas com os balanços quentes e tropicais vindos de África e do Brasil, latitudes que estavam, afinal de contas, presentes na vida da artista que encarou a construção de Casa Guilhermina como uma busca pela sua própria renovação. Mas é bem mais do que isso. Na apresentação do disco, que aconteceu esta quarta-feira no Cinema São Jorge, em Lisboa, Ana Moura começou por dizer que Casa Guilhermina nasce de uma insatisfação, dada ao excesso de digressões e na falta de encontro consigo mesma, já depois de ter gravado as bases de um outro disco com o produtor norte-americano Emile Haynie, que ficou na gaveta.
[“Andorinhas”:]
“Estava a gravar um disco com músicas que me foram sendo oferecidas por diversos compositores, mas na verdade sentia que não era aquilo que queria fazer. A determinada altura, no estúdio, lembro-me de sentir um vazio, em que eu própria já nem sabia o que gostava”, conta. Seca que nem passa de uva – parafraseando um dos versos do novo álbum, escrito por Conan Osíris –, a cantora voltou à busca, entre os fados de Maria da Fé e as sonoridades que foi encontrando na noite lisboeta. Foi o passo decisivo para encontrar não só o autor de Adoro Bolos (2017), mas também o produtor Pedro da Linha e o cantor Pedro Mafama. “Começou aí este bichinho e a vontade de querer juntar todas estas pessoas, que me faziam sentir representada enquanto pessoa e musicalmente.”
Num processo de composição partilhado e bastante caseiro, a jornada que juntou estes diferentes intervenientes foi, passo a passo, conduzindo à ideia conceptual que agora ganha vida. “Começámos a compor livremente, sem pensar em géneros ou a encaixotar uma só coisa. Eu sou fadista, essa condição nunca se desenraíza de mim, mas muitas vezes isso também pode ser opressor e o facto de estarmos ali a compor, cada um com a sua linguagem, foi fundamental por essa mesma liberdade”, sintetiza.
[“Arraial Triste”:]
Entre memórias partilhadas, fotografias e objetos de um passado disperso em diferentes territórios, dá-se a conhecer uma história familiar vivida entre Angola e Portugal. Na mais funda raiz, uma homenagem, plasmada no título do disco, à avó materna Guilhermina. “Uma guerreira, filha de dois mundos”, como refere no texto lido durante a apresentação. Mas também há referências a uma prima, que entretanto morreu, presente na faixa “Mázia”, feita entre ritmos de samba e kizomba. Dividido entre um conjunto de interlúdios, Casa Guilhermina vai-se abrindo assim a diferentes géneros, desde logo com “Calunga” e “Birim Birim”, que fecham um primeiro ciclo de temas. Já ali o ritmo da música popular das ruas e vielas convive com a modernidade eletrónica, pela mão de Pedro da Linha, mas ainda à procissão vai no adro.
Na procura por uma nova familiaridade, encontra-se neste disco uma “Nova Lisboa” de Dino D’ Santiago e a influência de outras vozes, como a do compositor e cantor angolano Toty Sa’Med. Traços e figuras que projetam os ritmos de uma cidade (de futuro) onde se dança noite dentro, mas onde também se espera poder voar mais alto. O mote, esse, está vincado na letra de “Andorinhas”, da autoria de Ana Moura e Pedro Mafama:
“Eu quero tirar os pés do chão
Quero voar daqui p’ra fora e ir embora de avião
E só voltar um dia”
Entre novos horizontes, regressa-se ao fado mais tradicional com “Corridinha” – a faixa seguinte – que celebra uma nova vivência em comunidade, onde “sábado à noite há cachupa / E domingo, pois lá está / A família toda junta.”
Antes do novo bloco do álbum, mais íntimo – diga-se –, desvenda-se um fado com letra de Conan Osíris e um fandango, que se dança com a intensidade de um beat africano e que desagua nesse “Arraial Triste”, onde se “baila com a lua cheia”. Estamos na Lisboa dos Santos Populares, plenamente mestiça, onde se dançam diferentes ritmos que, acima de tudo, constituem uma forma de memória coletiva. Ao longo das suas 18 faixas, Casa Guilhermina deambula entre o fado tradicional, com solos de guitarra portuguesa a despontar, e temas mais ritmados, num registo onde a fadista não esquece as figuras mais importantes no seu percurso, iniciado há praticamente 20 anos, em 2003, com o lançamento de Guarda-me a Vida na Mão. É por isso mesmo que dedica “Jacarandá” a Prince, o artista norte-americano, falecido em 2016. “Ele dizia que a minha música só precisava de um beat, por isso nada melhor do que um beat de kizomba para o recordar”.
Nas raízes partilhadas entre Minho, Ribatejo e Algarve, com as regiões a cruzarem-se umas nas outras do início ao fim, há espaço também para a história de amor que cresceu entre a fadista e Pedro Mafama. Esse amor pelos dois intérpretes, agora com uma filha recém-nascida, desvenda-se primeiro em “Sozinha lá fora”:
“Se deixar o coração de fadista falar
vou pedir-te que venhas agora
(…)
Quem vem salvar-me quando me deito
No pranto que agoniza o meu canto
Talvez seja Pedro e entretanto”
Depois de um primeiro desencontro amoroso, é com “Agarra em mim” e a letra de Mafama que se traduz o desenlace feliz já conhecido: “Eu fui bandido e eu sei disso / ‘Tava a fugir ao compromisso / A beijar santas no altar / Não me importa o diz-que-disse”.
[“Agarra em Mim”:]
Já com a casa arrumada, o convite para se entrar serve para quem aceitar que os segredos que aí habitam só existem para serem partilhados. Aí se encontra uma mesa farta e um lar cheio de vida, onde o fado, declarado Património Imaterial da Humanidade em finais de 2011, é agora ponto de partida para um vasto campo de possibilidades. A ele, Ana Moura regressa inevitavelmente, no fim de Casa Guilhermina, com “Estranha Forma de Vida” para se evocar, uma vez mais, Amália Rodrigues, seguida de “Nossa Senhora Das Dores”, para recordação da sua madrinha no fado, Maria da Fé.
Tons de elegia e tributo para o circundar daquele que é um espaço de libertação e de ânsia para um percurso que não termina por aí: “Com a música e os visuais deste disco, sonho em desprender-me da ideia e da responsabilidade de ter de escolher ser uma coisa só, mas de alimentar o olhar crente e inocente que a minha avó Guilhermina, forte doce, sensível e determinada, deixou em mim: lutar contra os pensamentos mais desacreditados que nos fazem sentir que estes sons, incluídos os da nossa própria língua, nunca serão considerados pop ou ouvidos massivamente além-fronteiras. Este é o sonho que tenho vindo a perseguir e com este disco espero conseguir abrir uma porta”.